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Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista

Health promotion and empowerment: a reflection based on critical-social and post-structuralist perspectives

Resumos

Neste trabalho, descrevemos o arcabouço teórico e as estratégias centrais da Promoção à Saúde, seguidos de uma análise crítica tanto intra como extra-paradigmática ao ideário do referido movimento. A partir de uma perspectiva intra-paradigmática, privilegiamos o enfoque ao qual se filia a Promoção à Saúde, as teorias crítico-sociais, para analisar um dos seus conceitos estruturantes - o conceito de empoderamento -, explorando seu potencial para a transformação das práticas comunitárias e profissionais em saúde. A seguir, refletimos sobre a Promoção à Saúde a partir de uma perspectiva extra-paradigmática, buscando nas teorias pós-estruturalistas novas possibilidades analíticas para entender as relações de poder que se estabelecem a partir das práticas e políticas de Promoção à Saúde. Ao longo deste artigo, articulamos os princípios teóricos explorados a questões contextuais e a debates atuais na área da saúde no Brasil.

Promoção da saúde; Saúde coletiva; Poder; Empoderamento; Saúde pública


In this paper we describe the theoretical framework and the core strategies of health promotion followed by a critical intra- and extra-paradigmatic analysis of the key ideas of this movement. From an intra-paradigmatic perspective we privilege a critical social theory perspective for analyzing one of the key concepts of health promotion - empowerment - exploring its potential to transform community and professional practices in the field of health. Next, we reflect about health promotion from an extra-paradigmatic perspective, seeking in the post-structuralist theories new analytical possibilities for understanding the power relations that establish themselves on the basis of practices and policies of health promotion. Throughout this article, we articulate the explored theoretical principles to contextual questions and current debates in the field of health in Brazil.

Health Promotion; Collective health; Power; Empowerment; Public health


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista

Health promotion and empowerment: a reflection based on critical-social and post-structuralist perspectives

Sérgio Resende CarvalhoI; Denise GastaldoII

IDepartamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. Cidade Universitária Zeferino Vaz. 13081-970. Campinas SP. 2srcarvalho@gmail.com

IIFaculty of Nursing, University of Toronto, Canada

RESUMO

Neste trabalho, descrevemos o arcabouço teórico e as estratégias centrais da Promoção à Saúde, seguidos de uma análise crítica tanto intra como extra-paradigmática ao ideário do referido movimento. A partir de uma perspectiva intra-paradigmática, privilegiamos o enfoque ao qual se filia a Promoção à Saúde, as teorias crítico-sociais, para analisar um dos seus conceitos estruturantes - o conceito de empoderamento -, explorando seu potencial para a transformação das práticas comunitárias e profissionais em saúde. A seguir, refletimos sobre a Promoção à Saúde a partir de uma perspectiva extra-paradigmática, buscando nas teorias pós-estruturalistas novas possibilidades analíticas para entender as relações de poder que se estabelecem a partir das práticas e políticas de Promoção à Saúde. Ao longo deste artigo, articulamos os princípios teóricos explorados a questões contextuais e a debates atuais na área da saúde no Brasil.

Palavras-chave: Promoção da saúde, Saúde coletiva, Poder, Empoderamento, Saúde pública

ABSTRACT

In this paper we describe the theoretical framework and the core strategies of health promotion followed by a critical intra- and extra-paradigmatic analysis of the key ideas of this movement. From an intra-paradigmatic perspective we privilege a critical social theory perspective for analyzing one of the key concepts of health promotion - empowerment - exploring its potential to transform community and professional practices in the field of health. Next, we reflect about health promotion from an extra-paradigmatic perspective, seeking in the post-structuralist theories new analytical possibilities for understanding the power relations that establish themselves on the basis of practices and policies of health promotion. Throughout this article, we articulate the explored theoretical principles to contextual questions and current debates in the field of health in Brazil.

Key words: Health Promotion, Collective health, Power, Empowerment, Public health

Introdução

O modelo teórico-conceitual da Promoção à Saúde (PS), formulado a partir dos anos setenta em países ditos desenvolvidos como Canadá, Inglaterra, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, vem exercendo uma crescente influência junto a políticas de saúde de diferentes países1. No Brasil, a Promoção à Saúde faz-se presente em diversos projetos, merecendo destaque o seu papel estruturante na proposta de Vigilância à Saúde2,3, junto ao Projeto Cidades Saudáveis4,5, na Educação em Saúde6 e em inúmeros projetos de reorganização da rede básica vinculados ao Programa Saúde da Família7.

Neste trabalho, buscamos descrever sumariamente as categorias e estratégias centrais do referido ideário, buscando em seguida oferecer uma análise crítica, intra e extra-paradigmática, aos postulados centrais que sustentam este arcabouço teórico. A partir de uma perspectiva intra-paradigmática, privilegiamos o enfoque crítico social para analisar um dos conceitos estruturantes da Promoção à Saúde, o conceito de empowerment ou, em português, empoderamento, explorando seu potencial para a transformação das práticas comunitárias e profissionais em saúde. A seguir, refletimos sobre a Promoção à Saúde a partir de uma perspectiva extra-paradigmática, buscando nas teorias pós-estruturalistas e pós-modernas novas possibilidades de análise sobre o referido movimento.

As fontes que dão suporte a este ensaio são múltiplas e resultam, por um lado, de um projeto de investigação de um dos autores junto ao Departamento de Saúde Pública da Universidade de Toronto8 e da produção e diálogo com estudiosos da Promoção à Saúde de países anglo-saxões e do Brasil9,10. Também traduzem a produção da co-autora, que na condição de docente e investigadora da mencionada universidade tem analisado o movimento de Promoção à Saúde a partir de uma perspectiva pós-estruturalista11-14. O trabalho que aqui se apresenta é fruto desta abordagem híbrida, que simultaneamente valoriza e desconstrói este movimento.

Princípios e evolução do movimento da Promoção à Saúde

A Promoção à Saúde moderna constitui nos dias de hoje um dos principais modelos teórico-conceituais que subsidiam políticas de saúde em todo o mundo. Tendo como referência documentos publicados pela Organização Mundial da Saúde e resoluções de diversas conferências internacionais15,16, o ideário da Promoção à Saúde, com sua abordagem socioambiental - que sucede à perspectiva behaviorista da década de setenta17 - , vem introduzindo novos conceitos, idéias e uma nova linguagem sobre o que é saúde e sugerindo caminhos para uma vida saudável8.

Dentre as estratégias priorizadas pela Promoção à Saúde, merecem destaque a constituição de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes sustentáveis, a reorientação dos serviços de saúde, o desenvolvimento da capacidade dos sujeitos individuais e o fortalecimento de ações comunitárias. Subsidiando estas estratégias, encontram-se princípios que afirmam a importância de se atuar nos determinantes e causas da saúde, da participação social e da necessidade de elaboração de alternativas às práticas educativas que se restringem à intervenção sobre os hábitos e estilos de vida individuais.

A abordagem socioambiental, consolidada no contexto internacional nos últimos quinze anos, preconiza a centralidade das condições de vida para a saúde dos indivíduos e grupamentos humanos apontando, como pré-requisitos essenciais para a saúde, a necessidade de uma maior justiça social, a eqüidade, a educação, o saneamento, a paz, a habitação e salários apropriados. Garantir condições dignas de vida e possibilitar que indivíduos e coletivos tenham um maior controle sobre os determinantes da saúde são alguns dos objetivos centrais da Promoção à Saúde16.

Esta abordagem reconhece, igualmente, que a assistência à saúde têm um papel significativo na determinação do processo saúde-doença, sugerindo a reorientação dos serviços e sistemas de saúde visando à implementação de práticas integrais e o fortalecimento de ações de promoção da saúde. Considera, para isto, ser necessário uma mudança de atitude dos profissionais de saúde a ser alcançada através de processos educativos, treinamentos e novos formatos organizacionais. Ela também preconiza que os serviços devem estar orientados para a necessidade dos sujeitos como um todo, devendo se organizar respeitando as diferenças culturais porventura existentes. Propõe ainda que este reordenamento se realize a partir do compartilhamento de responsabilidades e da parceria entre usuários, profissionais, instituições prestadoras de serviços e comunidade16.

A participação comunitária nos processos decisórios, nas atividades de planejamento e na implementação das ações de saúde constitui uma das estratégias centrais da Promoção à Saúde. Esta abordagem coloca em relevo a necessidade de as ações em saúde buscarem fortalecer a atuação dos indivíduos e dos grupos e do incentivo das ações que ofereçam suporte social aos coletivos comunitários, que estimulem processos de auto-ajuda e que busquem implementar novas práticas de Educação em Saúde.

Por detrás da imagem-objetivo que preconiza o controle sobre os determinantes do processo saúde-doença por parte de indivíduos e coletivos encontra-se um dos núcleos filosóficos e uma das estratégias-chave do movimento de Promoção à Saúde: o conceito de empowerment - doravante mencionado como empoderamento. Ele está presente, por exemplo, nas definições "saúde" e "promoção à saúde" e no âmago de estratégias da PS como as de "participação comunitária", "educação em saúde" e "políticas públicas saudáveis". Através do empoderamento, a Promoção à Saúde procura possibilitar aos indivíduos e coletivos um aprendizado que os torne capazes de viver a vida em suas distintas etapas e de lidar com as limitações impostas por eventuais enfermidades, sugerindo que estas ações devam ser realizadas em distintos settings, entre os quais a escola, o domicílio, o trabalho e os coletivos comunitários16,18.

A incorporação pela vertente socioambiental de Promoção à Saúde de conceitos como empoderamento e do modelo explicativo da determinação social do processo saúde/doença constitui, para muitos, um avanço em relação ao projeto behaviorista que lhe antecedeu. O reconhecimento quase unânime deste avanço não impede, no entanto, que ocorram importantes dissensos em relação ao sentido e significados das premissas, diretrizes e estratégias da Promoção à Saúde socioambiental, para a implementação de um projeto sanitário comprometido com a eqüidade social e a produção de sujeitos autônomos e solidários9,10.

Perante tal constatação, acreditamos ser oportuno refletir sobre este ideário tomando como categoria de análise o empoderamento.

Reflexões sobre empoderamento e Promoção à Saúde a partir da perspectiva crítico-social

Na origem do conceito e estratégia de empoderamento encontra-se a psicologia comunitária, movimentos de auto ajuda e, em especial, práticas sociais surgidas a partir das reinvidicações e lutas dos novos movimentos sociais ocorridas nas décadas de 1960 a 1980 em diversos países. Paulo Freire é citado, neste contexto, como um teórico inspirador de parte da literatura sobre empoderamento produzida por teóricos e profissionais da saúde comprometidos com a mudança social e o o fortalecimento de práticas cidadãs questionadoras do status quo19,20.

É possível afirmar que os princípios que sustentam as formulações libertárias e progressistas de Promoção à Saúde situam-se dentro do paradigma crítico-social21. Observamos, neste sentido, que teorias estruturalistas fundadas na constatação da existência de classes sociais, na denúncia da opressão e da exclusão de grupos sociais - como o feminismo de segunda geração e o neo-marxismo, entre outras - embasam a produção de conceitos como a determinação social do processo saúde-doença e o empoderamento. Para o pensamento crítico-social, fatos que compõem o cotidiano têm sempre inscrições ideológicas uma vez que todas as formas de pensar e fazer estão permeadas por relações de poder que necessitam ser problematizadas e compreendidas como um produto de relações sociais e históricas que tendem a naturalizar e reproduzir desigualdades22.

Os fundamentos epistemológicos que respaldam o modelo teórico da Promoção à Saúde não impedem, entretanto, que sejam percebidas neste arcabouço variações conceituais importantes com conseqüências estratégicas relevantes. É o que ocorre, por exemplo, com o significado da categoria empoderamento que vem assumindo, na prática, diferentes conotações conforme os interesses em disputa e os saberes que a fundamentam.

Destacamos, a título de análise, dois sentidos principais do empoderamento: o psicológico e o social/comunitário. A partir de Riger, conceituamos o primeiro como um processo que tem como objetivo possibilitar que os indivíduos tenham "um sentimento de maior controle sobre a própria vida". Indivíduo empoderado é aqui sinônimo de uma pessoa "comedida, independente e autoconfiante, capaz de comportar-se de uma determinada maneira e de influenciar o seu meio e atuar de acordo com abstratos princípios de justiça e de equilíbrio"23. Desta formulação derivam estratégias que buscam fortalecer a auto-estima e a capacidade de adaptação ao meio e que procuram desenvolver mecanismos de auto-ajuda e de solidariedade.

Sem negar a eficácia pontual do empoderamento psicológico para a produção de saúde, julgamos que o mesmo é insuficiente para instrumentalizar práticas que logrem incidir sobre a distribuição de poder e de recursos na sociedade, podendo facilmente transformar-se em um mecanismo de regulação e de controle do social sobre certos grupos de indivíduos. Weissberg24, por exemplo, menciona o perigo de que esta categoria venha a significar uma espécie de Cogito empowerment, ergo sum empowered, em que o sentimento de poder poderia criar a ilusão da existência efetiva de poder por parte dos indivíduos, no momento em que a maior parte da vida é controlada por políticas e práticas macrossociais: [...] a experiência individual de poder ou falta do mesmo pode não estar relacionada à real habilidade de ser influente e um aumento na sensação de empoderamento nem sempre reflete um real aumento de poder.[...] Isto não significa que os indivíduos não possam ter nenhuma influência ou que as percepções individuais não são importantes, mas que reduzir poder a psicologia individual significa ignorar os contextos políticos e históricos nos quais as pessoas operam. Confundir as reais habilidades de controlar recursos com a sensação de empoderamento despolitiza este último23.

Sob a influência de Paulo Freire e outros autores, desenvolve-se no interior do projeto de Promoção à Saúde a noção de empoderamento comunitário, que busca destacar a idéia da saúde como um processo e uma resultante de lutas de coletivos sociais por seus direitos. No que se segue, discutimos e analisamos esta formulação, que aqui denominaremos de "empoderamento social"23,25, por entender que na cultura política brasileira a palavra "comunitário" tem uma conotação (no sentido derivativo e figurativo) diferente daquela que é comumente sugerida pelo uso nos países anglo-saxões9.

O empoderamento social não significa a negação dos elementos que compõem o empoderamento psicológico, uma vez que reconhece a importância do agenciamento humano e, indo além, procura destacar a importância de buscar-mos enfrentar as raízes e causas da iniqüidade social. Teorias que dão suporte a este conceito nos ajudam, por exemplo, a refletir criticamente sobre o uso reducionista de estratégias e ações de empoderamento que levam muitas vezes à culpabilização das vítimas de mazelas sociais ao hiperdimensionar a responsabilidade individual sobre os problemas de saúde.

Para que o empoderamento social se efetive, é necessário ter ciência de que se as macroestruturas condicionam e determinam o cotidiano dos indivíduos, estes, através de suas ações, influenciam e significam o plano macrossocial em um movimento circular e interdependente. Observamos este fato no campo da saúde quando constatamos que, se por um lado muitas investigações epidemiológicas demonstram o papel determinante da pobreza e de outros fatores sociais, econômicos e políticos para a saúde dos indivíduos, por outro os indivíduos têm sido capazes de reconfigurar o ambiente social em que vivem e, portanto, de influenciar a sua própria saúde26.

O empoderamento social pode ser considerado, por conseguinte, um processo que conduz à legitimação e dá voz a grupos marginalizados e, ao mesmo tempo, remove barreiras que limitam a produção de uma vida saudável para distintos grupos sociais. Indica processos que procuram promover a participação social visando ao aumento do controle sobre a vida por parte de indivíduos e comunidades, à eficácia política, a uma maior justiça social e à melhoria da qualidade de vida. Espera-se, como resultado, o aumento da capacidade dos indivíduos e coletivos para definirem, analisarem e atuarem sobre seus próprios problemas através da aquisição de habilidades para responder aos desafios da vida em sociedade27.

Neste contexto, o empoderamento social coloca-se como uma potente ferramenta conceitual para repensarmos práticas de Educação em Saúde visando superar processos que têm como eixo a relação de hierarquia estabelecida, por exemplo, entre professor/alunos e entre profissional de saúde/usuário. Na esteira do que propõem Wallerstein & Bernstein28, julgamos pertinente valorizar propostas pedagógicas que tenham com eixo uma espécie de "educação empoderadora" (empowerment education) objetivando a superação de métodos que reforçam o exercício do poder-sobre-o-outro (power-over), através da criação de espaços dialógicos e de co-gestão em que se privilegie o exercício do poder-com-o-outro (power-with).

Na concepção da "educação empoderadora", o professor (ou o profissional de saúde) não deve ser um simples repassador de conhecimentos e de experiência, nem o aluno (ou o usuário dos serviços de saúde) um receptor passivo do que lhe é transmitido. É uma concepção que demanda uma capacidade de escuta do outro, como afirma Paulo Freire29: Se [...] o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente [...] O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar os seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.

O empoderamento social pode instrumentalizar-nos, por exemplo, para delinearmos estratégias visando à superação da desigualdade de poder que predomina na relação entre os profissionais e o usuário. Profissionais de saúde têm sempre a possibilidade de exercer o poder sobre os outros, mas também comos outros. Sugere-se aqui o exercício de uma prática profissional guiada pelo entendimento do usuário enquanto sujeito/cidadão portador de direitos que valoriza a parceria entre profissionais, indivíduos e comunidades, em substituição a uma prática alienada e autoritária em que o trabalhador é simplesmente um provedor de serviços e o usuário um cliente/consumidor. O que se necessita é de uma atitude que redefina a clínica e que atualize as práticas sanitárias. Hills6 recomenda, neste sentido, que as práticas de promoção à saúde tenham como foco as pessoas e suas experiências em saúde sugerindo, à semelhança do que faz Campos30 quando discute a clínica ampliada, uma combinação da abordagem promocional com a abordagem biomédica na qual a primeira contribua para a qualificação da segunda.

O afirmado até aqui corrobora a idéia de que o conceito/estratégia de empoderamento social, ao reconhecer o caráter relacional do poder e da iniqüidade na distribuição de recursos na sociedade, contribui para a repolitização do debate sócio-sanitário, o que, sem dúvida, constitui um aporte para propostas de mudança do status quo.

Esta afirmativa não nos impede, no entanto, de alertar para a insuficiência e ambigüidades desta formulação para a concretização de ações de produção e promoção de saúde uma vez que podem justificar, como afirmam Stevenson & Burke31, que estratégias como o empoderamento individual e comunitário, redes sociais, cuidados domiciliários oferecidos por familiares podem facilmente tanto tornar-se justificativas ideológicas para a privatização e des-regularização dos serviços de saúde, com todas as implicações que isso pode ter para a qualidade e eqüidade de cuidados, como podem ser marcos referenciais mobilizadores para uma transformação progressista e democratizadora de políticas sociais.

Opinião compartilhada por Petersen & Lupton32 quando afirmam que programas que preconizam a capacitação e o controle sobre a vida e a saúde podem deixar de fazer, muitas vezes, o enfrentamento dos diferenciais de poder existentes na relação entre "especialistas e não-especialistas, entre populações de países ricos desenvolvidos e de países pobres, entre homens e mulheres, e entre heterossexuais e homossexuais".

Observamos, igualmente, que a retórica do empoderamento social deve ser criticada por não conseguir, muitas vezes, explorar seus próprios limites. Freqüentemente, grupos de indivíduos que se conscientizam das causas de seus problemas de exclusão social e de como estes afetam a saúde podem transformar apenas alguns aspectos de sua condição, mas não logram transformar o status quo e criar as condições macro e microestruturais que promovam a sua saúde e a de seus pares20,33.

Perante tais insuficiências que entendemos ser devedoras, entre outras, de limitações inerentes ao paradigma crítico-social no que se refere a uma compreensão mais abrangente e aprofundada sobre as temáticas do poder e da produção da subjetividade, procuramos a seguir refletir sobre estas questões a partir das contribuições do pensamento pós-moderno.

Reflexões sobre poder e Promoção à Saúde a partir da perspectiva pós-estruturalista

Uma outra possibilidade de analisar os princípios teóricos do movimento da PS é utilizar teorias que partem de pressupostos ontológicos e epistemológicos distintos, como é o caso da teoria pós-estruturalista ou pós-moderna. Conforme argumentaremos, consideramos que esta perspectiva nos oferece uma interessante oportunidade para refletir sobre as premissas e estratégias do modelo teórico de Promoção à Saúde hegemônico.

Utilizar o referencial pós-estruturalista significa, em primeiro lugar, questionar o que é a realidade, quem são os indivíduos e como estes se relacionam socialmente para promover saúde. Esta perspectiva teórica considera que a realidade e as verdades de cada tempo são construções sociais produzidas na tensão entre os discursos dominantes e os discursos emergentes, que procuram manter ou modificar certos entendimentos e práticas sociais estabelecidas14,34,35. Assim, as noções de progresso, racionalidade e verdade que são próprias do ideário modernista, no qual o paradigma crítico-social se insere, passam a ser vistas como parte do discurso dominante do final do século XX, um discurso possível entre outros. O pós-estruturalismo compreende igualmente que no momento em que as pessoas são constituídas dos mesmos discursos que compõem o seu "exterior", torna-se difícil distinguir interioridade de exterioridade, colocando em questão a noção de sujeito autônomo, com um self independente e com possibilidade de livre escolha36.

É no campo do pensamento pós-estruturalista que vamos buscar as contribuições do filósofo francês Michel Foucault para aprofundar-mos nossa compreensão sobre o ideário de Promoção à Saúde e, nele, da temática do poder e da produção de subjetividade. Ao opor-se à concepção negativa de poder da tradição política e filosófica moderna, que identifica poder com o Estado e tende a confundir relações de poder com relações de dominação, Foucault preconiza a existência de uma concepção positiva afirmando que quando se fala de poder, as pessoas pensam imediatamente em uma estrutura política, em um governo, em uma classe social dominante, no senhor diante do escravo, etc. Não é absolutamente o que penso quando falo das relações de poder. Quero dizer que nas relações humanas, quaisquer que se-jam elas - quer se trate de comunicar verbalmente [...] ou se trate de relações amorosas, institucionais ou econômicas -, o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas37.

Nesta perspectiva, o poder passa a ser compreendido como uma prática social e histórica e não como uma "coisa", um objeto natural que alguns possuem. Não é, igualmente, uma categoria unitária e totalizadora, uma vez que ela se apresenta de forma heterogênea e em constante transformação, não podendo ser localizada no Estado, na classe social, não possuindo também uma essência econômica. Ao contrário, o poder é difuso e se concretiza na relação entre forças que tecem uma complexa trama de micro e macro-poderes que podem estar ou não integrados ao Estado38. Isso não quer dizer que todos os indivíduos estão igualmente posicionados para exercer poder ou que o fazem da mesma maneira; mas que todos exercem poder e governam e são ao mesmo tempo governados por discursos dominantes compartilhados, que produzem inclusive desejos e necessidades que as pessoas assumem, "naturalmente", como suas13.

Para Foucault "o aspecto negativo do poder - sua força destrutiva - não é tudo e talvez não seja o mais fundamental ou que, ao menos é preciso refletir sobre seu lado positivo, isto é, produtivo, transformador" derivando daqui a afirmação da positividade das relações de poder, de sua eficácia produtiva e riqueza estratégica38. Trata-se de uma positividade que, é importante compreender, não faz referência a julgamentos de valor, do certo e do errado, mas sim à capacidade que as relações de poder têm de construir novos discursos e de produzir novas subjetividades. É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele 'exclui', ele 'reprime', ele 'recalca', ele 'censura', ele 'abstrai', ele 'mascara', ele 'esconde'. De fato, o poder produz o real; produz domínios de objetos e rituais de verdade 38. O poder possui uma eficácia produtiva, uma positividade e são justamente estes aspectos que explicam o fato de que ele tenha como alvo o corpo humano - não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.

Esta analítica de poder foucaultiano nos permite compreender, com maior propriedade, estratégias e mecanismos que são utilizados para governar indivíduos e o social. É possível entender, por exemplo, que as dimensões criativas e instituintes do poder podem gerar, simultaneamente, formas de docilização e de resistência/criação. Esta formulação paradoxal - que desafia a necessidade que temos de atribuir valor a tudo para orientar nossa compreensão do mundo - amplia, em nossa opinião, as possibilidades críticas no que se refere às relações de poder no campo da saúde e a algumas das estratégias centrais ao movimento da Promoção à Saúde.

Na perspectiva pós-estruturalista, o corpo, objeto de saber da Promoção à Saúde, assume uma dimensão que vai além do biológico, constituindo um território de encontro do indivíduo e do coletivo e é, igualmente, significado por dimensões sociais, econômicas, culturais e políticas de um determinado período histórico. Ocorre, aqui, um apagamento das divisões entre o micro e o macro e a constituição de um espaço social que é simultaneamente híbrido e próprio que nos permite refletir com maior profundidade sobre temas e estratégias recorrentes ao projeto de Promoção à Saúde. Estratégias, aparentemente inocentes e naturais, como a intervenção sobre a dieta dos indivíduos objetivando a prevenção e (ou) a redução da obesidade, podem contribuir para a saúde das pessoas e, paradoxalmente, constituir práticas de controle sobre os indivíduos e coletivos.

Sobre o corpo, individual e social, é exercido o bio-poder39, que interconecta e comunica diferentes dimensões das relações sociais explicando que temas como aqueles que fazem referência à conduta sexual dos indivíduos estejam, a todo tempo, imbricados com questões atinentes às políticas públicas de caráter mais amplo40. Estratégias que buscam promover a saúde de doentes crônicos através do ensino de práticas de auto-observação, realização de auto-exames e de exercícios físicos12 podem, em muitas situações, ser modos de exercício de um poder disciplinador através da anatomo-política e da biopolitica que se exerce sobre os corpos individuais e social.

Para o seu funcionamento, a anatomo-política requer, muitas vezes, a estruturação de um sistema disciplinador de recompensas e micropenalidades e a produção de uma subjetividade social que tem como fundamento a responsabilização individual e a confissão de possíveis transgressões13 . Estas tecnologias de poder, desenvolvidas com intuito de disciplinar, transformar e "melhorar" os seres humanos, constituem em última instância processos de subjetivação. É comum, por exemplo, constatar que na relação entre profissionais de saúde e usuários do sistema a escolha saudável "é apresentada como a escolha ideal, a única escolha, [...] sendo esperado dos profissionais persuadir os pacientes de viver a vida mais saudável possível" e que a "possibilidade de que um paciente opte por comportamentos não saudáveis depois de atividades de educação à saúde é, comumente, interpretada pelos profissionais como um fracasso"12.

Por outro lado, através da biopolítica, o biopoder incide sobre o corpo social, utilizando-se de políticas públicas e "verdades" científicas (p. ex., a definição de obesidade como um problema de saúde) para fazer circular idéias que se relacionam com a microfísica do poder e sua vivência no cotidiano. Estes discursos dominantes fortalecem, em algumas situações, a coesão social ao permitir a interação e o compartilhamento de mecanismos de funcionamento social e de discursos comuns aos indivíduos de uma mesma comunidade ou sociedade. No entanto, estes discursos podem produzir, paradoxalmente, exclusão social (p. ex., para os obesos) ou privilégios para certos grupos (p. ex., pessoa com peso considerado normal e, por dedução, um cidadão saudável e responsável).

Neste contexto, o macro e o micro, o exterior e o interior, o coletivo e o subjetivo são dimensões de um mesmo fenômeno - o manejo da população - e são tributários à menor ou maior capacidade de autogoverno de cada indivíduo. Estas formas de gestão de populações têm se mostrado, do ponto de vista do governo, as mais efetivas, as mais insidiosas, as mais recompensadoras, as que geram maior prazer e, é importante lembrar, as que raramente reconhecemos como sendo alheias às nossas próprias vontades. Isto se deve, entre outras explicações, ao fato de que, como nos recordam Nettleton e Bunton41, é mais fácil resistir às manifestações de imposição e autoritarismo do que aos sutis jogos de sedução.

É assim que, na qualidade de membros da classe média, criamos hábitos de consumo de mercadorias objetivando nos tornar mais saudáveis e belos (o que atualmente significa dizer jovens e magros), convencidos de que estes são desejos pessoais. Ao mesmo tempo, queremos que mulheres e homens moradores de favelas sejam empoderados para reivindicarem seus direitos de moradia, educação de qualidade e distribuição de renda eqüitativa. A partir de uma perspectiva pós-estruturalista, ambas estratégias são baseadas no autogoverno e na produção de discursos dominantes com potencial de transformação de quem somos.

É importante, portanto, estarmos atentos para que possamos questionar e refletir sobre a verdade e o discurso que a sustenta. Ser reconhecido como pessoa sadia, reflexiva, comprometida, responsável, emocional e cognitivamente generosa é efeito do empoderamento ou de uma lógica de autogoverno sofisticada? Além disso, devemos perguntar: por que são os pobres os alvos de tantos programas de empoderamento, sobretudo as mulheres nesta condição? Por sua condição de social e economicamente excluídos ou para que adquiram estas mesmas tecnologias do eu que permitem certos modos de governo da população?

O que nós queremos salientar aqui é que o entendimento de processos de produção de subjetividade e governabilidade não garante que a Promoção à Saúde - e nela a estratégia de empoderamento social - seja necessariamente uma solução para as questões sobre a exclusão social e sobre a responsabilidade dos indivíduos com a saúde. Uma interpretação tributária, como viemos afirmando, do pensamento pós-estruturalista e nele, dos aportes teórico-conceituais de Michel Foucault.

Reconhecemos, por outro lado, a dificuldade e limitação que esta perspectiva nos apresenta, no momento em que coloca em questão todo sistema ideal de práticas em saúde por considerá-las, em potencial, como práticas que tendem a disciplinar e governar os indivíduos e coletivos.

Perante este potencial imobilizador da teoria pós-estruturalista, julgamos importante remeter aos escritos tardios de Michel Foucault37,42, em que, indo além do aparente determinismo inicial de sua obra que parecia retratar o sujeito como um mero efeito do poder43, o filósofo define como uma característica marcante das relações sociais o fato de que os sujeitos têm a possibilidade de reagir ao poder e, igualmente, de alterar estas relações. Foucault afirma, diante do caráter repressivo do poder, seu caráter produtivo e emancipador, um paradoxo que nos permite pensar a dinâmica do poder em uma perceptiva libertária44.

Para Foucault, onde houver poder haverá também resistência. Esta ocorrerá devido à dissonância encontrável entre os arranjos centralizadores sobre a gestão de coletivos e a experiência cotidiana dos indivíduos, e também entre racionalidades distintas que procuram consolidar-se como discursos dominantes para constituir verdades de um determinado tempo e lugar. Relações de poder produzem condições de resistência uma vez que, as "tentativas de governabilidade externa não podem simplesmente se impor sobre os sujeitos" porque sempre existirá a possibilidade de que esta seja quebrada uma vez que "cada ator social, cada local, é um ponto de intersecção entre forças e, portanto um ponto de resistência em potencial a qualquer modo de pensar e agir" e lugar de afirmação e de organização de um programa diferente e (ou) de oposição44. Os sujeitos sempre têm a possibilidade de reagir às relações de poder e de alterá-las, refutando a lógica prescritiva e determinista que discursos e práticas dominantes de um dado período histórico tomam como positivas e vantajosas.

A realização deste movimento de resistência e criação vai de encontro, muitas vezes, àquilo que é socialmente aceito, podendo resultar em sanções sociais e econômicas para aquele que se rebela. Vivências e contradições comentadas por Lupton44 quando afirma que [...] o sujeito governado tem uma relação altamente ambivalente com os aparatos de governamentalidade. Em relação à saúde pública e promoção da saúde, por exemplo, os cidadãos continuamente se movem entre resentimento com a natureza de autoridade do estado e sua incursão nas suas vidas privadas e a expectativa de que o estado assuma a responsabilidade de assegurar e proteger a sua saúde.

Exatamente porque o poder é sempre exercido entre sujeitos do poder, cada qual com distintas capacidades e possibilidades para a ação, a resistência é sempre possível. Discursos e estratégias que procuram se estabelecer como verdade disputam esta prerrogativa com outros relatos e construções teóricas, emergindo, deste processo, formas de resistência aos discursos dominantes sobre o corpo, saúde ou prevenção. Observamos este processo, por exemplo, em estratégias e práticas de promoção à saúde que, inspiradas pela lógica mercantilista e consumista do capitalismo neoliberal, investem na produção de corpos saudáveis através de técnicas de domínio e consciência do próprio corpo que podem ser adquiridos apenas através do efeito de um investimento de poder sobre o corpo: ginástica, exercícios, aumento da musculatura, nudismo, glorificação da beleza do corpo [...]Mas uma vez que o poder produz este efeito, inevitavelmente, emerge como resposta, reinvidicações e a afirmações enfáticas, do corpo de cada um contra o poder, da saúde contra o sistema econômico, do prazer contra as normas morais da sexualidade, casamento e decência. De repente, o que fortalecia o poder forte é usado para atacá-lo. O poder, após se investir no corpo, encontra-se exposto a um contra-ataque no mesmo corpo39.

Estas reflexões corroboram, em nossa opinião, a afirmação de que discursos e estratégias de Promoção à Saúde que preconizam o empoderamento tendo como objetivo a produção de uma vida saudável podem se prestar a distintos fins. Se por um lado esta constatação gera um relativismo com o qual os gestores e profissionais não estão acostumados a trabalhar, por outro contribui para romper com o dogmatismo das soluções únicas no momento em que afirma que um mesmo programa pode gerar uma pluralidade de circunstâncias e efeitos conforme as relações de poder que o permeiam.

Considerações finais

A análise que realizamos sugere que, embora seja pertinente reconhecer os potenciais aportes da noção de empoderamento para a promoção da saúde, são necessárias precauções teóricas e práticas antes que a abracemos entusiasticamente enquanto conceito e estratégia centrais à qualificação das práticas sociais e sanitárias.

A partir da perspectiva crítico-social, concluímos que a noção de empoderamento, um dos eixos da Promoção à Saúde moderna, admite interpretações diversas. Destacamos, em um primeiro momento, a existência de uma concepção de empoderamento psicológico que se aproxima das concepções do ideário behaviorista da PS, no momento em que compreende a saúde como uma questão individual. Perante a constatação da insuficiência desta formulação, setores do movimento da Promoção à Saúde preconizam a utilização da noção de empoderamento social/comunitário por considerá-la capaz de contribuir para o avanço de políticas públicas intersetoriais e saudáveis com potencial político para integrar uma agenda pública em prol da cidadania da produção de sujeitos reflexivos, autônomos e socialmente solidários.

Apesar destas reservas, somos de opinião de que o empoderamento social é uma categoria/estratégia que pode contribuir para a consolidação de políticas de saúde de caráter universal e equitativo - como é o caso do Sistema Único de Saúde no Brasil . Indo mais além, julgamos que esta noção contribui para a construção de políticas públicas e sociais que têm como objeto a intervenção sobre os múltiplos determinantes do processo saúde/doença (p.ex., salário digno, moradia, saneamento e acesso à educação). Ela se presta, igualmente, para a superação de estruturas institucionais e ideológicas que dão sustentação ao status quo. Neste estudo, buscamos destacar, a título de exemplo, as contribuições teóricas e práticas da referida categoria para repensar estratégias de educação para a saúde.

Entendemos que o que torna atrativa a proposta de empoderamento social é a sua capacidade de articular estratégias e valores apontando em direção a uma utopia/expectativa coletiva de justiça social. No contexto brasileiro, onde as carências e a exclusão social são elementos que delimitam o potencial de qualidade de vida e saúde ao alcance da maioria, promover saúde deve ser sinônimo de transformação social na direção da justiça e inclusão. Julgamos, portanto, que a estratégia/conceito de empoderamento social, que tem fortes raízes nos trabalhos de Paulo Freire, pode contribuir para a sempre necessária (re)politização dos debates e das práticas em saúde.

Apesar destes aportes, é necessário argumentar que a noção de empoderamento apresenta, paradoxalmente, limitações importantes para instrumentalizar práticas que tenham como objetivo a mudança do status quo na saúde. Mencionamos, entre outras, a insuficiência da referida categoria para compreender múltiplas formas de opressão que ocorrem no cotidiano social, citando como exemplo aquelas que fazem referência a relações de gênero e de raça. Outrossim, consideramos que o conceito/estratégia de empoderamento na Promoção à Saúde, ao se pautar por uma compreensão da temática do poder que se vincula à tradição da ciência e da filosofia política moderna, não se mostra capaz de responder aos desafios postos pelos processos micropolíticos de adestramento, disciplinamento e de manutenção do instituído.

Em seguida buscamos, a partir do referencial pós-estruturalista e das concepções foucaultianas sobre poder, aportes teóricos para a crítica e o desenvolvimento de novas propostas sobre o pensar/fazer saúde e a promoção à saúde. Após tecer considerações sobre o exercício do biopoder, e através dele da biopolítica e da anatomo-política junto a algumas das estratégias centrais da Promoção à Saúde, procuramos discutir o papel produtivo e potencialmente libertário das lutas de resistência às relações de poder que oprimem e dominam indivíduos e coletivos.

Após assinalar o caráter difuso das relações de poder na sociedade, salientamos, a partir de Foucault45, a importância das lutas "contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, desse modo, aos outros", considerando não ser suficiente contrapormo-nos à dominação étnica, de classe social e religiosa e às formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem, sendo necessário, mais do que nunca, construir estratégias que ofereçam alternativas às formas de subjetivação e submissão dominantes. No nosso entendimento, esta perspectiva, marcadamente pós-estruturalista, constitui uma contribuição essencial para entender-mos a temática das relações de poder na sociedade e, com particular interesse, as relações que se fazem presentes no cotidiano das práticas individuais e coletivas em saúde que constituem a subjetividade dos indivíduos.

Ressaltamos, porém, que apesar destes aportes, a perspectiva pós-estrutural, ao enfatizar aspectos processuais das relações de poder, pode levar a um relativismo que coloca em risco a necessária articulação de práticas de saúde, podendo ensejar a fragmentação dos discursos emergentes e a pulverização de programas e políticas que tenham compromissos com a promoção e produção de saúde.

À guisa de conclusão, afirmamos que as teorias crítico-social e pós-estruturalista têm contribuições importantes para a discussão da temática do poder na saúde e para o delineamento de alternativas ao status quo, sendo as primeiras especialmente úteis para apontar formas de intervenção coletivas e as últimas importantes para evidenciar processos que ligam a subjetividade individual a questões de saúde pública. Tentamos, neste trabalho, subsidiar este debate relatando e refletindo sobre os aportes de ambas e, igualmente, seus limites para aumentar a nossa capacidade para co-gerir e inventar processos que promovam simultaneamente a saúde dos indivíduos, dos coletivos e da população em geral.

Colaboradores

SR Carvalho e D. Gastaldo trabalharam na concepção teórica, elaboração, revisão bibliográfica e redação final do texto.

Agradecimentos

À FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - pelo financiamento, mediante bolsa de doutorado, para o primeiro autor.

Artigo apresentado em 07/08/2006

Aprovado em 03/07/2007

Versão final apresentada em 27/07/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2008

Histórico

  • Aceito
    03 Jul 2007
  • Recebido
    07 Ago 2006
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