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Sobre as pesquisas, suas conseqüências e interesses

About research, its consequences and interests

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Sobre as pesquisas, suas conseqüências e interesses

About research, its consequences and interests

Paulo Amarante

Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. laps@ensp.fiocruz.br

O artigo "Situação de crianças e adolescentes brasileiros em relação à saúde mental e a violência" aborda um tema de extrema relevância na medida em que crescem os indícios do aumento da violência em praticamente todos os segmentos da sociedade. Seja pelo avanço do tráfico de drogas, acompanhado pelo tráfico de armas, seja pelo aumento de conflitos bélicos, que afetam a todos, mas, particularmente, crianças e jovens.

O artigo realiza uma extensa revisão bibliográfica, de uma seleção não sistemática, de estudos epidemiológicos desenvolvidos em escolas e comunidades brasileiras, relacionando-os também com as pesquisas realizadas em nível internacional.

As autoras destacam ainda a escassez da rede de atendimento voltada para os problemas de saúde mental de crianças e adolescentes, assim como a falta de preocupação, entende-se que por parte do Estado e dos profissionais especializados, com a prevenção da doença mental e com a promoção da saúde mental. Finalizam com a elaboração de algumas questões e perspectivas para o atendimento deste segmento populacional.

A bibliografia é organizada de acordo com a natureza da origem da violência, se familiar, escolar ou comunitária. Na medida em que as autoras consideram violência um fenômeno que engloba todas as formas de maus-tratos físicos e emocionais, abuso sexual, descuido ou negligência, exploração comercial ou outro tipo, que originem um dano real ou potencial para a saúde de crianças e adolescentes, é interessante notar a ausência de bibliografia sobre a violência cometida pelo Estado através das instituições correcionais e de saúde, mais especificamente pela área da psiquiatria ou da "saúde mental" e das instituições de educação e bem-estar, como os orfanatos e educandários que mantém as características de instituições totais1 dos reformatórios e casas de correção.

No caso das instituições de internamento psiquiátrico de crianças e adolescentes, existem inúmeros registros relacionados aos maus-tratos e à violência praticada nestas instituições. A pesquisa de Bentes2 é uma boa fonte de consulta, dentre muitas outras, sobre a dimensão da violência nestas instituições.

Por outro, é interessante aprofundar a análise tanto sobre as chamadas intervenções clínicas, muitas das vezes de natureza notadamente disciplinares e corretivas, quanto sobre as próprias pesquisas epidemiológicas.

Uma pesquisa realizada há duas décadas e meia por Almeida Filho3 tem sido uma fonte ainda permanente de reflexão sobre as pesquisas epidemiológicas e sobre as práticas preventivas, inclusive sobre esta associação entre os dados encontrados nas pesquisas epidemiológicas e sua utilização nas políticas e programas de prevenção dos transtornos mentais e na promoção da saúde mental. O autor desenvolveu uma das mais interessantes críticas ao modelo da psiquiatria preventiva no campo da infância e adolescência a partir da seguinte questão: em que medida as pesquisas epidemiológicas acabam induzindo comportamentos considerados patológicos ou, ainda, em que medida tais pesquisas ressignificam e reforçam estigmas e preconceitos contra pessoas que tenham alguma forma de comportamento diverso da média socialmente considerada normal?

Almeida Filho3 considera que um dos conceitos básicos da medicina preventiva é o de história natural das doenças de Leavell & Clarck, que possibilita o desenvolvimento de "técnicas de screening para o exame massivo das populações, com a finalidade de detectar e tratar casos de inúmeras doenças, como, por exemplo, tuberculose pulmonar, cardiopatias, neoplasias e outros".

A psiquiatria preventiva adotou o modelo da história natural das doenças e a importância do screening ou "caçada ao doente" ou "busca de suspeitos" ou ainda a "vigilância epidemiológica ativa", nas palavras de Caplan4, o mais importante autor no campo da prevenção em psiquiatria e dos programas de saúde mental comunitária, como ficaram conhecidos e foram implantados nos Estados Unidos.

Enfim, o autor conclui que não se pode simplesmente estender o modelo de Leavell & Clarck para uma história natural das doenças mentais, como ainda considera que se deve "denunciar a sua potencialidade iatrogênica", na medida em que a própria investigação propiciaria práticas estigmatizantes e patologizantes.

Na tradição foucaultiana da análise da clínica5, poder-se-ia considerar que o olhar clínico, ao mesmo tempo em que produz saber sobre o objeto pesquisado, produz o próprio objeto como patologia. Dizer o que está sendo visto, fazer ver o que está sendo dito.

Um outro aspecto diz respeito à metodologia destes trabalhos epidemiológicos, que pressupõem que as entrevistas ou outras formas de coleta das informações da pesquisa não sofrem influências culturais, étnicas ou lingüísticas. Por exemplo, na "Escala de Rastreamento Populacional para depressão (CES-D) em populações clínica e não-clínica de adolescentes e adultos jovens"6 existem tais quesitos: "senti-me incomodado com coisas que habitualmente não me incomodam", ou "senti que tive que fazer esforço para dar conta das minhas tarefas habituais". Outro exemplo é a "Escala de Avaliação de Transtorno Obsessivo-compulsivo na Infância e Adolescência"7, que tem como graus de resistência os quesitos "meus pensamentos e hábitos são até sensatos e razoáveis" e "isto é só um hábito, eu o faço sem necessariamente estar pensando a respeito". Como estas questões são realmente formuladas para crianças e adolescentes? Qual o nível de relativização que estas questões podem possibilitar? Há, efetivamente, um nível de consenso na compreensão de como estes aspectos subjetivos podem ser aferidos em entrevistas e questionários com populações tão diversas social e culturalmente? Poderíamos supor que, como conseqüência destes processos de investigação, ocorreriam processos de patologização e medicalização das populações pesquisadas? No processo biopolítica de medicalização da vida, as crianças e os adolescentes têm sido um dos alvos principais, basta observar, como um dos exemplos, a altíssima farmacologização com comportamentos destes segmentos populacionais8,9 e as estratégias bastante claras da indústria farmacêutica em promover o maior consumo de medicamentos intervindo nas pesquisas epidemiológicas e nas práticas clínicas10, 11.

Para encerrar, um último aspecto diz respeito aos diferentes conceitos adotados que, por si só, denotam a visível dificuldade em expressar o que pretendem. O texto das autoras mesmo demonstra isto na medida em que adota termos como "problemas de saúde mental", "distúrbios", "desordens" e "transtornos". Seriam sinônimos? O que realmente pretendem dizer? O que seria um problema de saúde mental? Uma experiência de mal-estar poderia ser considerada como um problema de saúde mental? Ou um problema de saúde mental seria o transtorno mental?

  • 1. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. Rio de Janeiro: Perspectiva; 1979.
  • 2. Bentes ALS. Tudo como dantes no Quartel D'Abrantes: estudo das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes através de encaminhamento judicial [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): ENSP/Fiocruz; 1999.
  • 3. Almeida Filho N. Crítica à Proposta da Psiquiatria Preventiva. Informação Psiquiátrica 1983; 4(4):71-76.
  • 4. Caplan G. Princípios de Psiquiatria Preventiva Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1980.
  • 5. Foucault M. O nascimento da clínica Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1979.
  • 6. Silveira DX, Jorge MR. Escala de Rastreamento Populacional para depressão (CES-D) em populações clínica e não-clínica de adolescentes e adultos jovens. In: Gorenstein C, Andrade LHS, Zuardi AW, organizadores. Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia 1Ş ed. São Paulo: Lemos Editorial; 2000. p. 125-135.
  • 7. Asbahr F. Escala de Avaliação de Transtorno Obsessivo-compulsivo na Infância e Adolescência. Revista de Psiquiatria Clínica 1999; 25(6):310-319.
  • 8. Moysés MAA, Collares CAL. Medicalização: elemento de desconstrução dos direitos humanos. 153-168. In: CRP-RJ. Direitos Humanos: O que temos a ver com isso? Rio de Janeiro: CRP-RJ; 2007.
  • 9. Guarido R. A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na educação. Educação e pesquisa 2007; 33(1):151-161.
  • 10. Barros JAC. Estratégias mercadológicas da indústria farmacêutica e o consumo de medicamentos. Rev. Saúde Pública 1983; 17:377-386.
  • 11. Angell M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro/São Paulo: Record; 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Abr 2009
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