Acessibilidade / Reportar erro

Mercado de saúde, transição tecnológica e o papel regulatório do Estado: como lidar com as peças desse quebra-cabeça?

RESENHAS BOOK REVIEW

Mercado de saúde, transição tecnológica e o papel regulatório do Estado: como lidar com as peças desse quebra-cabeça?

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio

Setor de Política, Planejamento e Gestão, Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo

Meneses CS. Mercado de saúde no Brasil, qualificação assistencial e transição tecnológica: um desafio regulatório para o Estado [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2005. 379 p.

O título da tese de doutorado de Consuelo Sampaio Meneses, Mercado de saúde no Brasil, qualificação assistencial e transição tecnológica: um desafio regulatório para o Estado, defendida na Unicamp em 2005, consegue sintetizar o conjunto de preocupações que a autora desenvolve no seu extenso e bem cuidado trabalho: mercado de saúde, transição tecnológica e o papel regulatório do Estado. A tese está organizada em quatro grandes capítulos, além de uma bem posicionada discussão feita na conclusão.

No primeiro capítulo, Consuelo Meneses nos faz recordar, apoiada nos trabalhos clássicos de Cecília Donnangelo e Hésio Cordeiro, como a gênese do mercado de saúde no Brasil só pode ser entendida no contexto das complexas, contraditórias e complementares relações público-privado que foram sendo construídas no bojo do processo de industrialização e urbanização que ocorreu, de forma acelerada e concentrada, a partir das primeiras décadas do século passado no nosso país, em especial nos seus grandes centros urbanos.

No segundo capítulo, a autora desenvolve a idéia de que poderiam ser reconhecidos dois modos de realização do capital no mercado privado de saúde. O modo ainda hegemônico, porém com sinais visíveis de esgotamento, é o que resulta da articulação da medicina tecnológica com a indústria de equipamentos e medicamentos, configurando o denominado complexo médico-industrial, cuja lógica se assenta no forte componente de autonomia da prática médica e na produção crescente de procedimentos. O outro modo de realização do capital tem sua expressão mais acabada nos princípios que configuram o que tem sido denominado de Atenção Gerenciada (Managed care). Duas transformações cruciais estão contidas na AG. De um lado, a entrada do capital financeiro internacional no mercado de saúde, buscando aí sua reprodução ampliada; do outro, um ousado movimento de penetrar e interrogar o espaço de autonomia médico, buscando um deslocamento da microdecisão clínica para a esfera administrativa, orientada pelos interesses do capital. A AG, além de instituir mecanismos regulatórios de base financeira que buscam, em última instância, capturar a autonomia do trabalho médico, desenvolve um conjunto de estratégias operatórias (e produtoras de "justificação ideológica") com forte ênfase em processos aparentemente mais centrados nas necessidades dos usuários, através da valorização de equipes multidisciplinares, de modos substitutivos de cuidado, ênfase nas práticas de prevenção e promoção à saúde e procedimentos mais estruturados do gerenciamento do cuidado.

No terceiro capítulo, a autora, utilizando-se com referencial do campo da micro-política do trabalho vivo, tal como tem sido teorizado por Emerson Elias Merhy, o orientador da sua tese, se interroga sobre o alcance das mudanças anunciadas pela Atenção Gerenciada no sentido de caracterizar uma verdadeira transição tecnológica, sinalizando uma reestruturação produtiva no setor saúde. Tal transição tecnológica deveria ser caracterizada, em última instância, e tendo em vista o referencial ético-político explicitamente adotado no estudo, pela capacidade das tecnologias relacionais (escuta, acolhimento, cuidado), denominadas de "tecnologias leves" por Merhy, de passarem a comandar o processo global de cuidado, configurando a transição de um modelo assistencial "procedimento e médico-centrado" a um modelo "usuário-centrado". Por entender que tais transformações podem estar ocorrendo com "o olhar aparentemente voltado para a redução da sinistralidade e dos custos" é que Consuelo afirma que as transformações em curso estariam necessitando de novos instrumentais teóricos e procedimentos metodológicos de investigação mais cuidadosos, para serem apreendidos de forma mais completa. Sua tese de doutorado pode ser vista como uma boa contribuição nesse sentido.

Chegamos, então, ao quarto capítulo, no qual a autora nos apresenta o rico e bem cuidado material empírico de seu estudo. Podemos ler o trabalho de Consuelo Meneses como o desdobramento e aprofundamento de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida entre 2002 e 2003, sob os auspícios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com recursos PNUD, e realizada em sete das maiores operadoras de plano de saúde do país e da qual a autora participou como pesquisadora. O estudo da ANS apontou para a forte relação entre os processos microrregulatórios adotados no mercado de saúde - aqueles que se estabelecem de forma quase autônoma entre prestadores e operadoras, com pouca ou nenhuma regulação estatal - e as configurações de redes e modos de se organizar o cuidado operacionalizados pelos planos de saúde. Mostrou, também, que mesmo que a AG não tenha se implantado de forma plena no Brasil, e seja negada como estratégia pelos dirigentes das operadoras, está em curso um rico processo de experimentação, em nosso país, de estratégias inspiradas em seus princípios e que configuram dois eixos de intervenção. De um lado, a instituição de mecanismos que visam a restringir a autonomia do médico e, do outro, a experimentação de novos modos de organização do cuidado, muitas vezes em espaços físicos diferenciados, que constituem verdadeiros laboratórios (ou ensaios) de formas alternativas de cuidado, com forte ênfase na responsabilização por grupos de pacientes em situação de maior vulnerabilidade, utilizando-se, para tanto, de uma abordagem multidisciplinar que procura deslocar a centralidade do médico e sua prática produtora de procedimentos.

Consuelo retoma e aprofunda, com rigor e cuidado, a investigação realizada em uma das operadoras estudadas na "pesquisa-mãe", uma empresa de grande porte no mercado. A partir de entrevistas realizadas com gerentes estratégicos da operadora estudada, bem com dirigentes de prestadores hospitalares por ela utilizados para compor suas redes de cuidado, a autora vai nos apontar as seguintes conclusões: a) a regulação realizada pelas operadoras se constitui "um princípio, um meio e quase um fim em sim mesma, como um paradigma gerencial"; b) tal regulação não é apreensível à primeira vista, uma vez que é constitutiva da engrenagem e da própria base ideológica do sistema; c) a concepção assistencial é forjada juntamente com os processos de microrregulação, reiterando o que já havia sido apontado na "pesquisa-mãe"; d) o direcionamento de clientela se constitui no principal mecanismo de regulação da utilização de serviços, sendo que todos os demais instrumentos regulatórios estão estruturados para atender às suas determinações; e) a regulação, mais do que o simples controle administrativo do consumo de serviços adotados pelas operadoras, constitui, na verdade, um princípio diretor dos processos gestores e dos processos ligados à prática assistencial desenvolvida pela operadora, aí se inscrevendo com primazia os mecanismos de controle da prática médica; f) por fim, e esse é um achado original do estudo, Meneses nos aponta da "invisibilidade", para o usuário, do processo regulador, via direcionamento adotado pelas operadoras. Ou seja, o encontro da demanda do usuário com a operadora se dá um campo previamente estruturado e regulado, o que se traduz em um arco de possibilidades de acesso a profissionais e serviços que responde, antes de mais nada, à lógica econômica da empresa operadora do plano de saúde.

Diante de tais constatações que o material empírico lhe oferece, a autora faz um duplo questionamento - reiterando o sentido ético-político (e a sua "implicação") presentes no estudo - que pode ser visto como central no seu trabalho: O fato de toda essa concepção de microrregulação e de conformação de modelo assistencial (que lhe é inegavelmente correspondente) estar inscrita em uma racionalidade econômica orientada e pautada pela nova modalidade de capital neoliberal (originário do capital financeiro ou com ele identificado), que disputa o mercado com o capital vinculado ao modelo médico-hegemônico (e, extensivamente, ao complexo médico-industrial) inviabiliza a qualificação dos processos assistenciais, e, mais que isso, pode criar dificuldades reais para o êxito da política regulatória estatal que vem sendo conduzida pela ANS?" (grifos deste autor).

Quanto ao primeiro questionamento, Meneses se encarrega de dizer, em suas conclusões, que considerar as mudanças que estão ocorrendo no setor suplementar em geral, e na operada pesquisada em particular, como puramente guiadas apenas por uma lógica econômica, pode dar a impressão, em uma visão mais superficial, de que as inovações organizacionais que vêm sendo propostas, relativas à modelagem tecno-assistencial em curso na operadora estudada (que é claramente inspirada na AG, mesmo que não integralmente), não carregam em si aspectos positivos para a qualidade dos processos assistenciais ou benefícios concretos para os usuários, o que seria provavelmente equívoco de natureza técnica ou mesmo ideológica. E, aqui, estudos que consigam captar, em alguma medida, como tais transformações são vividas pelos usuários, podem ser um caminho a ser seguido, o que aliás a autora já tem feito na sua inserção como professora e pesquisadora junto ao Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo.

Quanto ao segundo questionamento, referente ao alcance da política regulatória praticada pelo Estado via ANS, e partindo da constatação do alto poder de adaptação e transformação vividas pelas operadoras, traduzido em processos muito dinâmicos e criativos de auto-regulação, na lógica própria do mercado, Consuelo encerra seu trabalho com novas interrogações que o atual "estado de arte" dos estudos sobre o setor suplementar ainda não permite responder com toda a clareza: que marco regulatório deverá ser instituído pelo Estado para penetrar e intervir na formatação do mercado de saúde suplementar? Que brechas a política regulatória estatal precisará utilizar e quais as alianças preferenciais deverá fazer para exercer uma ação instituinte sobre esse campo? Obter respostas, mesmo que parciais, para tais interrogações torna-se uma tarefa central de futuros estudos, na perspectiva de subsidiarem uma ação reguladora estatal que contribua para a qualificação da assistência prestada aos quarenta milhões de brasileiros que se utilizam dos planos de saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br