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Saúde mental e atenção básica em saúde: análise de uma experiência no nível local

Mental health and primary care: analysis of a local experience

Resumos

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que teve como principal objetivo mapear as modalidades de atenção em saúde mental desenvolvidas numa unidade de saúde mista, do município do Rio de Janeiro. Partiu-se do pressuposto que os espaços de produção do cuidado à saúde mental na atenção primária podem contribuir para o processo de inversão do modelo de atenção em saúde mental, em curso no Brasil. Procura-se conhecer os modos de cuidado oferecidos pelos profissionais da unidade às necessidades de saúde identificadas como problemas de saúde mental, elencando para tal alguns eixos de análise: a noção de vínculo/acolhimento, de escuta do sujeito e de integralidade. Esta análise pautou-se na observação participante, na condução de entrevistas semi-estruturadas com profissionais da unidade de saúde e da equipe de Saúde da Família e na coleta de informações dos prontuários, através de um instrumento desenvolvido para tal finalidade. Os resultados deste estudo apontaram que, nas ações de saúde mental na atenção primária, ainda predomina o modelo biomédico de organização da atenção à saúde, a psiquiatrização do cuidado em saúde mental, a burocratização do processo de trabalho e o centramento nas ações intramuros.

Sofrimento psíquico; Atenção primária em Saúde; Programa Saúde da Família; Reforma psiquiátrica


This article presents the results of a research aimed at mapping the mental care services provided in a Primary Care Unit in the city of Rio de Janeiro. The study is based on the premise that today Primary Care can contribute to a change in the mental care model in Brazil. The practices used by the professionals of the units for dealing with problems classified as mental problems are analyzed from the perspective of concepts such as patient-centered care, listening and integrality. The study is based on participant observation, semi-structured interviews with professionals working in a Health Unit and in a Family Health Program besides information collected from medical records using a tool especially conceived for this purpose. The results of this study show that in the mental care actions offered in primary care, the biomedical model, psychiatrization of mental care and bureaucratization of the work process restricting the actions to the Unit are still prevailing.

Mental suffering; Primary care; Family Health Program; Psychiatric reform


ARTIGO ARTICLE

Saúde mental e atenção básica em saúde: análise de uma experiência no nível local

Mental health and primary care: analysis of a local experience

Daniele Pinto da SilveiraI; Ana Luiza Stiebler VieiraII

IAgência Nacional de Saúde Suplementar. Av. Augusto Severo 84, Glória. 20021-040 Rio de Janeiro RJ. daniele.silveira@ans.gov.br

IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz

RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que teve como principal objetivo mapear as modalidades de atenção em saúde mental desenvolvidas numa unidade de saúde mista, do município do Rio de Janeiro. Partiu-se do pressuposto que os espaços de produção do cuidado à saúde mental na atenção primária podem contribuir para o processo de inversão do modelo de atenção em saúde mental, em curso no Brasil. Procura-se conhecer os modos de cuidado oferecidos pelos profissionais da unidade às necessidades de saúde identificadas como problemas de saúde mental, elencando para tal alguns eixos de análise: a noção de vínculo/acolhimento, de escuta do sujeito e de integralidade. Esta análise pautou-se na observação participante, na condução de entrevistas semi-estruturadas com profissionais da unidade de saúde e da equipe de Saúde da Família e na coleta de informações dos prontuários, através de um instrumento desenvolvido para tal finalidade. Os resultados deste estudo apontaram que, nas ações de saúde mental na atenção primária, ainda predomina o modelo biomédico de organização da atenção à saúde, a psiquiatrização do cuidado em saúde mental, a burocratização do processo de trabalho e o centramento nas ações intramuros.

Palavras-chave: Sofrimento psíquico, Atenção primária em Saúde, Programa Saúde da Família, Reforma psiquiátrica

ABSTRACT

This article presents the results of a research aimed at mapping the mental care services provided in a Primary Care Unit in the city of Rio de Janeiro. The study is based on the premise that today Primary Care can contribute to a change in the mental care model in Brazil. The practices used by the professionals of the units for dealing with problems classified as mental problems are analyzed from the perspective of concepts such as patient-centered care, listening and integrality. The study is based on participant observation, semi-structured interviews with professionals working in a Health Unit and in a Family Health Program besides information collected from medical records using a tool especially conceived for this purpose. The results of this study show that in the mental care actions offered in primary care, the biomedical model, psychiatrization of mental care and bureaucratization of the work process restricting the actions to the Unit are still prevailing.

Key words: Mental suffering, Primary care, Family Health Program, Psychiatric reform

Introdução

O escopo desta pesquisa é mapear e analisar as modalidades de atenção e de cuidado em saúde disponibilizados pela atenção básica às pessoas em sofrimento psíquico. Esta investigação toma como ponto de referência a perspectiva do serviço, partindo das concepções e dos modos de ação/intervenção dos trabalhadores em saúde.

Alguns autores têm destacado a relevância da atenção básica como elemento-chave para a promoção da eqüidade nas sociedades com grandes disparidades sociais1. Assim, desde sua criação, em 1994, a Estratégia Saúde da Família (ESF) assumiu grande importância política e social no âmbito do sistema de saúde brasileiro. A ESF nasce então como uma proposta de reestruturação do sistema de atenção à saúde e do modelo assistencial vigente, possuindo mecanismos de alocação de recursos e outros dispositivos de financiamento, que estimulam a sua consolidação e expansão2.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), já em 2003, 80% da população brasileira referiam ter um serviço de uso regular contra 71,2%, em 1998. E o serviço de uso regular mais freqüente era o centro de saúde, tendo sido observado um aumento expressivo na sua participação, entre esses dois períodos3.

Ainda em 2003, o Ministério da Saúde concebe o PROESF como uma proposta de fortalecimento e reorganização da atenção básica através da ESF nos municípios com mais de 100 mil habitantes3, tendo em vista que a implantação da ESF nos grandes municípios tem sido realizada em um quadro muito complexo diante da magnitude e diversidade de situações de pobreza e desigualdades sociais a que está exposta grande parte da população dessas localidades4.

Vanderlei e Almeida destacam que " a principal mudança com a proposta da ESF é no foco de atenção, que deixa de ser centrado exclusivamente no indivíduo e na doença, passando também para o coletivo, sendo a família o espaço privilegiado de atuação" 5. Nesse sentido, para Bodstein3, a concepção da ESF preconiza co-responsabilização entre equipe e população assistida, o que propicia o desenvolvimento de ações intersetoriais que atuariam nos determinantes dos padrões de saúde das populações.

Saúde mental e atenção básica

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os países em desenvolvimento apresentarão um aumento muito expressivo da carga de doença atribuível a problemas mentais nas próximas décadas. Projeções para o ano de 2020 indicam que os problemas mentais serão responsáveis por cerca de 15% de DALYs (Anos de Vida Perdidos por Morte Prematura Ajustados por Incapacidade)6.

Dos países em desenvolvimento que possuem orçamento específico destinado a políticas de saúde mental, cerca de 37% gastam menos de 1% do orçamento do setor saúde com programas voltados à reabilitação psicossocial. Muitos destes países, inclusive o Brasil, testemunharam mudanças importantes no modelo de atenção em saúde mental, com a migração de modelos basicamente hospitalocêntricos para redes de serviços comunitários6.

Dentre as recomendações da OMS para a organização de redes de atenção psicossocial, destaca-se a oferta de tratamento na atenção primária e a organização de ações em saúde mental no contexto comunitário7.

Segundo Onocko-Campos8, no Brasil a prevalência de transtornos mentais severos e persistentes é de cerca de 6%, enquanto a de problemas relacionados ao abuso de substâncias psicoativas é de 3%. Nos últimos anos, tem sido observada uma inversão do padrão de gastos do orçamento do SUS em saúde mental, privilegiando-se os gastos com a rede substitutiva de atenção psicossocial em detrimento da rede de hospitais psiquiátricos.

O processo de reforma psiquiátrica no Brasil tem possibilitado o surgimento de experiências inovadoras e bem-sucedidas oriundas da interação entre saúde mental e atenção básica. As experiências de capilarização e a interiorização das ações de saúde pública, através da Estratégia Saúde da Família (ESF), são expressivas no sentido de demonstrar a potencialidade da incursão de políticas especiais neste cenário, como é o caso da inclusão de ações de saúde mental na ESF. Alguns autores apontam para algumas destas potencialidades: fortalecimento do processo de mudança do modelo médico-privatista, ampliação do controle social, resgate do vínculo entre profissionais de saúde e os usuários do sistema e redução do uso indiscriminado de alta tecnologia na atenção à saúde9.

O conceito de território presente na ESF estabelece uma forte interface com princípios caros à reforma psiquiátrica brasileira, como as noções de territorialidade e responsabilização pela demanda, além de conferir um novo sentido e ordenamento às ações de saúde mental no contexto da atenção básica, tornando possível migrar do modelo das psicoterapias tradicionais para um modelo onde o usuário seja considerado como sujeito-social, numa abordagem relacional na qual o sujeito é concebido como participante de suas redes sociais e ambiente ecológico10.

No entanto, algumas fragilidades ou contradições são identificadas por alguns pesquisadores no desenvolvimento da ESF e parecem ser semelhantes às dificuldades encontradas na operacionalização das políticas de saúde mental no país, dentre as quais destacam-se: a verticalização e normatividade da ESF reforçam o caráter prescritivo e autoritário, típico dos tradicionais programas desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, dificultando a adequação da assistência às realidades locais; o despreparo dos profissionais para lidar com conteúdos ligados ao sofrimento psíquico e às necessidades subjetivas no cotidiano da assistência; a tendência à medicalização dos sintomas e, por fim, a dificuldade de estabelecer de fato serviços de referência e contra-referência9.

Portanto, da perspectiva da construção de estratégias de ação para o SUS, a interação entre ESF e saúde mental ainda demanda clareza e compreensão sobre o poder da ação medicalizante da atenção básica. Nesse sentido, estratégias e orientações para uma atenção à saúde na atenção básica, " de caráter desmedicalizante e ou minimizador da medicalização, tornam-se valiosas e são relativamente escassas" 11.

A relevância da formulação de políticas para a atenção básica que englobem o cuidado em saúde mental estaria justificada no direito do usuário de encontrar em sua unidade sanitária de referência uma estratégia de acolhimento articulada com os demais dispositivos assistenciais presentes na rede de atenção. Deste modo, o conceito de integralidade, como organizador das práticas, exigiria uma certa " horizontalização" dos programas anteriormente verticais, desenhados pelo Ministério da Saúde, superando a fragmentação das atividades no interior das unidades de saúde12.

A incorporação do acolhimento e do vínculo no cotidiano do cuidado em saúde também tem contribuído para desvelar e problematizar a (des)humanização do atendimento, determinada, principalmente pela tecnificação do cuidado à saúde13. Para Ayres14, este cuidado é atravessado permanentemente pelas intervenções técnicas em saúde, " mas não se restringe a elas, encarna mais ricamente que tratar, curar ou controlar aquilo que deve ser a tarefa prática da saúde coletiva" . Já Schmith e Lima15 lembram que a acolhida prevê plasticidade, que é a capacidade de um serviço adaptar técnicas e combinar atividades de modo a melhor respondê-las, adequando-as a recursos escassos e aspectos sociais, culturais e econômicos, presentes na vida diária. Dadas estas considerações, as noções de vínculo e de acolhimento podem contribuir para uma abordagem mais compreensiva dos problemas mentais na ESF e nos demais serviços da atenção básica.

Metodologia

Esta investigação constitui-se em um estudo de caso qualitativo, no qual foram utilizados diversos recursos de coleta de dados, como observação participante, registro das observações de campo, entrevistas semi-estruturadas com informantes-chave, além da coleta de informações nos prontuários através de um instrumento desenvolvido para este fim.

Alguns autores16,17 consideram que a microetnografia caracteriza-se por ser um tipo específico de estudo de caso, podendo-se fazer uso deste termo quando o estudo é conduzido em unidades pequenas dentro de uma instituição ou quando o cerne da investigação concentra-se em uma atividade organizacional muito específica.

O método utilizado para trabalhar as informações obtidas ao longo do processo de coleta de dados foi a análise de contéudo, em sua modalidade de análise temática.

A escolha da técnica de análise temática, através da categorização dos temas que emergem do conteúdo discursivo dos entrevistados, justifica-se por ser bastante pertinente à análise do material produzido por meio das entrevistas semi-estruturadas ou nas palavras de Bardin18, por ser " rápida e eficaz na condição de se aplicar a discursos diretos (significações manifestas) e simples" .

Starfield19 propõe algumas dimensões de avaliação da atenção básica em saúde, das quais, para este trabalho, optou-se por utilizar vínculo/longitudinalidade e integralidade. O conceito de vínculo ou longitudinalidade refere-se à utilização regular do estabelecimento pela população e na análise do material desta pesquisa teve a função compreender os modos de recepção e encaminhamento dos usuários com queixas neuropsiquiátricas que buscam a rede básica de saúde. Já a noção de integralidade contempla a facilidade em acessar os demais níveis de atenção e a integração com os serviços de outros setores sociais e na análise foi utilizada como marcadora dos modos de organização das ações na atenção básica, em face às necessidades e demandas por cuidados em saúde mental apresentadas pelos usuários.

Foi acrescido às duas categorias supracitadas o conceito de escuta do sujeito, que como conceito analisador das práticas de cuidado em saúde mental20 - derivado de uma compreensão não-psicológica, exteriorizada e não-individual de sujeito - auxiliou a explicitar as concepções de saúde/doença dos profissionais em saúde ao lidar com a questão do sofrimento psíquico.

Aspectos éticos

O Projeto de Pesquisa que resultou nesta investigação foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, tendo sido aprovado para fins de sua realização, de acordo com as normas do comitê supracitado. Ademais, ao longo da descrição e análise dos dados, tomou-se o devido cuidado de omitir quaisquer informações que pudessem levar à identificação dos sujeitos da pesquisa, haja vista o contrato firmado com os mesmos por meio do termo de consentimento.

Sujeitos da pesquisa

Os sujeitos da pesquisa foram profissionais médicos (4), profissionais de saúde não-médicos (6), técnicos de saúde (2) e agentes comunitários de saúde (2), que desenvolvem suas atividades na unidade de saúde ou na comunidade (através da Estratégia Saúde da Família). A opção por entrevistar apenas os profissionais, técnicos ou agentes comunitários de saúde – e não incluir a perspectiva dos usuários da unidade – deve-se ao desejo de privilegiar as concepções, falas e condutas destes atores sociais.

Contexto da pesquisa

A pesquisa realizou-se num Centro de Saúde Escola, caracterizado por ser uma unidade de saúde mista, onde convivem o tradicional modelo assistencial em saúde pública e o modelo da Estratégia Saúde da Família – este último restrito, no período da pesquisa, a duas comunidades da área de abrangência da unidade.

Com o intuito de situar melhor a dimensão das demandas de saúde mental em relação aos demais problemas de saúde que chegam à unidade pesquisada, é disposta, na Tabela 1, a distribuição das cinco principais causas de atendimento dos pacientes do Centro de Saúde, de acordo com a classificação do CID e a faixa etária do usuário.

Esses dados são o resultado do levantamento feito durante a pesquisa junto à equipe do Setor de Documentação e Informação em Saúde, a partir do instrumento de coleta de dados, desenvolvido para este trabalho.

O fato da saúde mental aparecer entre as três principais causas de consultas nos maiores de 15 anos faz indagar se isso se deve realmente a uma incidência significativa de transtornos mentais na comunidade. Esta informação parece dizer respeito à oferta de algumas modalidades de atendimento em saúde mental, na unidade. A unidade de saúde tem diversos profissionais de saúde mental que desenvolvem atividades voltadas para pessoas em sofrimento psíquico. Um destes programas (Núcleo de Dependência Química) destina-se ao acolhimento de pessoas em dependência alcoólica ou outras dependências químicas, sendo que o trabalho desenvolvido possui uma boa repercussão na comunidade, o que justificaria, em parte, a maior busca da clientela masculina por atendimentos psiquiátricos (como pode ser observado na Tabela 2).

Outro dado interessante a ser notado refere-se à prevalência de morbidade atendida, quando se observa que, na faixa etária de 15 a 49 anos, a segunda maior causa de atendimento à clientela masculina corresponde a problemas psiquiátricos. A relação que pode ser estabelecida a partir desta informação remete, mais uma vez, à consideração anterior pertinente aos problemas de abuso do álcool e outras drogas, aparentemente mais prevalentes em pessoas do sexo masculino, o que provoca de modo expressivo um destaque da categoria " problemas mentais" nesta parcela dos usuários da unidade. Observe-se que, no mesmo grupo etário, a clientela feminina encontra como principais motivos para acessar a unidade sanitária necessidades de saúde referente aos cuidados materno-infantil (pré-natal) e problemas referentes à saúde da mulher (ginecologia).

Análise dos resultados

As principais modalidades de recepção e produção do cuidado em saúde mental desenvolvidos pelos profissionais da Unidade de Saúde e da ESF podem ser agrupadas em três modos de agir em saúde. O agrupamento realizado objetiva uma primeira aproximação com o mapeamento das ações de atenção em saúde mental na rede básica, no contexto estudado.

A primeira modalidade de produção deste cuidado consiste na realização de atendimentos psicológico-psiquiátricos, que giram em torno de dois eixos principais, configurados como espaços de produção do cuidado distintos, porém não-excludentes: a psicoterapia de orientação analítica e a consulta psiquiátrica tradicional. No primeiro eixo identificado, os atendimentos psicoterápicos realizados possuem uma orientação predominantemente psicanalítica, na modalidade de consultas individuais, realizadas por profissionais de psicologia ou de psiquiatria. Já o espaço da consulta psiquiátrica é destinado, principalmente, à avaliação, prescrição e manutenção do uso de medicamentos psicoativos.

Uma segunda modalidade centra-se em atividades coletivas de promoção e prevenção à saúde, que se configuram em atividades semanais, extra-consultório, realizadas no espaço da unidade de saúde por profissionais de enfermagem, serviço social ou psicologia. As estratégias de produção do cuidado consistem, principalmente, na realização de grupos temáticos (nos quais são discutidos conteúdos específicos como planejamento familiar, cuidado materno-infantil ou problemas específicos de saúde) e de grupos não-temáticos, denominados também de grupos de vida saudável. Entretanto, é interessante notar nas falas de alguns profissionais de saúde a preferência pela realização dos grupos não-temáticos, reconhecidos como sendo espaços propícios para discussões mais ricas e produtivas: Os grupos em que eu, como enfermeira, fiz e que mais gostei foram os grupos em que não havia tema nenhum. Chamam-se grupos de vida saudável, então eu ia e aí a gente começava a discutir, nem que fosse um tema de novela. Daí a gente discutia um monte de coisa. Foi um dos que eu achei mais produtivos com a comunidade.

Isso parece indicar algumas das possibilidades de desenvolvimento de ações de promoção da saúde mental na comunidade, em torno de um elemento altamente produtor de significação: a palavra. O intercâmbio de experiências, de vivências peculiares, mas, também, o compartilhar de situações e de sentimentos pelos usuários da unidade favorece a apropriação do espaço da atenção básica, enquanto campo potencial de troca, pactuação e integração na vida social. Uma tendência bastante interessante, na realização destas ações em saúde coletiva, pode ser a criação de grupos de auto-gestão na própria comunidade (à semelhança de grupos de convivência), em que a presença do profissional de saúde fosse apenas ocasional, interagindo com o grupo enquanto um elemento propositor de questões. Esta é uma estratégia legítima, desde que seja considerado que a vida cotidiana é o espaço onde se manifestam as articulações entre os processos biológicos e sociais que determinam a situação de saúde; é também, portanto, o espaço privilegiado de intervenção da saúde pública21.

O último e terceiro modo de produção das ações de saúde mental identificado no cenário estudado corresponde à criação de um conjunto de estratégias territorializadas de atenção à abordagem da dependência química, portanto, envolvendo ações de cuidado à uma clientela específica: os usuários com história de abuso de substâncias psicoativas. Estas ações são desenvolvidas por uma equipe de saúde composta por profissionais de saúde com formação médica (um psiquiatra e um clínico) e quatro agentes comunitários de alcoolismo (ou conselheiros). O trabalho sustenta-se no atendimento ambulatorial intensivo e no programa de semi-internato, através do aconselhamento em grupo ou individual. Ao longo das observações e entrevistas realizadas, foi possível perceber que o Núcleo de Dependência Química do Centro de Saúde configura-se numa estratégia que busca articulação com as ações da equipe de Saúde da Família e com as ações realizadas no próprio interior da unidade, principalmente com os profissionais da clínica médica.

Sobre o vínculo/longitudinalidade

Em relação ao vínculo enquanto modo de produção do cuidado em saúde, as falas dos entrevistados apontam para certos problemas, que dificultam tanto a recepção do usuário na unidade, quanto o seu percurso pelos demais programas de atendimento. Parece que um dos fatores mais proeminentes refere-se à reorganização da porta de entrada da unidade: É tudo muito delicado, muito sutil. Agora, eu fico preocupada: quando chegarem as outras equipes [de PSF], o que vai acontecer? A unidade básica, o trabalho de ponta, de fato, a porta de entrada vai ser feito pelo PSF, né, então o PSF vai reorganizar e assumir para si a assistência e o vínculo com essa comunidade, por completo. E o centro de saúde? Ele já tem de estar se preparando para ser a unidade de referência.Vai ser como? O generalista não dá conta de tudo, certo?

A fala de muitos profissionais de saúde reitera que o primeiro obstáculo enfrentado pelos usuários e, em especial, por aqueles que demandam cuidados em saúde mental, refere-se à dificuldade no acesso aos atendimentos psicológico-psiquiátricos ofertados pelos profissionais da unidade. Essa tendência parece agravar-se quando os encaminhamentos originam-se no PSF: Então não é que ele não aceite a demanda do PSF. Todos eles aceitam a demanda de todos, só que, para entrar, tem uma lista de espera.

Como se pôde observar, a acessibilidade aos cuidados em saúde mental na atenção básica é um problema a ser considerado quando se pensa no planejamento e na reorganização das ações de saúde mental neste primeiro nível de assistência e, de modo muito singular, quando se propõe a inclusão destas ações no PSF.

Sobre a escuta do sujeito

De modo geral, a escuta do sujeito no cuidado em saúde mental produzido pelos profissionais do Centro de Saúde segue o modelo biomédico tradicional. Na clínica psiquiátrica tradicional, a observação dos sintomas do doente corrobora a supremacia que o olhar mantém perante a escuta do sofrimento do usuário.

As estratégias de intervenção dos profissionais de saúde da unidade parecem embasar-se nas fórmulas da racionalidade médica, em sua tradição cartesiana: problema-solução e doença-cura. O equacionamento das demandas de cuidado em saúde mental baseado na escuta do sujeito, e não na escuta da doença, é um recurso pouco utilizado pelos profissionais da atenção básica.

A escuta clínica é fortemente guiada pela nosologia psiquiátrica, constatando-se inclusive uma tentativa de organizar uma tipologia da clientela em torno dos quadros diagnósticos mais freqüentes, como é possível observar no relato a seguir: A gente acaba tendo uma situação que abre as portas para todos os tipos de pacientes. Então, do ponto de vista da nosologia tradicional, todas as situações, pacientes neuróticos como a clientela habitual de consultórios, pouco atendida nos serviços psiquiátricos tradicionais, que prioriza os casos psicóticos. Tem bastante isso, pela vinculação com a clínica médica, talvez, o quadro clínico mais comum seja a histeria, pela vinculação com a clínica e pelo fato de que há um serviço de atenção primária, a clientela é predominantemente feminina, pela questão do horário de atendimento, no centro de saúde. Mas, enfim, neuróticos são os pacientes que a gente acaba encaminhando para um atendimento psicoterápico aqui; temos também pacientes psicóticos, por essa espécie de substituição da rede de atenção, e também situações orgânicas cerebrais de demência, esquizofrenia, epilepsia, crianças com problemas de transtornos emocionais e infantis que a gente também atende psicoterapicamente.

É importante perceber uma diferença significativa no tocante a esta questão quando localizada na esfera do PSF. A escuta conferida pela equipe de Saúde da Família às situações em que a saúde mental surge como necessidade de saúde revela-se uma escuta mais integrada dos problemas de saúde, em que o sofrimento psíquico grave aparece como mais um problema de saúde que precisa também ser abordado e cuidado: Existe uma série de condutas, envolvendo o controle do uso de psicofármacos que a gente tem conseguido trabalhar bastante bem. Outros pacientes chegam com um quadro psiquiátrico bastante grave; ansiedades crônicas, depressão, queixas orgânicas, isso o clínico vê todo o dia, né? E ele de alguma maneira tenta abordar. É o que chamam de conúbio, né? É um conjunto de doenças, uma articulada com a outra. Artrose e depressão, dor crônica, artrose e hipertensão. É um conjunto de doenças articuladas. É a depressão da dor e a dor da depressão.

Ao continuar a análise da escuta do sujeito oferecida pelos trabalhadores em saúde à problemática do sofrimento psíquico, é possível perceber, em alguns relatos, a compreensão do fenômeno do adoecimento psíquico de um modo mais amplo, englobando, por exemplo, o meio que o circunda. Esta concepção de exterioridade na produção dos problemas psiquiátricos aponta para a inclusão de outras dimensões constituintes do processo de subjetivação das pessoas no campo da atenção à saúde.

Porém, uma concepção de problema de saúde mental enquanto desvio da norma também está fortemente presente no discurso dos profissionais e técnicos de saúde. No entanto, como já referido, a dimensão social que reflete as condições de vida dessas pessoas aparece sempre como um dos elementos mais significativos para explicar o aparecimento de problemas psiquiátricos, o que sugere uma explicação do fenômeno com base nos determinantes sociais: Olha, eles [agentes de saúde] estão muito centrados na dependência. Desvio de comportamento por dependência química. Que gera violência e isso chama a atenção. Agora, tem uma coisa muito interessante e eu acho muito cruel: o que parece absurdo para uns é comum para outras pessoas. Como eu vou te dizer o que é isso? Os gritos do pai com a mãe, as surras, eu não sei em que nível isso chama mais atenção.

Essas considerações reportam, também, para o risco da psiquiatrização do sofrimento psíquico e de psicologização dos problemas sociais. A partir destas concepções dos técnicos e profissionais de saúde, constata-se um dos impasses da produção de ações em saúde mental na atenção básica, dado o compromisso, por exemplo, do PSF com ações de saúde comunitária e familiar. Antes de colocar-se esta questão como mero impasse ou impedimento para pensar sobre a inclusão da saúde mental no PSF, quer-se privilegiar a importância da reflexão sobre esta temática e, indo além, deseja-se apontar proposições e estratégias possíveis de ação neste campo.

Sobre a integralidade na atenção

No tocante ao modo de organização das ações de saúde mental pelos profissionais de saúde da unidade, percebe-se um padrão de atendimento que gira em torno das consultas individuais, através do dispositivo do agendamento, o que parece não facilitar o fluxo da demanda da comunidade por cuidados psicológico-psiquiátricos: Se chegar um surtando, a gente não tem nem profissional para atender. Acaba sendo chamada a segurança, porque se o [Dr. Y] não estiver aqui e não estiver nenhum psiquiatra, e se for uma coisa mais voltada para a psiquiatria, porque isso não é nem com o psicólogo, se não tiver, acaba se chamando um clínico, acaba se chamando a segurança para conter a pessoa e o clínico é que vai atender, porque não tem o psiquiatra para fazer a abordagem, para ver, por que de repente é uma pessoa que abandonou o acompanhamento, que abandonou o tratamento, parou de tomar remédio porque não consegue marcar, porque o doutor está de férias, porque o horário não é compatível, então, a gente percebe que há uma oferta muito pequena para essa população.

Essa última fala pontua a ausência de um planejamento integrado das ações voltadas para a atenção em saúde mental na unidade e indica um cuidado não integral das questões de saúde, em que o usuário em sofrimento psíquico aparece como um elemento estranho e desestabilizador da rotina assistencial dos profissionais. Uma abordagem psicossocial das questões de adoecimento psíquico no espaço da atenção básica parece, portanto, encontrar-se neste caso despotencializada. Além da desarticulação interna do trabalho em saúde mental, outras falas reforçam a existência de muitos problemas com relação ao sistema de referência da rede de saúde. Isto se expressa, por exemplo, no desconhecimento dos profissionais da unidade acerca dos demais dispositivos de atenção em saúde mental existentes na área e nas dificuldades encontradas no trabalho cotidiano para viabilizarem encaminhamentos seguros.

Há, ainda, que se considerar que a fragilidade do sistema de referência da rede de saúde constitui um dos nós críticos para a configuração dos dispositivos de atenção diária enquanto estratégias de cuidado substitutivas ao dispositivo hospitalar – e não meramente alternativa. Numa análise do papel dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nesse processo, eles podem ser caracterizados como uma experiência em saúde coletiva ainda em construção.

O processo de ampliação e de consolidação dessas estruturas de cuidado em saúde mental é gradual. Isso faz refletir quanto à importância de considerar-se no planejamento da inversão do modelo assistencial em saúde mental outras estratégias de atenção territorial, para acolher e cuidar dessas pessoas que necessitam de um acompanhamento psicossocial.

Devido ao número reduzido de CAPS no Brasil - em 2004, eram 534 unidades em funcionamento22 - e à sua função de instância organizadora da porta de entrada da rede de atenção em saúde mental, acredita-se que não devem ser concebidos como o único dispositivo estratégico a responsabilizar-se pelo cuidado à saúde mental de um determinado território. Uma aproximação entre os CAPS e a atenção primária – em especial, com o PSF – amplia o potencial desses serviços como agenciadores de novos modos de cuidado, que possa realmente prescindir do recurso hospitalar.

Porém, os resultados da pesquisa sugerem a falta de preparo dos profissionais de saúde da rede básica para receber e cuidar de pessoas com transtornos psíquicos graves, principalmente quando os usuários são pessoas com histórias de múltiplas internações psiquiátricas.

A orientação das políticas de atenção à saúde mental, no Brasil, ao redirecionar as ações paras os serviços extra-hospitalares e territoriais, convoca que novas estratégias de cuidado sejam consolidadas e antigos padrões assistenciais sejam superados. Entretanto, nas falas dos profissionais de saúde da atenção básica, foi trazida, recorrentemente, a dificuldade de reorganização da rede básica para operar de acordo com estas transformações político-institucionais: Essa pessoa se torna um peso porque o hospital agora não aceita mais, né, é desospitalizar, cuidar ambulatorialmente, e aí? Eu sou totalmente a favor disso, mas acho que o outro lado tinha de ser preparado para receber, os profissionais para receber e a rede básica para receber.

Outra profissional exprime algumas preocupações que expressam bem o descontentamento de alguns trabalhadores em saúde da atenção básica com a ausência de um planejamento que contemple as necessidades exigidas para a execução de uma política de saúde mental neste cenário – com todas as peculiaridades de uma política especial: É essa coisa: a rede básica tem de estar preparada para tudo, mas não estão qualificando, não tem. A gente só tem esses dois psiquiatras, para distribuir também, porque a nossa psicóloga é estagiária e agora ela é cooperativada. No dia em que o psiquiatra se aposentar, fedeu, o outro é pesquisador. Quando eu digo que eles são poucos, também, talvez por isso, a própria dificuldade de pensar ou organizar um serviço básico, porque é complicado.

Outra consideração importante é levantada por alguns profissionais de saúde, que pontuam sua preocupação com a entrada dos especialistas no PSF, o que na sua percepção acarreta alguns riscos, principalmente, o da reprodução do modelo assistencial em saúde: O medo é esse: justamente você botar um disso, um daquilo, um daquilo outro e reproduzir o modelo. Mas eu sinto falta, talvez porque eu seja do modelo antigo, não sei, mas não é bem assim que a gente pode se virar. Esse generalista, não dá para... Por exemplo, gestante obesa acaba com a nutrição do filho. Acho que há um profissional na rede, especializado, que tem que contribuir com isto. Tanto que, quando a gente foi montar a grade de orientações alimentares, a gente foi procurar e eles disseram que a gente podia fazer. [grifos nossos]

Em outros relatos, encontram-se indicações de que a inclusão de outras especialidades no PSF, apesar de ainda restrita a alguns campos de saber (saúde bucal, por exemplo), encontra no bojo da implementação de políticas especiais de atenção à saúde – como no caso da saúde mental – um incentivo ao incremento das ações de saúde coletiva na atenção básica. Incentivo este que se sustenta, inclusive, no ideário da integralidade das ações de atenção à saúde. A multideterminação dos problemas de saúde que atingem as comunidades exige respostas variadas e igualmente complexas que não se restrinjam a ações de cunho médico, nas quais prevalecem abordagens curativas e assistenciais, mas que coloquem em cena novos elementos no campo de forças da construção da saúde, nas quais múltiplos fatores convivem e intervém: biológicos, sociais, econômicos e ambientais.

O lugar do profissional de saúde mental aparece no discurso dos atores institucionais como sendo de orientação e supervisão das equipes de Saúde da Família. Deslocar a saúde mental do espaço de isolamento que, tradicionalmente, ocupa na Saúde Pública exige uma renovação e recolocação do problema das ações de saúde mental na atenção básica.

Como atualmente a ESF encontra-se em processo de expansão nos grandes centros urbanos, observa-se uma certa expectativa de que o programa possa vir a ser a reestruturação da atenção básica, também nas capitais brasileiras23-25. Algumas questões levantadas nos relatos dos entrevistados coincidem com a problematização realizada por alguns autores acerca da implantação da ESF nas áreas metropolitanas, como por exemplo: despreparo e qualificação insuficiente dos profissionais para atuar no modelo da ESF; formato padrão/rígido para composição das equipes sem respeitar as particularidades locais; insuficiência de mecanismos de relação do PSF com outros serviços; dinâmica urbana complexa; violência urbana, além de dificuldades de interação entre novos saberes e novas práticas para ações coletivas e sociais no contexto da ESF12.

Discussão

Neste estudo, as estratégias encontradas para enfrentar o problema do adoecimento psíquico na atenção básica delinearam uma tendência à produção do cuidado em saúde mental através de ações intra-muros, ou seja, que ainda privilegiam e encontram no lócus da unidade sanitária o principal espaço de co-produção da saúde. Em consonância com esta observação, as ações extra-muros estendidas ou criadas no espaço comunitário –utilizando a ESF como uma via privilegiada para o incremento destas ações na atenção básica – são restritas a uma única estratégia de cuidado, dirigida a uma clientela bastante específica, que são os usuários com problemas de abuso de substâncias psicoativas, em especial o álcool e outras drogas.

Foram identificados, de modo mais sistemático, três modos de agir em saúde utilizados pelos técnicos e profissionais da unidade para lidar com a problemática do sofrimento psíquico na atenção primária: atendimentos psiquiátrico-psicológicos que englobam a intervenção psicoterápica e a intervenção medicamentosa, atividades coletivas de promoção e prevenção em saúde e estratégias territorializadas de atenção à saúde dirigidas à abordagem da dependência química.

No cenário estudado, os fatores responsáveis por desencadear os problemas de sofrimento psíquico, apontados pelos trabalhadores em saúde, são componentes de um amplo espectro, do qual fazem parte graves problemas de desigualdade social, desemprego, baixo poder aquisitivo, chegando a questões de desagregação familiar, violência doméstica e situações de abandono.

As falas dos profissionais entrevistados revelaram uma desarticulação das ações de saúde mental produzidas na ESF e na unidade de saúde, fato este que favorece a produção de ações isoladas, nas quais o acolhimento e a escuta do sujeito são pouco explorados pela equipe. Isto expressa, também, a reprodução e não a inversão do modelo assistencial que, em princípio, poderia ser deflagrado pela dinâmica das ações organizadas pelas equipes de Saúde da Família.

Como visto, pouca articulação e pactuação existem entre os profissionais de saúde mental que prestam atendimento na unidade e os técnicos e profissionais envolvidos com o trabalho na ESF. Um trabalho de retaguarda ou suporte dos profissionais de saúde mental da unidade à equipe do PSF não existe como estratégia de ação e apresenta-se como de difícil implementação.

A análise dos resultados apontou que a reorganização das ações em saúde mental no Centro de Saúde e no PSF deve considerar: a) a escassez de recursos humanos qualificados para o trabalho em saúde mental e, em especial, para conjugar as ações de saúde mental no âmbito do PSF; b) as dificuldades na acessibilidade dos usuários às ações e serviços de saúde mental, pois o acesso apresenta-se como primeiro obstáculo a ser superado pelo usuário que busca atendimentos em saúde mental; e c) a necessidade de desburocratização do processo de trabalho, dado que no presente estudo observou-se a carência de um trabalho coordenado entre os diversos profissionais de saúde mental e entre as demais equipes da unidade.

As potencialidades identificadas na interface entre a saúde mental e a ESF referem-se de modo especial à possibilidade de descentramento das ações desenvolvidas intra-consultórios e de despsiquiatrização do cuidado em saúde mental.

As principais limitações deste estudo relacionam-se ao desenho do mesmo. Por ser um estudo de caso, de natureza qualitativa, os resultados aqui descritos devem ser utilizados com cautela, não sendo possível sua generalização para outros contextos. A análise desta experiência local deve ser compreendida como derivada do contexto no qual está inserida.

Ademais, ressalta-se que, como esta investigação focalizou a perspectiva dos profissionais da ESF e da Unidade de Saúde, a análise das práticas e do modo de organização das ações de saúde mental na atenção básica restringiu-se à percepção dos trabalhadores em saúde, não englobando ou contrapondo a perspectiva dos usuários dos serviços.

Considerações finais

A ESF parece ser uma tecnologia de produção do cuidado em saúde às pessoas em sofrimento psíquico a ser explorada e melhor desenhada enquanto possibilidade de atenção comunitária em saúde mental.

Alguns riscos da formulação de políticas e de inclusão de ações de saúde mental no PSF podem ser expressos em fenômenos como a ampliação do saber-poder psiquiátricos, a psicologização dos problemas sociais, a ampliação e a ambulatorização da demanda.

Dadas estas situações de difícil previsão e manejo, constata-se que a implementação de uma política pública especial que contemple os usuários em sofrimento psíquico no contexto das políticas da atenção básica em saúde envolve o reconhecimento de que ainda há a supremacia do modelo biomédico na organização das ações nesse setor. Sendo assim, enquanto política de saúde pública local, a inserção da saúde mental no PSF exige a ruptura destes antigos padrões assistenciais e a superação da racionalidade médica moderna, ainda hegemônica nas ações de cuidado que são conduzidas.

O planejamento das ações em saúde na atenção básica integrado às políticas locais de saúde mental poderia auxiliar na definição de competências de cada dispositivo da rede de atenção e conduzir a uma integração maior das ações desenvolvidas nas comunidades.

Colaboradores

DP da Silveira desenvolveu as etapas de desenho metodológico, coleta e análise de dados da pesquisa, bem como trabalhou na concepção e na redação final do estudo. ALS Vieira colaborou na metodologia do estudo e na revisão crítica do artigo.

Artigo apresentado em 08/06/2005

Aprovado em 03/05/2007

Versão final apresentada em 10/09/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2009

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2005
  • Aceito
    03 Maio 2007
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