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Debate sobre o artigo de Assis et al.

Comments on the article of Assis et al.

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Debate sobre o artigo de Assis et al.

Comments on the article of Assis et al.

Lúcia Abelha

Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, UFRJ. abelha@iesc.ufrj.br

A violência física, psicológica e sexual em crianças e adolescentes é um assunto que vem mobilizando a sociedade civil e em especial profissionais da área de saúde mental. Algumas ações vêm sendo trabalhadas; no entanto, não é fácil prevenir, identificar, tratar e evitar a impunidade dos autores das violências. Enfrentamos dificuldades importantes, como o silêncio da vítima, o silêncio da sociedade, a falta de apoio à criança e à família. Além do mais, existe não só uma falta de consciência dos profissionais a respeito da dimensão do problema, mas também dificuldade destes em registrarem e notificarem os casos às autoridades responsáveis, principalmente por: falta de preparo para identificar e lidar com os casos de maus-tratos, abusos e negligência; receio de envolvimento e conseqüentemente problemas com a justiça ou retaliações por parte do agressor; falta de suporte para realizar atendimentos adequados a estes casos, em função da grande demanda; tradição de uma prática que se restringe ao atendimento das patologias, sem questionar as causas; descrença no poder público e na real possibilidade de intervenção nestes casos; visão de que se trata de um problema da família, não sendo de responsabilidade da instituição de saúde; e ainda receio de equívocos e subseqüente notificação de uma suspeita infundada1.

Nas violências intrafamiliares contra menores, destaca-se o fato deste ser freqüentemente praticado por pessoas conhecidas (familiares, amigos, vizinhos, professores, etc.) numa estrutura de poder de fato assimétrica. Com efeito, quem abusa do outro ocupa uma posição de vantagem, seja porque tem mais idade, seja porque ocupa um lugar de autoridade. O menor, vítima destas violências, entra num estado de angústia. Quando, finalmente, consegue se comunicar com alguém que o leve a sério (caso de uma minoria), já se transcorreu muito tempo, e conseqüências previsíveis, do ponto de vista emocional e de estruturação da personalidade (inclusive, em muitos casos, do ponto de vista cognitivo), já aconteceram.

Em geral, mesmo quando é interrompido o ciclo da violência (abusos ou negligência), existe a possibilidade da desintegração familiar ou da institucionalização do menor, o que pode representar uma nova agressão psíquica e social contra este. Entre os fatores que dificultam a prevenção estão a baixa efetividade dos procedimentos de atenção ao menor e a baixa efetividade dos meios probatórios. Entre os transtornos mentais conseqüentes à violência estão o estresse pós-traumático e os transtornos depressivos.

O transtorno de estresse pós-traumático vem ganhando importância entre os diagnósticos dos transtornos mentais na última década. Estudos de prevalência classificam este transtorno em quarto lugar entre os distúrbios mentais. É esperado que 10,3% dos homens e 18,3% das mulheres apresentem o transtorno em algum momento de suas vidas. A violência social é sem dúvida a grande responsável pelo aumento da taxa de prevalência observada hoje. As estimativas sugerem que a maioria da população experimentará pelo menos uma situação traumática no curso de suas vidas e que 25% dessas pessoas desenvolverão transtorno de estresse pós-traumático.

Do ponto de vista neurobiológico, a continuidade de respostas biológicas que seguem a exposição ao estresse é seguida por uma cascata de reações secundárias que poderiam ser reduzidas se houvesse uma intervenção precoce. Além disso, os sobreviventes de catástrofes e eventos estressantes em geral, que desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático, têm maior probabilidade de desenvolver outros transtornos psiquiátricos, como depressão, distúrbio do pânico, ansiedade generalizada e abuso de drogas, assim como doenças psicossomáticas2.

Pessoas que sofrem exposição repetida a traumas, como crianças e adolescentes vítimas de violência, podem não desenvolver uma resposta adaptativa, mas pelo contrário, desenvolver sintomas psiquiátricos e sintomas de EPT de mais longa duração do que pessoas expostas a um evento único.

A depressão, por usa vez, foi considerada um quadro raro entre crianças até meados da década de 1960. Essa opinião é revertida com o resultado do Quarto Congresso da União dos Psiquiatras Infantis Europeus, em Estocolmo, 1970. A conclusão foi que a depressão representava um percentual significativo entre os transtornos mentais da infância e adolescência. O problema de se diagnosticar depressão na infância é que ela se apresenta de forma diferenciada de acordo com a idade da criança. Uma importante ajuda neste sentido foi o surgimento de escalas de avaliação dos transtornos bipolares em crianças e adolescentes.

Quando a criança ou adolescente procura ou é trazido a um serviço de saúde com histórico de violência, é muito importante que ele seja ouvida e que seja dada atenção não só à sintomatologia apresentada no momento, mas também aos sentimentos dele e da família em relação ao que está acontecendo. O entrosamento da equipe e a formação de uma rede inter-institucional efetiva são pontos fundamentais a serem discutidos para o bom resultado do tratamento, pois, na maioria das vezes o apoio a esta criança envolve terapia familiar, farmacológica e suporte social.

As questões expostas acima, assim como o artigo em debate, levantam questões importantes e urgentes. No início do século 21, a verba destinada à saúde mental, na maioria dos países, correspondia a 1% dos gastos totais em saúde. Entre os países, 40% carecem de políticas de saúde mental, mais de 30% não têm sequer programas nestas esferas e mais de 90% não têm políticas de saúde mental que incluam crianças e adolescentes. Além disso, segundo relatório do DHHS nos Estados Unidos, em cada dez jovens com transtornos mentais, apenas um recebe tratamento. É provável que em regiões em desenvolvimento como o Brasil, a situação seja ainda pior3.

Os transtornos mentais e de comportamento na infância e adolescência têm um alto custo para a sociedade, tanto em termos financeiros como sociais. Mas como lidar com essa situação e qual a realidade dos serviços disponíveis para dar conta das necessidades dessa população? É verdade que alguns avanços aconteceram na política de assistência às crianças e adolescente, mas a disponibilidade dos serviços ainda está muito aquém do necessário.

Em 2004, o Ministério da Saúde instituiu o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil (Portaria nº 1.608/2004), uma tentativa de instituir uma política pública de saúde mental para este grupo. Desde então, o fórum vem discutindo questões relevantes como: a desinstitucionalização da clientela abrigada; estabelecimento e orientação de uma rede de cuidados; ampliação do diálogo com o campo do direito; ampliação da rede de CAPSi (em 2006, havia 75 CAPSi cadastrados); e especialmente a situação das crianças e adolescentes em situação de violência4.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são considerados pelo Ministério da Saúde como dispositivos estratégicos no processo de mudança de modelo de assistência em Saúde Mental e são os ordenadores da rede nos territórios. Como resultado deste processo, a rede CAPS totalizou 1.011 serviços no ano de 2006 (780 CAPS, 75 CAPSi e 138 CAPSad - álcool e drogas). O número destas unidades vem aumentando ano a ano, mas ainda é claramente insuficiente para dar conta das necessidades da população de pacientes graves.

Se compararmos a disponibilidade de unidades para atendimento da população adulta com o número de unidades para atendimento de crianças e adolescentes, constatamos que estas últimas crescem em ritmo muito mais lento. Os 75 CAPSi e os demais recursos de atendimento à criança e ao adolescente encontram-se dispersos pela rede, sem ordenação e em número aquém do necessário.

Em 2006, tínhamos uma taxa de 3,8 psiquiatras por 100 mil habitantes no município do Rio de Janeiro, taxa seis vezes menor que a da França e 2,5 vezes menor que a da Itália, e nenhum psiquiatra infantil. A situação não é muito diferente nas demais regiões do Brasil5,6.

O debate sobre as crianças e adolescentes em situação de violência vem crescendo e a constituição de fóruns e grupos reunindo não só a área de saúde, mas envolvendo outras áreas governamentais e o terceiro setor já é uma realidade hoje no Brasil. Entretanto, a carência de unidades de atendimento e de recursos humanos em saúde mental é uma questão que deve ser encarada de forma séria e urgente.

  • 1. Nogushi MS, Assis SG, Santos NC. Entre quatro paredes: atendimento fonoaudiológico a crianças e adolescentes vítimas de violência. Cien Saude Colet 2004; 9(4): 963-973.
  • 2. Yehuda R, Davidson, J. Clinican's manual on Posttraumatic Stress Disorder London: Science Press Ltd; 2000.
  • 3
    World Health Organization. The World Health Report 2001 - Mental health: new understanding, new hope. Geneva: World Health Organization; 2001.
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde/DAPE. Saúde mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília: Ministério da Saúde; 2007.
  • 5
    World Health Organization. WHO's Mental Health Atlas-2005. Disponível em: http://204.187.39.30/Scripts/mhatlas.dll?name=MHATLAS&cmd=start&geolevel=World
  • 6. Abelha L, Legay LF. Psiquiatria: a realidade da assistência ao doente mental no estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: CREMERJ; 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Abr 2009
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