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Saúde, corpo e sociedade

RESENHAS BOOK REVIEW

Adriana Cavalcanti de Aguiar

Universidade Estácio de Sá

Navarro A, Pitanguy J, organizadoras. Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2006. 257 p.

As limitações do modelo biomédico em fornecer explicações e, principalmente, orientar a ação no cuidado à saúde da população brasileira evidenciam-se no cotidiano das práticas dos serviços públicos e privados. Assim sendo, muitos defendem a maior penetração das Ciências Sociais e Humanas nos currículos da graduação em saúde. Estes, porém, resistem, apesar da entrada em vigor no início dos anos 2000 de Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Saúde, que demandam o desenvolvimento de competências profissionais que aliam excelência técnica com compromisso social e humano.

Parte da resistência às mudanças curriculares decorre do alunado. Os anos de atuação na Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), concomitantes ao exercício da gestão acadêmica, permitiram-me debater, em distintas ocasiões, a necessidade de refletir com os alunos sobre a aplicação das ciências sociais e humanas à prática médica, sem, no entanto exauri-los com uma profusão de conceitos e um extenso vocabulário alienígena. Tal atitude reproduziria aquela das especialidades médicas, criticadas por sobrecarregarem estudantes com excesso de detalhes e informações que não irão subsidiar a tomada de decisões, por irrelevantes ou de difícil retenção.

Experiências de mudança curricular bem-sucedidas vêm sendo desenvolvidas em algumas escolas brasileiras. Currículo modular, problematização, novas estratégias de avaliação de atitudes e habilidades, oportunidades de reflexão em grupos, práticas multiprofissionais e diversificação do corpo docente são algumas das iniciativas em curso. Pouco investimento, porém, é feito na produção de material bibliográfico adequado para a formação acadêmica ao nível da graduação. Professores são desincentivados pelos critérios vigentes de avaliação da excelência acadêmica, fortemente voltada para a publicação de artigos em periódicos especializados.

O livro Saúde, corpo e sociedade, organizado por Alicia Navarro de Souza, Chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRJ, e Jaqueline Pitanguy, socióloga e diretora da ONG CEPIA (Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação, Ação), representa uma alegria e um alento para aqueles dedicados à promoção da interdisciplinaridade e do raciocínio crítico de nossos futuros profissionais de saúde. Emergindo da experiência bem-sucedida da disciplina homônima, oferecida pela UFRJ, agrega estrelas da área das Ciências Sociais e Humanas em saúde, organizadas no esforço de tradução de suas complexas sínteses para não-especialistas.

O livro é composto de cinco partes. A primeira intitula-se "Sobre a Produção do Conhecimento nas Ciências da Saúde", e começa com texto de Alberto Oliva, que resgata o percurso da produção do conhecimento no mundo ocidental, chamando a atenção para o fato de que "independentemente da visão que se tenha de ciência, não é apropriado concebê-la como um modo natural de perquirir o mundo" (p. 27). Salientando o papel da comunidade científica na legitimação das bases éticas e metodológicas da produção do conhecimento, Oliva dá a deixa para o capítulo do historiador Flávio Coelho Edler, baseado na conhecida, e mal compreendida, obra de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. Conceitos como ciência normal e crise paradigmática, tantas vezes enunciados de forma equivocada, são dissecados em linguagem acessível, possibilitando ao leitor apreender o significado das rupturas epistemológicas que se verificam nas chamadas revoluções científicas.

Desdobrando a discussão epistemológica e metodológica, Elvira Maciel aborda as bases da pesquisa clínica, lembrando que "diferentemente dos físicos e as partículas que estudam e dos químicos e seus compostos, os médicos compartilham com seus pacientes a experiência de estarem vivos e o risco de adoecer e morrer". Partindo de tal provocação, e entendendo que "a ciência é um empreendimento político", a autora irá debater com o leitor as características e limites do método experimental, trazendo para o foco a contribuição de Canguilhem e de Foucault, para desaguar na reflexão sobre multicausalidade, ética e uso de evidências, com foco nos estudos observacionais .

Além de organizadora, Alicia Navarro de Souza assina o capítulo "A pesquisa qualitativa em Saúde", enfatizando a relevância de apreendermos atitudes, percepções e experiências de clientes e profissionais, para o avanço consistente das relações interpessoais. Métodos qualitativos como a observação participante, a entrevista individual e o grupo focal são explicados e contextualizados em suas possíveis aplicações.

Famoso no Brasil a partir da publicação do livro O normal e o patológico, Georges Canguilhem cunhou o conceito de normatividade, temática adotada por Benilton Bezerra, que inaugura a segunda parte do livro, intitulada "Saberes e Práticas de Saúde: Reflexões sobre a Clínica". Localizando a medicina como um conjunto de técnicas e práticas, contribui para desmistificar a cientificidade a-crítica e ressalta os limites éticos desse conjunto de práticas, baseadas em métodos e teorias cuja apropriação é definida socialmente. A construção social do conhecimento e a cultura institucional na tomada de decisões são aportes também aprofundados por Rachel Aisengart Menezes, no capítulo "Entre o biológico e o social". Seu estudo qualitativo emprega a observação participante, em um Centro de Terapia Intensiva, descortinando o cotidiano de dilemas profissionais que a autora classifica como "escolha de Sofia", ao problematizar o poder médico e a institucionalização da morte.

A terceira parte do livro denomina-se "Corpo, sexualidade e práticas em Saúde". É aberta por Jurandir Freire Costa que, partindo da construção social do sexo e do gênero ao longo dos tempos, apresenta a "naturalização" de certas "verdades", indagando porque algumas questões são eleitas como objeto de investigação e outras não. Entendendo que "a natureza fala a língua que a ela atribuímos", o autor salienta a responsabilidade daqueles que falam em nome da ciência e da medicina, cuja análise dos fenômenos humanos e sociais muitas vezes não considera "as armadilhas do [...] próprio imaginário moral".

Jaqueline Pitanguy, organizadora do livro, assina o capítulo "Gênero, violência e saúde", problematizando a existência de cidadãos de "primeira" e "segunda" categorias, de modo a analisar a "invisibilidade" de fenômenos de alta prevalência. Exemplifica com a violência de gênero, que só começou a adquirir visibilidade no Brasil a partir dos anos 70, com os movimentos de mulheres. Conclui que "variáveis que se situam fora do universo das ciências naturais" desempenham seu papel, tanto "na conformação do imaginário sobre saúde e doença quanto no acesso aos serviços".

Fabiola Rohden também enfoca a invisibilidade de fenômenos de acordo com o gênero dos envolvidos. Elabora instigante análise histórica do desenvolvimento das idéias sobre a biologia de homens e mulheres ao longo dos séculos (onde tipicamente o homem aparece como medida e a mulher como anomalia). Observa a penetração histórica do pensamento religioso na concepção de saúde ainda vigente e aborda o desenvolvimento da Ginecologia e Obstetrícia, questionando a perpetuação da centralidade da reprodução na atenção à mulher prestada atualmente.

A quarta parte do livro, denominada "Saúde e sociedade", é aberta pela professora Jane Russo,que analisa a percepção do corpo como objeto, fortalecida no ensino com peças anatômicas, sugestivas de um quebra-cabeças que, em sendo montado, formaria uma pessoa. Salientando o "caráter biocultural de nosso atos corporais cotidianos", reitera como inseparáveis as dimensões de corpo e pessoa, físico e mental, ser biológico e ser moral. Madel Therezinha Luz explicita o atual abismo entre a diagnose e a terapêutica, salientando que "um médico pesquisador de doenças do campo da biomedicina, e mesmo da psicanálise, não é, necessariamente, um bom terapeuta". Ilumina o fato de que o processo de desenvolvimento profissional envolve componentes da "arte" da cura, o conhecimento tácito e aprendizagem de lidar com frustração e fracasso, minimizados pela descaracterização da relação mentor-aluno na educação superior.

Pedro Gabriel Delgado enfoca a noção de cidadania e de direitos, chamando para o debate autores como Norberto Bobbio, Hannah Arent, Cornelius Castoriadis e Louis Althusser, passando pelo pensamento grego e pelo ideário da Revolução Francesa, para discutir "Cidadania e saúde mental". Analogamente, Ruth Floresta de Mesquita parte da temática dos direitos para analisar a formulação e implantação de políticas orientadas para combater a violência sexual contra a mulher. Salienta pontos estratégicos a serem aprofundados, como o acesso ao aborto previsto na lei, a melhoria dos sistemas de registro e análise, e as necessárias mudanças na formação profissional, para o enfrentamento da violência nos serviços de saúde.

Embora ainda eletiva, a disciplina que deu origem à coletânea contou com cerca de 250 alunos até a publicação do livro. Entre esses, Átila Rondon, Raphael Oliveira e Tatiana dos Santos, autores de capítulo que compõe a última parte da coletânea, onde reafirmam a importância da interface entre saberes, na construção de pontes entre o conhecimento científico e a realidade de vida e saúde daqueles a quem atendem, como desafio da prática médica. Além de ler e refletir, cabe a nós leitores divulgar o trabalho e torcer para que a iniciativa deste grupo significativo de lideranças acadêmicas obtenha a merecida circulação, ampliando o escopo da discussão para as mais de cem escolas de medicina e inúmeras outras na área de saúde, fomentando o avanço da problematização entre saúde, corpo e sociedade no cerne dos currículos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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