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Relação público-privado no sistema de saúde brasileiro: opacidade cognitiva e analítica

The public-private mix in the Brazilian health system: cognitive and analytical obscureness

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Relação público-privado no sistema de saúde brasileiro: opacidade cognitiva e analítica

The public-private mix in the Brazilian health system: cognitive and analytical obscureness

Telma Maria Gonçalves Menicucci

Fundação João Pinheiro. telma.menicucci@fjp.mg.gov.br

É particularmente instigante comentar o artigo de Lígia Bahia, que traz à baila questões bastante obscuras ou quase ausentes, embora fundamentais, no debate teórico e prático relacionado à relação entre o sistema público e o privado de assistência à saúde no Brasil. Esse me parece ser o grande mérito do artigo, em que pese o seu caráter ainda preliminar como a autora mesmo reconhece, o que sem dúvida está relacionado com o objetivo muito maior de lançar uma reflexão e sugerir linhas de investigação do que propriamente de produzir uma fundamentação já suficientemente estruturada em relação a qualquer um dos temas e argumentos introduzidos. Mas que revelam uma argúcia e uma acuidade analíticas não muito comuns nas análises sobre o mercado de planos e seguros privados de saúde que, na sua quase totalidade, não enfrentam, desconhecem ou evitam o desafio de buscar compreender as intricadas relações entre o público e o privado na saúde e, particularmente, o papel do Estado na constituição do arcabouço institucional e regulatório vigente e legitimado.

A autora convida os pesquisadores a estudar melhor essas relações, a partir da consideração de processos em curso na estrutura da assistência suplementar e interrogando sobre suas possíveis conexões com mudanças na relação entre a assistência suplementar e o SUS. A tentativa preliminar de Bahia, mesmo que reconhecidamente incompleta, de mapear as vertentes de investigação mais recentes relativas ao mercado de planos e seguros de saúde fornece indicações do interesse crescente pelo tema, ao mesmo tempo em que apresenta evidências da incipiência ou quase ausência de abordagens que privilegiem a compreensão das "complexas interfaces público-privadas do sistema de saúde brasileiro". Ao chamar atenção sobre processos usualmente tão opacos nas pesquisas e reflexões práticas sobre o sistema de saúde, Bahia termina por propor uma agenda de pesquisa inovadora que, se levada em consideração, pode ser um bom início para a revigoração e ampliação do escopo analítico em relação às políticas de saúde no Brasil.

Isso porque, no meu entendimento, é preciso transpor certo "véu da ignorância" - no sentido inverso daquele de Rawls - que cobre as relações entre o sistema de saúde suplementar e o SUS, sobre as quais, para ser um pouco provocativa, pode-se falar quase de certo impasse cognitivo. Entre as dimensões que podem ser cruciais, ainda é pouco explorado, por exemplo, quais são as implicações tanto para o sistema público quanto para o privado da existência de um sistema de saúde dual - entendendo-se como tal a coexistência de um sistema público e de um privado que configuram formas diferenciadas de acesso, financiamento e produção de serviços, apesar de, formalmente, a política de saúde definir o acesso gratuito e universal a toda a população. Para além das análises focadas apenas no trânsito de pacientes de planos de saúde por serviços públicos, os exemplos da utilização de procedimentos de alto custo e do acesso privilegiado ao sistema público por usuários de planos privados, já bastante reconhecidas e destacadas pela autora, outras conseqüências mereceriam mais atenção, como: a dificuldade de publicização da rede privada prestadora de serviços quando existe um mercado alternativo constituído pelos planos e seguros privados; a falta de suporte político efetivo para a universalização por parte de atores relevantes cobertos por planos; e a ausência de uma regulação que considere interconexões entre os dois sistemas e defina os espaços respectivos de atuação.

O mérito maior do artigo é exatamente o de levantar vários aspectos a serem observados caso se queira apreender melhor essas relações, ainda com hipóteses a serem exploradas e testadas, mas com indícios bastante fortes. Entre as questões apresentadas, gostaria de destacar, para tecer alguns comentários, apenas duas, bastante inter-relacionadas, e de alguma maneira reforçar os argumentos da autora, da forma em que foi possível percebê-los, uma vez que nem sempre eles estão suficientemente claros, sendo necessário quase que identificar um subtexto que ligue de forma mais articulada as diversas idéias enunciadas e ainda a merecer um tratamento mais sistemático.

Uma das dimensões sobre a qual a autora centra sua análise é o que ela chama com muita propriedade de "naturalização das assimetrias de cobertura, acesso e utilização de serviços de saúde entre os segmentos populacionais vinculados ou não a contratos de planos e seguros de saúde". A partir da análise dos termos utilizados para distinguir esses dois segmentos - "pagante" e "não pagante" - ou "SUS dependente" e "SUS não dependente" , que expressam uma classificação construída a partir das possibilidades de inserção no sistema privado em função de escolhas possibilitadas pela disponibilidade de renda, a autora constata a operação de uma homogeneização de sentidos, valores e práticas, por meio da qual o SUS se torna equivalente aos planos e seguros privados. Nessa medida, é subtraído do sistema público o projeto institucional para a efetivação da garantia do direito à saúde, reduzido que é a um pagador de serviços de saúde. Com essas classificações dicotômicas, as instituições públicas efetivam a incorporação naturalizada das assimetrias no acesso, de forma que se reitera a segmentação e se redefinem as responsabilidades universais do SUS, ao mesmo tempo em se tornam opacas as relações entre o público e o privado. Camuflada nessas terminologias, a autora afirma "seu ajuste às premissas sobre as bases individualizadas da organização do mercado de planos e seguros de saúde", de tal forma que a variável que explica a existência e tamanho desse mercado é a renda familiar individual. A essa crítica da autora, gostaria de acrescentar algumas evidências empíricas, a partir dos dados da PNAD/19981. É verdade que a cobertura relativa por planos privados cresce proporcionalmente ao aumento da renda familiar per capita. Entretanto, quando se considera apenas a população coberta por planos de saúde, a maior concentração relativa de pessoas cobertas (40%) se dá no segmento de renda mensal familiar per capita na faixa inferior a dois salários mínimos. Isso reflete o fato de que a grande maioria dos participantes de planos e seguros de saúde o é na condição de participantes de planos coletivos, financiados, total ou parcialmente (na maioria dos casos), pelo empregador. Isso permite que trabalhadores de renda mais baixa tenham acesso a planos privados a partir de sua inserção no mercado de trabalho, mostrando como a marca de origem da assistência privada, que se desenvolveu inicialmente na esfera das relações de trabalho, se mantém ainda hoje. Considerando que os planos empresariais são mais comuns nas grandes empresas, nas quais também as condições salariais tendem a ser melhores, é plausível a hipótese de que nesse caso a relação renda/cobertura por planos de saúde privados não seja direta, mas mediada pela forma de inserção no mercado de trabalho. Ou seja, trabalhadores com melhor situação de emprego não apenas tendem a ter maiores salários, mas também outros benefícios indiretos, como a assistência à saúde. Para o conjunto dos titulares de planos de saúde, apenas cerca de 30% deles têm planos contratados diretamente e, nesses casos, a incidência relativa, como era de se esperar, é diretamente relacionada à renda, atingindo 46% dos titulares com renda mensal superior a vinte salários mínimos. Mesmo nessa faixa de renda mais alta, a maioria dos titulares está vinculada a planos coletivos, o que mostra a preponderância desse tipo de assistência privada como legado de sua trajetória. Entretanto, não deixa de ser relevante, se comparada com a renda, a participação em planos individuais de expressiva parcela da população com renda - baixa sempre superior a 20% em todas as faixas de renda dos titulares. Isso pode significar um ônus pesado para o orçamento familiar, que, em princípio, seria injustificado, uma vez que a população conta com um sistema público de saúde pretendidamente de acesso universal. Mas sugere o grau de legitimação que os planos de saúde privados adquiriram no país e reafirma que a renda não é a única variável explicativa da constituição social dessa demanda.

A segunda questão tratada por Bahia e que gostaria de destacar, intimamente relacionada à anterior, refere-se ao ocultamento ou ausência de problematização a respeito do papel do Estado no processo de expansão dos planos e seguros privados e de naturalização da segmentação, constatando-se o desconhecimento do papel do Estado como agente ativo da emissão de políticas, normas, valores e recursos financeiros para preservar a segmentação. Nesse aspecto, a questão da regulação ou é desconsiderada ou tem seu conteúdo esvaziado. Nos termos da autora,o conceito de regulação, essencial às análises das relações entre o público e o privado, é transposto de suas origens, de análise das relações sociais fundamentais (mercantis, capital/trabalho e suas interações) para um ponto muito distante, simplesmente passa a referir a relações de compra e venda. E, nesse processo simplificador, ficam de fora aspectos como os incentivos públicos ao financiamento, conformação das demandas e organização da oferta do subsistema suplementar.

Gostaria de colocar mais uns ingredientes nesse debate que estão relacionados a duas ordens de fatores: a primeira refere-se à atuação governamental propriamente dita, no sentido de favorecer essa configuração institucional dual do sistema de saúde; e a segunda, em grande parte decorrente da primeira, relativa ao processo de legitimação da dualidade, que se expressa em valores e representações, que são as bases cognitivas de qualquer ação política e de elaboração de políticas públicas.

Cabe lembrar que a expansão da assistência privada está intimamente ligada a decisões governamentais prévias que, embora voltadas para a assistência à saúde de caráter público ou para a ampliação de cobertura, forneceram incentivos diretos (convênios com repasse de recursos) e indiretos (incentivos fiscais, inicialmente para pessoas jurídicas e depois para físicas) para o desenvolvimento do mercado privado de saúde, tanto no aspecto da prestação de serviços quanto na gestão privada da assistência. Os investimentos privados no setor e a atuação dos diversos agentes do mercado, favorecidos por decisões governamentais, tiveram várias conseqüências: o estabelecimento de padrões de comportamento, difíceis de reverter; a estruturação dos interesses privados na saúde, condicionando o conflito político e estruturando o processo de tomada de decisões; a particularização das demandas de saúde e a constituição de identidades corporativas, o que contribui para o enfraquecimento da proposta do SUS, de caráter publicista e universalista, e para o fortalecimento da segmentação de clientelas, reforçando a perspectiva de que ao sistema público cabe a cobertura da população mais pobre e em condições desfavoráveis de inserção no mercado de trabalho. Enfim, o Estado funcionou como organizador do mercado e como agente ativo no processo de legitimação da segmentação, como destaca Bahia.

A inserção em um modelo segmentado favorece a constituição de scripts cognitivos, os quais informam as ações dos usuários. Ao longo de sua trajetória, foram construídas imagens negativas sobre a assistência pública que funcionam como critérios para julgamento prévio da eficácia do sistema público e como justificativas post factum da preferência pela assistência privada, tendendo-se a uma naturalização das escolhas do passado2.

O estabelecimento da política regulatória voltada para o segmento privado no final da década de 1990 formalizou a dualidade e a segmentação do ponto de vista legal, normativo e institucional, na medida em que os segmentos público e privado passaram a ser objeto da política de saúde de forma explícita e de modo a confirmar a independência entre as duas modalidades institucionais, a oposição entre seus princípios norteadores e a segmentação dos usuários. Ao invés de serem estabelecidas regras claras e precisas que definam os espaços respectivos de atuação do mercado e do Estado e as formas de relacionamento entre os dois campos de ação, a regulação mais uma vez legitima a segmentação, sendo uma de suas expressões emblemáticas a exigência de ressarcimento ao SUS no caso de sua utilização por participantes de planos privados. Pode-se dizer que duas lógicas seguem operando na política de saúde. De um lado, uma lógica publicista, traduzida nos esforços de viabilizar o SUS, mesmo que voltado principalmente para os segmentos de menor poder aquisitivo. De outro lado, a lógica privatista, que tem como efeito a regulação do mercado, como forma de torná-lo mais eficiente, o que significa a ampliação da oferta e do consumo de planos e seguros de saúde. Essa regulação não considerou os diversos mecanismos através dos quais o Estado incentiva - e portanto legitima - a segmentação, conforme chama atenção Bahia, particularmente por meio dos subsídios ao financiamento dos planos e seguros. Nesse sentido, como ela afirma, mascara-se a política pública de inclusão seletiva de demandas.

Enfim, o desafio posto por Bahia, incitando a reflexões mais sistêmicas sobre as relações entre o público e o privado no âmbito da política de saúde no Brasil, é mais do que um desafio teórico ou analítico para desvendar de forma mais consistente essas relações, mas também um desafio político na medida em que incita à superação de análises auto-referidas do SUS, que predominam nas propostas ou discussões de políticas para o setor e que parecem pouco promissoras. Uma nova regulação, entendida de forma menos reducionista, que considere o conjunto do sistema de saúde e torne mais claro o papel do Estado e dos diferentes atores, parece ser um dos principais desafios. Para isso, pode ser útil uma reflexão teórica que supere certo impasse cognitivo subjacente aos estudos sobre a institucionalidade da assistência à saúde no Brasil.

  • 1. Menicucci TMG. Público e Privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória [tese]. Belo Horizonte (MG): Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais; 2003.
  • 2. Menicucci TMG. Público e Privado na política de assistência à saúde no Brasil - atores, processos e trajetória Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2008
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