Acessibilidade / Reportar erro

Violência familiar e comportamento agressivo e transgressor na infância: uma revisão da literatura

Family violence and aggressive and oppositional behavior in childhood: a literature review

Resumos

Neste artigo, realizou-se uma revisão da literatura mundial sobre dois temas importantes: violência familiar e problemas de comportamento agressivo e desafiador opositivo na infância. Optou-se por selecionar publicações que utilizaram a CBCL- Child Behavior Checklist como instrumento para mensurar os problemas comportamentais em crianças. Este inventário é internacionalmente conhecido por sua boa confiabilidade e validade, sendo considerado eficiente para rastrear problemas de comportamento na infância. O material encontrado mostrou que a violência conjugal predomina nos estudos como tipo de maus tratos familiar com potencial para causar problemas de agressividade e transgressão em crianças. Outro ponto discutido foi a falta de consenso sobre as nomenclaturas utilizadas nos artigos para referir-se a tais problemas comportamentais. A revisão mostrou que ainda se fazem necessárias pesquisas mais aprofundadas sobre a temática em questão, principalmente para se pensar em prevenção e promoção da saúde na infância e adolescência. Comportamentos agressivos em crianças tendem a manter-se ao longo do tempo e de forma cada vez mais acentuada, fato que aponta para estratégias de prevenção desses agravos a serem desenvolvidas nos contextos escolar, familiar e da saúde.

Revisão bibliográfica; Agressividade; Criança e adolescente


This article presents a review of the world literature about two important subjects: family violence and problems of aggressive behavior and oppositional defiant disorder in childhood. We opted for publications that had used the CBCL- Child Behavior Checklist for investigating behavior problems in children. This instrument is internationally recognized for its reliability and validity, considered an efficient tool for identifying behavior problems in children. Our findings showed that marital violence predominated in the studies as kind of familiar violence able to cause problems of aggressiveness and transgression in children. Another point discussed was the lack of consensus on the terms used in the articles to refer to such behavior problems. The review showed the need for in-depth studies into this subject, mainly in the sense of thinking about prevention and health promotion in childhood and adolescence. Aggressive behavior in children tends to remain and increase over time, a fact that points to the need for strategies for preventing these problems in the school, familiar and health environments.

Literature review; Aggressiveness; Child and adolescent


REVISÃO REVIEW

Violência familiar e comportamento agressivo e transgressor na infância: uma revisão da literatura

Family violence and aggressive and oppositional behavior in childhood: a literature review

Renata Pesce

Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Fiocruz. Av. Brasil 4036/700, Manguinhos. 21040-361 Rio de Janeiro RJ. renata.pesce@gmail.com

RESUMO

Neste artigo, realizou-se uma revisão da literatura mundial sobre dois temas importantes: violência familiar e problemas de comportamento agressivo e desafiador opositivo na infância. Optou-se por selecionar publicações que utilizaram a CBCL- Child Behavior Checklist como instrumento para mensurar os problemas comportamentais em crianças. Este inventário é internacionalmente conhecido por sua boa confiabilidade e validade, sendo considerado eficiente para rastrear problemas de comportamento na infância. O material encontrado mostrou que a violência conjugal predomina nos estudos como tipo de maus tratos familiar com potencial para causar problemas de agressividade e transgressão em crianças. Outro ponto discutido foi a falta de consenso sobre as nomenclaturas utilizadas nos artigos para referir-se a tais problemas comportamentais. A revisão mostrou que ainda se fazem necessárias pesquisas mais aprofundadas sobre a temática em questão, principalmente para se pensar em prevenção e promoção da saúde na infância e adolescência. Comportamentos agressivos em crianças tendem a manter-se ao longo do tempo e de forma cada vez mais acentuada, fato que aponta para estratégias de prevenção desses agravos a serem desenvolvidas nos contextos escolar, familiar e da saúde.

Palavras-chave: Revisão bibliográfica, Agressividade, Criança e adolescente

ABSTRACT

This article presents a review of the world literature about two important subjects: family violence and problems of aggressive behavior and oppositional defiant disorder in childhood. We opted for publications that had used the CBCL- Child Behavior Checklist for investigating behavior problems in children. This instrument is internationally recognized for its reliability and validity, considered an efficient tool for identifying behavior problems in children. Our findings showed that marital violence predominated in the studies as kind of familiar violence able to cause problems of aggressiveness and transgression in children. Another point discussed was the lack of consensus on the terms used in the articles to refer to such behavior problems. The review showed the need for in-depth studies into this subject, mainly in the sense of thinking about prevention and health promotion in childhood and adolescence. Aggressive behavior in children tends to remain and increase over time, a fact that points to the need for strategies for preventing these problems in the school, familiar and health environments.

Key words: Literature review, Aggressiveness, Child and adolescent

Introdução

A violência tornou-se uma das temáticas centrais da saúde pública por sua magnitude e repercussões no comprometimento da saúde e qualidade de vida das pessoas. Em relação à criança, a violência é uma comum e grave violação de direitos, por negar-lhes a liberdade, a dignidade, o respeito e a oportunidade de crescer e se desenvolver em condições saudáveis.

Diversos estudos têm mostrado os prejuízos que a violência praticada nos lares pode acarretar na infância, fase da vida crucial para o desenvolvimento humano1. A violência familiar potencializa o desenvolvimento de problemas de comportamento, manifestações cada vez mais presentes na vida de milhares de crianças, encontradas nos ambulatórios de psicologia e de psiquiatria, nas salas de aula das escolas e na literatura especializada internacional. Problemas de comportamento são considerados como comportamentos socialmente inadequados, representando déficits ou excedentes comportamentais que prejudicam a interação da criança com os pares e adultos de sua convivência2.

Associações entre problemas de comportamento e variáveis do ambiente familiar têm sido verificadas, incluindo-se com destaque os relacionamentos permeados pela violência. A quantidade e/ou qualidade de eventos de vida negativos provenientes da família vêm sendo apontadas como particularmente prejudiciais ao desenvolvimento da criança e fator condicionante para problemas de comportamento na infância. Esse fato foi demonstrado por Ferreira e Marturano3 que, ao acompanharem dois grupos de crianças com e sem problemas de comportamentos, constataram que o grupo de crianças sem problemas de comportamento pareceu favorecido por um ambiente familiar mais apoiador e supridor de necessidades da criança.

O tipo específico de problema de comportamento abordado neste artigo é o externalizante, caracterizado por condutas desafiadoras excessivas e transtornos de conduta como agressividade contra pessoas e animais e comportamento transgressor, com o comportamento dirigindo-se para o ambiente em que a criança/adolescente se insere.

Na DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)4, este tipo de comportamento é categorizado como disruptivo, termo que engloba transtorno de conduta, transtorno desafiador opositivo e transtornos da atenção, problemas comumente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência. Os dois primeiros estão relacionados aos temas abordados neste artigo.

Transtorno de conduta, de acordo com a DSM IV4, engloba atos agressivos a pessoas e animais, além de destruição a propriedades, defraudação ou furtos e sérias violações de regras sociais. Para ser categorizado como tal, as condutas necessitam ter padrão repetitivo. Vários autores indicam que os transtornos de conduta com início na infância são mais sérios, com altos níveis de agressão, e tendem a persistir na idade adulta. Campbell5 efetuou um estudo longitudinal demonstrando que crianças ostentando problemas na idade de três a quatro anos têm 50% de chance de continuar a tê-los na adolescência. A prevalência tem crescido nas últimas décadas, especialmente em áreas urbanas, oscilando de menos de 1% a mais de 10% 4. As taxas são mais elevadas no sexo masculino.

Transtorno desafiador opositivo é uma síndrome que, ao se apresentar na infância, torna-se importante preditor do comportamento transgressor em jovens. Caracteriza-se por comportamento negativista, desafiador e hostil para com figuras de autoridade. O transtorno é mais prevalente em homens do que em mulheres antes da puberdade, mas as taxas são provavelmente iguais após a puberdade, oscilando entre 2% e 16% 4.

A DSM-IV constitui a base clínica sob a qual foi elaborado um dos inventários de comportamento mais utilizados internacionalmente para aferir problema de comportamento em crianças e adolescentes - o inventário elaborado por Achenbach6, composto pelos seguintes instrumentos: Child Behavior Checklist (CBCL), aplicada a pais/responsáveis; Youth Self-Report (YSR), para adolescentes; e Teacher Rating Form (TRF), para professores. Este inventário está traduzido para 61 línguas e há estudos publicados em cinqüenta diferentes culturas. Tem demonstrado valor inestimável em pesquisa e utilidade na prática clínica. A CBCL, instrumento mais utilizado internacionalmente, possui 138 itens, vinte destinados à avaliação da competência social e 118 relativos à avaliação de problemas de comportamento nos últimos seis meses. Dados sobre comparações transculturais têm sido demonstrados, ilustrando a disseminação que este inventário tem na área da psiquiatria infantil em muitos países do mundo. Os nomes dados por Achenbach às síndromes comportamentais pertencem a vocábulos familiares para os profissionais da área, não representando classificações nosológicas e diagnósticos psiquiátricos formais, como é o caso dos diagnósticos realizados pela DSM-IV. A classificação realizada pela CBCL não é idêntica à proveniente da DSM-IV, embora haja correlação significativa entre os instrumentos 6, 7.

Achenbach utilizou as duas definições da DSM-IV4 referentes aos transtornos da conduta e desafiadores opositivos para traçar paralelo em seu inventário, criando dois grupos: "comportamento agressivo" e "comportamento de quebrar regras", respectivamente. Ambos comportamentos trazem muitos problemas ao desenvolvimento infanto-juvenil, ao interferirem no cumprimento de tarefas evolutivas como as requeridas pela escola, por terem alta prevalência, prognóstico pobre e por serem fatores de risco para inadaptação psicossocial na adolescência e vida adulta.

Estudo recente com crianças escolares entre seis e treze anos de idade das escolas públicas de São Gonçalo, Rio de Janeiro mostrou prevalência de 4,3% de comportamento agressivo e de 5,8% de quebrar regras, aferido pela CBCL8.

Face à elevada freqüência e relevância social dos problemas externalizantes e da violência familiar na infância e adolescência, buscou-se como objetivo para este artigo analisar as publicações mundiais que correlacionam estes dois temas, à luz das escalas produzidas por Achenbach, autor do instrumento mundialmente mais utilizado para aferir problemas de comportamento em crianças.

Material e método

Os artigos selecionados para este estudo são oriundos de uma base de dados criada por Achenbach7, o autor do inventário Child Behavior Checklist. A base de dados chama-se ASEBA (Achenbach System of Empirically Base Assessment) e é obtida através de sua compra na Universidade de Vermont, nos Estados Unidos.

A base ASEBA é uma coletânea de todas as publicações entre 1978 e 2005 que utilizaram a CBCL ou suas versões para adolescentes e professores (YSR e TRF, respectivamente) como método de pesquisa. Trata-se de um total de 5.780 publicações: 5.595 artigos, 84 manuais, 75 capítulos de livro, 14 citações eletrônicas, cinco dissertações, três publicações/anais de congressos, dois livros completos e duas monografias. O programa oferece listas de publicações solicitadas pelo ano, pelo autor, pela fonte e por palavras-chave. Optou-se por selecionar o material bibliográfico a partir das palavras-chave relacionadas à temática aqui investigada.

Dentre um total de 214 palavras-chave, foi feita uma escolha de cinco palavras-chave relevantes: violence, conduct disorder, oppositional defiant disorder, disruptive behavior e externalizing problems. Cada uma das quatro últimas palavras foram cruzadas com "violence", oferecendo um total de trinta publicações, apenas na forma de artigos científicos. Posteriormente, foram excluídos desta análise os artigos com ano de publicação inferior a 1990 e aqueles cujo enfoque da violência não se tratava da família. Assim, para este trabalho, foram selecionados dezesseis artigos científicos.

A fim de confirmar a extensão da cobertura do tema estudado na base ASEBA, foi feita uma busca em importante base bibliográfica, Medline. Primeiramente, foram cruzadas as palavras violence com CBCL para o período de 1996 a 2005, obtendo-se um total de doze referências, das quais seis já estavam incluídas na seleção prévia e cinco não tratavam de violência familiar e comportamentos externalizantes ou transtornos semelhantes, mas também faziam parte da base de dados de Achenbach. Deste total de artigos, apenas um havia ficado de fora da seleção feita na base ASEBA. Para as mesmas palavras no período de 1966 a 1995, apenas uma referência foi obtida, sendo que tratava da violência urbana e por isso não foi utilizado.

Optou-se então por incluir o único artigo científico encontrado no Medline, compondo assim um total de dezessete publicações a serem revisadas neste artigo.

Resultados

Caracterização das fontes de análise

Conforme o esperado, a grande maioria dos artigos têm como população-alvo crianças entre seis e doze anos de idade, já que a CBCL é especificamente indicada para utilização nessa faixa etária, podendo ser estendida até os dezoito anos. A versão desse instrumento para adolescentes, Youth Self-Report (YSR)7, foi utilizada apenas em três artigos selecionados para esta revisão, que são voltados para o rastreamento de problemas de comportamento em adolescentes entre onze e dezoito anos. Essa versão do instrumento para adolescentes tem sido menos utilizada quando comparada com a CBCL. É importante destacar que a versão para crianças deve ser respondida pelo responsável pela criança (especialmente a mãe), enquanto o instrumento voltado para o adolescente tem o próprio jovem como relator de seus problemas.

Professores também possuem uma versão especial da CBCL. A Teacher Rating Form (TRF), dirigida aos professores de crianças e jovens entre seis e dezoito anos. Na presente análise, dois artigos utilizaram a TRF como instrumento de coleta de dados sobre problemas de comportamento.

No Quadro 1, observam-se algumas características dos dezessete estudos analisados.


A maioria dos estudos inclui crianças participantes, selecionadas através de serviços de saúde de suas comunidades, especialmente serviços de atenção psicológica e psiquiátrica. Foram onze os trabalhos conduzidos por tais instituições. Serviços de atenção jurídica conduziram dois estudos, sendo uma agência de justiça criminal especializada em abusos contra a mulher e uma agência de proteção à criança. Dois outros trabalhos foram conduzidos no ambiente escolar, sendo um deles em escolas consideradas em locais de risco. Por fim, dois outros foram conduzidos nos lares das próprias crianças. Destes, um utilizou dados de registros de nascimentos de gêmeos fornecidos por uma agência nacional de estatística do governo da Inglaterra, a qual convidou os pais dessas crianças a participarem de um estudo longitudinal voltado para o desenvolvimento infantil de gêmeos. No outro, a equipe de pesquisa, que também realizou uma intervenção em lares considerados violentos, recebeu indicação dessas crianças por agências de saúde infantil, escolas, abrigos para mulheres e outras agências de serviço social.

Os participantes da grande maioria desses estudos são crianças e adolescentes do sexo masculino e feminino. Apenas em três artigos a população foi exclusivamente masculina, fato que pode ser justificado por trabalhos prévios que destacam a maior prevalência dos transtornos investigados entre os meninos 9-11.

Quanto ao tipo de desenho das investigações, nove foram estudos transversais, seis estudos de acompanhamento e dois utilizaram o desenho do tipo caso-controle. A menor amostra foi de quinze crianças acompanhadas longitudinalmente, enquanto a maior foi de um grande estudo, também de acompanhamento, com 1.116 pares de crianças gêmeas.

Com base nos títulos e resumos dos artigos, em termos dos tipos de problemas de comportamento abordados, os transtornos de conduta (categoria preconizada pela DSM-IV) e a nomenclatura "comportamentos externalizantes" (utilizada por Achenbach para se referir a atos agressivos e transgressores) foram utilizados com a mesma freqüência nas publicações analisadas. Então, seis artigos apropriaram-se do termo "transtornos da conduta" e outros seis utilizaram o termo criado pelo autor da CBCL: comportamentos externalizantes. Três estudos deram ênfase ao transtorno desafiador opositivo. Dois textos analisados adotaram o termo "comportamento disruptivo" e investigaram os tipos de problemas pertencentes a essa categoria segundo a DSM IV4: transtorno da conduta, desafiador-opositivo e déficit de atenção e hiperatividade.

É importante ressaltar que, embora os termos de referência para os problemas de comportamento abordados nos artigos sejam distintos, eles estão fortemente correlacionados, descrevendo comportamentos intimamente semelhantes29.

Já em relação ao tipo de violência vivenciada pela criança no âmbito familiar, os artigos analisados destacam, em primeiro lugar, a violência conjugal. Oito entre os dezessete artigos investigaram a relação entre presenciar agressão da mãe (ou responsável) pelo parceiro e desenvolvimento de problemas externalizantes em crianças/adolescentes. Esses artigos alertam para um problema a ser enfrentado pela saúde pública - a violência cometida contra a mulher, tema que demanda uma discussão específica inserida nas relações de gênero. Entre esses sete estudos, um deles também abordou a violência física dos responsáveis contra a criança.

Em segundo lugar, os artigos destacam a questão dos maus-tratos contra a criança praticados pelos pais como importante preditor de problemas comportamentais na infância, especialmente maus-tratos físicos e sexuais. Seis artigos abordam essa temática, que tem sido comumente descrita no âmbito da violência familiar ou em outros ambientes comunitários e sociais. A violência física é outro tema que merece reflexão e questionamento sobre a naturalização cultural desse tipo de violência, colocando-se em xeque a prática do "bater" como forma justificada de disciplina.

Ainda em relação ao tipo de violência familiar abordada nos artigos, três entre os dezessete textos analisados trazem o modelo de educação coercitiva e com práticas disciplinares ineficientes como um tipo de violência, talvez menos explícita, que pode ocasionar danos comportamentais na infância e adolescência. A violência verbal e psicológica muitas vezes encontra-se embutida nessa dinâmica de coerção dos filhos.

Um único artigo atenta para a questão dos conflitos severos entre irmãos como uma forma de violência familiar também prejudicial ao desenvolvimento na infância e adolescência.

Exposição dos objetivos e resultados das publicações

A quase totalidade do material analisado tem o objetivo de verificar possíveis associações entre algum tipo de violência praticada no âmbito familiar com o desenvolvimento de problemas comportamentais na infância, especificamente comportamentos agressivos e desafiadores. Trazem a violência como variável de exposição e os problemas de comportamento, como a variável resposta.

É interessante ressaltar quatro publicações que, por características distintas, saem do padrão dos outros treze textos. O artigo de Ducharme, Atkinson e Poulton17 propõe-se a fazer uma avaliação de um programa de treinamento para famílias consideradas violentas e que possuem crianças com sérios problemas de oposição e indisciplina. Além da intervenção reduzir problemas comportamentais nas crianças e conflitos familiares, um ponto diferencial desse estudo foi a possibilidade de prevenção de fatores de risco para tais problemas observada pelos autores, uma vez que as ações do programa visaram também internalizar conceitos e valores nessas famílias.

Jaffee et al.28 investigaram se maus-tratos físicos sofridos pela criança poderiam estar relacionados com problemas de conduta na infância, levando em consideração a vulnerabilidade genética da criança como um facilitador nesse processo. É uma discussão atual que contrapõe características inatas do indivíduo com experiências adquiridas ao longo do desenvolvimento.

O terceiro destaque é para Ford et al.18, que analisam a relação entre histórias diferenciadas de violência na família e a severidade de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). No caso deste trabalho, os autores investigam se crianças diagnosticadas com comportamento disruptivo apresentam TEPT de forma mais grave em relação a crianças sem esse tipo de problema. Discutem também que, embora os sintomas mais graves de TEPT pareçam conseqüências da severidade do trauma (violência), eles também podem ser devido à desordem de comportamento disruptivo.

Outro artigo diferenciado (Kernic et al.26) teve como objetivo verificar se o relato da criança sobre a violência que ela sofre tem alguma relação com os problemas de comportamento que os pais reportam sobre a mesma. Os autores observaram correspondência entre os depoimentos da criança e do cuidador, fato que mostra que a criança pode ser uma fonte importante de informação sobre seu próprio sofrimento.

O Quadro 2 descreve os objetivos e principais resultados encontrados nas referências analisadas. Conforme pode ser observado, foram encontradas correlações importantes entre experiências de violência e algum tipo de problema de comportamento externalizante, fato que merece ser discutido à luz do estado da arte sobre as temáticas em questão.


Considerações finais

Tanto as fontes revisadas quanto à literatura que serviu de base para realização deste estudo apontam para algumas questões fundamentais. Primeiramente, é importante tecer uma reflexão sobre violência familiar. Ela se manifesta de diversas formas, mas sabe-se que, sobretudo no Brasil, as mais comuns são aquelas direcionadas à mulher, às crianças e aos idosos30. Nos artigos analisados (maioria norte-americana), destacou-se a construção social dos atributos de masculinidade e feminilidade, com expectativas culturais demarcadas em relação a cada um dos gêneros.

Muitos artigos apontaram para a violência conjugal, com a mulher agredida pelo parceiro, como situação potencialmente geradora de danos para a criança e o adolescente. Graham-Bermann31 explica que a maioria das pesquisas de saúde mental na área de violência doméstica conclui que a mera exposição à violência doméstica é, em si mesma, uma forma de maltratar a criança, afirmando que a criança que testemunha a agressão à sua mãe é vitima de violência psicológica. Outro estudo realizado por Corrêa e Williams32, sobre o impacto da violência conjugal na saúde mental das crianças, indica altos índices de depressão, agressividade, isolamento e reduzida auto-estima em tais crianças.

As violências física, sexual e psicológica contra a criança e o adolescente permearam todos os artigos analisados, inclusive aqueles com enfoque na violência conjugal, mostrando que, muitas vezes, a violência no âmbito da família não ocorre de uma só forma, podendo-se falar em famílias com dinâmica de violência.

A literatura também aponta para as práticas parentais inadequadas, caracterizadas por disciplina ineficiente, negligência, ausência de atenção e afeto, disciplina relaxada, punição inconsistente, como prejudiciais ao desenvolvimento infantil, podendo desencadear comportamentos agressivos33,34. Corroborando com a teoria, alguns dos textos desta revisão enfocaram a educação coercitiva e ineficiente dos pais como um importante preditor de problemas comportamentais externalizantes.

Estudos mostram que a família exerce uma importante influência na aquisição de modelos agressivos pelas crianças34-36. Pais que utilizam punição, seja verbal, psicológica ou física, estão mostrando a seus filhos que a violência é uma forma apropriada de resolução de conflitos e de relacionamento entre homens e mulheres.

A família é, portanto, fundamental na estruturação dos indivíduos, sendo os problemas de comportamento externalizantes um dos possíveis agravos para crianças e jovens expostos a conflitos e práticas familiares inadequadas.

Outro ponto a ser considerado é a presença de três estudos voltados apenas para meninos e nenhum exclusivo para meninas. Várias pesquisas chamam a atenção para algumas diferenças comportamentais apresentadas pelas crianças, segundo o gênero, como conseqüência da violência doméstica. O DSM-IV destaca que foram encontrados maiores escores de problemas de comportamento em meninos do que em meninas, da mesma forma que diferenças sobre os tipos específicos de comportamento. Graham-Bermann31 assinala diferenças em relação à identificação de papéis familiares segundo o gênero. Tanto Holden, Geffner e Jouriles37 como Fantuzzo e Lindquist38 discutem maior índice de internalização de comportamentos-problema em meninas do que em meninos expostos à violência conjugal. Em contraste, para tais autores, os meninos apresentam maior externalização dos comportamentos-problema.

Uma consideração deve ser feita sobre a quantidade de artigos selecionados para esta análise. A CBCL é um instrumento com diversas subescalas (avalia competência pessoal, comportamentos internalizantes, comportamentos externalizantes, problemas com o contato social, problemas com o pensamento, problemas com a atenção e problemas sexuais). Por isso, apesar de poder mensurar problemas de comportamento de forma geral, é comum que cada estudo que utiliza esse instrumento priorize uma subescala diferente de acordo com o tema a ser investigado. Esse fato amplia a diversidade de produções científicas, que quando "filtrada" por palavras-chave, aparece em quantidade não muito grande.

No Brasil, poucos autores realizaram trabalhos utilizando a CBCL. Bordin et al.39 publicaram a validação transcultural do instrumento no Brasil. Silvares40 utilizou a CBCL e a TRF para testar uma proposta invertida de atendimento psicológico comportamental, na qual em vez da escola encaminhar a criança para a clínica, esta iria até o aluno com dificuldade comportamental. Duarte et al.41 realizaram um estudo buscando identificar sintomas de autismo em crianças brasileiras. Bordin et al.42 relacionaram punição física severa com problemas de saúde mental em amostra de crianças e adolescentes, e foi o único estudo considerando a questão da violência física. Outro trabalho de Salvo, Silvares e Toni43 teve o objetivo de levantar quais práticas educativas poderiam ser preditoras de problemas comportamentais em escolares listados pela CBCL, encontrando como resultado que monitoria positiva e comportamento moral foram variáveis preditoras de comportamentos pró-sociais; sua falta, aliada às práticas negativas, foram preditoras de distúrbios do comportamento.

Por fim, Lauridsen-Ribeiro e Tanaka 44 realizaram um estudo de grande dimensão em São Paulo com o objetivo de dimensionar os problemas de saúde mental na população infantil e compreender como os profissionais da atenção básica, no contexto desse município, lidam com essa questão. Compararam a relação entre a freqüência dos tipos de problemas de saúde mental detectados pelo médico e aquela obtida através da CBCL. Analisando as subescalas do instrumento, observaram que a maior percentagem de diagnósticos do pediatra nos casos clínicos da CBCL concentrava-se nas áreas de transgressões, queixas somáticas, e a menor, na área de retraimento. A pesquisa também apontou que, dentre as 206 crianças estudadas, 47,1% têm sintomas e prováveis diagnósticos na área de saúde mental que não foram detectados pelos pediatras durante a consulta clínica.

Esses poucos estudos nacionais, que não têm como destaque os problemas externalizantes, apontam para a necessidade de outras investigações abordando temas importantes relacionados a problemas de comportamento na infância e adolescência.

Pode-se ressaltar que, embora o senso comum correlacione com freqüência comportamentos agressivos e transgressores entre crianças e jovens a dinâmicas de violência na família, ainda se fazem necessárias pesquisas mais aprofundadas. Estes trabalhos poderão ser de suma contribuição para se pensar em prevenção e promoção da saúde e bem-estar da jovem população brasileira, principalmente por saber-se que os comportamentos agressivos em crianças tendem a manter-se ao longo do tempo e de forma cada vez mais acentuada, sugerindo-se um prognóstico negativo dos mesmos29,33,45,46.

É certo que crianças com comportamento agressivo e transgressor estão denunciando alguma coisa, quer seja maus-tratos, solidão ou outra dor. A continuidade dos estudos pode contribuir para que diversas práticas possam ser conduzidas especialmente no contexto escolar, familiar e da saúde, visando à prevenção de agravos ao desenvolvimento desses pequenos cidadãos, muitas vezes transformados de vítimas em réus.

Artigo apresentado em 28/02/2008

Aprovado em 15/04/2008

Versão final apresentada em 08/10/2008

  • 1. Brasil. Ministério da Saúde. Violência faz mal à saúde Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
  • 2. Silva ATB. Problemas de comportamento e comportamentos socialmente adequados: sua relação com as habilidades sociais educativas de pais [dissertação]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2000.
  • 3. Ferreira MCT, Marturano EM. Ambiente familiar e os problemas do comportamento apresentados por crianças com baixo desempenho escolar. Psicol.: reflex. crít 2002; 15(1):33-44.
  • 4. DSM IV TRTM Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed; 2002.
  • 5. Campbell SB. Behavior problems in preschool children: a review of recent research. J. Child Psychol Psychiatry 1995; 36:113-149.
  • 6. Achenbach TM, Rescorla LA. Manual for the ASEBA School-age forms & profiles. Burlington, VT: University of Vermont, Research Center for Children, Youth & Families; 2001.
  • 7. Achenbach TM. Manual for the child behavior check-list/4-18 Burlington: Department of Psychiatry, University of Vermont; 1991.
  • 8. Assis SG, Pesce RP, Avanci J. Resiliência: enfatizando a proteção na adolescência Porto Alegre: Artmed; 2006.
  • 9. Bee H. A criança em desenvolvimento Porto Alegre: Artes Médicas; 1996.
  • 10. Picado JR. Fatores de risco e de proteção: um estudo de acompanhamento em pré-escolares com comportamentos agressivos [dissertação]. São Carlos (SP): Centro de Educação e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em Educação Especial; 2006.
  • 11. Meneghel SN, Giugliani EJ, Falceto O. Relações entre violência doméstica e agressividade na adolescência. Cad Saúde Pública 1998; 14(2): 327-335.
  • 12. Fantuzzo J, Depaola L, Lambert L, Martino G, Sutton S. Effects of Interparental violence on psychological adjustment and competencies of young children. Journal of Consulting and Clinical Psychology 1991; 59 (2):258-265.
  • 13. Dodge K, Bates J, Pettit GS, Valente E. Social information-processing patterns partially mediate the effect of early physical abuse on later conduct problems. Journal of Abnormal Child Psychology 1995; 104(4):632-643.
  • 14. Capaldi D, Chamberlain P, Patterson G. Ineffective discipline and conduct problems in males: association, late adolescent outcomes, and prevention. Agression and Violent Behavior 1997; 2(4):343-353.
  • 15. McGee RA, Wolfe D, Wilson SK. Multiple maltreatment experiences and adolescent behavior problems: adolescent´s perspectives. Development and Psychopathology 1997; 9:131-149.
  • 16. Webster-Stratton C, Hammond M. Marital Conflict management skills, parenting style, and early-onset conduct problems: processes and pathways. J Child Psychol Psychiatry 1999; 40(6):917-927.
  • 17. Ducharme J, Atkinson L, Poulton L. Success-Based, Noncoercive treatment of oppositional behavior in children from violent homes. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2000; 39(8):995-1007.
  • 18. Ford JD, Racusin R, Ellis CG, Daviss W, Reiser J, Fleicher A, Thomas J. Child maltreatment, other trauma exposure, and posttraumatic symptomatology among children with oppositional defiant and attention deficit hyperactivity disorders. Child Maltreatment 2000; 5(3):205-217.
  • 19. Garcia M, Shaw D, Winslow EB, Yaggi KE. Destructive sibling conflict and the development of conduct problems in young boys. Developmental Psychology 2000; 36(1):44-53.
  • 20. McDonald R, Jouriles EN, Norwood W, Ware H, Ezell E. Husband´s marital violence and the adjustment problems of clinic-referred children. Behavior Therapy 2000; 31:649-665.
  • 21. Devito C, Hopkins J. Attachment, parenting, and marital dissatisfaction as predictors of disruptive behavior in preschoolers. Development and Psychopathology 2001; 13:215-231.
  • 22. Edwards G, Barkley RA, Laneri M, Fletcher K, Metevia L. Parent-adolescent conflict in teenagers with ADHD and ODD. J Abnorm Child Psychol 2001; 29(6):557-572.
  • 23. Lemmey D, Malecha A, McFarlane J, Willson P, Watson K, Gist JH, Fredland N, Schultz P. Severity of violence against women correlates with behavioral problems in their children. Pediatric Nursing 2001; 27(3):265-269.
  • 24. Ware HS, Jouriles E, Spiller L, McDonald R, Swank P, Norwood W. Conduct problems among children at battered women´s shelters: prevalence and stability of maternal reports. Journal of Family Violence 2001; 16(3):291-307.
  • 25. Augustyn M, Frank DA, Posner M, Zuckerman B. Children Who Witness Violence, and Parent Report of Children's Behavior. Archives of Pediatrics & Adolescent Medicine 2002; 156(8):800-803.
  • 26. Kernic MA, Wolf ME, Holt V, McKnight B, Huebner C, Rivara FP. Behavioral problems among children whose are abused by intimate partner. Child Abuse Negl 2003; 27:1231-1246.
  • 27. McFarlane JM, Groff JY, O´Brien JA, Watson K. Behaviors of children who are exposed and not exposed to intimate partner violence: an analysis of 330 black, white, and Hispanic children. Pediatrics 2003; 112(3):202-207.
  • 28. Jaffee SR, Capsi A, Moffitt T, Dodge K, Rutter M, Taylor A, Tully L. Nature X Nurture: Genetic vulnerabilities interact with physical maltreatment to promote conduct problems. Development and Psychopathology 2005; 17(1):67-84.
  • 29. Coie DJ, Dodge KA. Agression e anti-social behavior. In: Damon W, Einsberg N, editors. Handbook of Child Psychology. Social Emocional, and Personality Development. 5th ed. New York: Wiley and Sons; 1998. p. 779-862.
  • 30. Minayo MCS, Souza ES, organizadoras. Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.
  • 31. Graham-Berman SA. The impact of woman abuse on children's social development: Research and theoretical perspectives. In: Holden GW, Geffner R, Jouriles EN, editors. Children exposed to marital violence: Theory research and applied issues. Washington, D.C.: American Psychological Association; 1998. p. 21-54.
  • 32. Corrêa LC, Williams LCA. O impacto da violência conjugal sobre a saúde mental das crianças. Resumos de comunicação científicas; 2000 Brasília. p. 235.
  • 33. Patterson GR, De Baryshe BD, Ramsey E. A developmental perspective on antisocial behavior. American Psychologist 1989; 44(2):329-335.
  • 34. Gomide PIC. Estilos parentais e comportamento anti-social. In: Del Prette A, Del Prette ZAP, organizadores. Habilidades sociais, desenvolvimento e aprendizagem: questões conceituais, avaliação e intervenção Campinas: Alínea; 2003. p.21-60.
  • 35. Bandura A. Aggression: a social learning analysis. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall; 1973.
  • 36. Jaffe PG, Wolfe DA, Wilson SK. Children of battered women. Newbury Park: Sage Publications; 1990.
  • 37. Holden GW, Geffner R, Jouriles EN. Appraisal and outlook. In: Holden GW, Geffner R, Jouriles EN, editors. Children exposed to marital violence: Theory, research and applied issues Washington, D.C: American Psychological Association;1998. p. 409-421.
  • 38. Fantuzzo JW, Lindquist CU. The effects of observing conjugal violence on children: A review and analysis of research methodology. Journal of Family Violence 1989; 4(1): 77-94.
  • 39. Bordin ias, Mari jj, caeiro mf. Validação da versão brasileira do Child Behavior Checklist (CBCL) (Inventário de comportamentos da Infância e Adolescência): dados preliminares. Revista ABP-APAL 1995; 17(2):55-66.
  • 40. Silvares EFM. Invertendo o caminho tradicional do atendimento psicológico numa clínica-escola brasileira. Estudos de Psicologia 2000; 5(1):149-180.
  • 41. Duarte CS, Bordin IA, de Oliveira A, Bird H. The CBCL and the identification of children with autism and related conditions in Brazil: pilot findings. J Autism Dev Disord. 2003; 33(6):703-707.
  • 42. Bordin IA, Paula CS, Duarte CS. Severe physical punishment and mental health problems in an economically disadvantaged population of children and adolescents. Revista Brasileira de Psiquiatria 2006; 28:290-296.
  • 43. Salvo CG, Silvares EFM, Toni PM. Práticas educativas como forma de predição de problemas de comportamento e competência social. Estudos de Psicologia 2005; 22(2):187-197.
  • 44. Lauridsen-Ribeiro E, Tanaka OY. Problemas de saúde mental das crianças: abordagem na atenção básica São. Paulo: Annablume; 2005.
  • 45. Patterson GR, Reid J, Dishion T. Antisocial boys. Santo André: ESETec Editores Associados; 2002.
  • 46. Marinho ML. Comportamento anti-social infantil: questões teóricas e de pesquisa. In: Del Prette A, Del Prette ZAP, organizadores. Habilidades sociais, desenvolvimento e aprendizagem questões conceituais, avaliação e intervenção Campinas: Alínea; 2003. p.61-81.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Abr 2009

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2008
  • Aceito
    15 Abr 2008
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br