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Gênero, saúde e análise de políticas: caminhos e (des)caminhos

Gender, health and police analysis: successes and failures

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Gênero, saúde e análise de políticas: caminhos e (des)caminhos

Gender, health and police analysis: successes and failures

Jorge Lyra

Instituto Papai. E-mail: jorgelyra@papai.org.br

Inicio este texto como debatedor do artigo intitulado A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em Saúde Coletiva: o caso do uso da categoria gênero de Wilza Villela, Simone Monteiro e Eliane Vargas, assinalando a honra e o desafio desta tarefa. Há bem pouco tempo, percorri os mesmos (des)caminhos ao elaborar tese de doutorado sobre gênero e saúde, homens e masculinidades, feminismo e direitos reprodutivos no campo da análise de políticas1.

Um dos principais desafios durante a elaboração da tese foi formular, no contexto da saúde pública, um problema de pesquisa e um marco referencial que adotasse gênero como categoria de análise tendo o(s) feminismo(s) como arcabouço teórico, que me desse suporte a problematizar se, e como, os homens e as masculinidades são tratados no âmbito da política nacional de direitos sexuais e direitos reprodutivos.

Enfocar como objeto de pesquisa o lugar dos homens e das masculinidades nas políticas de direitos reprodutivos remete a refletir de maneira crítica sobre a construção de um campo de conhecimento ancorado em elementos considerados masculinos: a área biomédica e a de formulação de políticas. No entanto, as discussões oriundas deste campo não problematizam os homens e as masculinidades nem como objeto e nem como sujeito, mesmo quando adotada a perspectiva feminista e de gênero, a não ser como contraponto ao debate sobre a autonomia e o corpo das mulheres.

Preocupação semelhante orienta as reflexões de Vilela, Monteiro e Vargas neste artigo que ora estamos debatendo. Segundo as autoras, as reflexões teóricas e epistemológicas sobre a incorporação da categoria gênero no campo da saúde coletiva ainda são tímidas e a abordagem de gênero na epidemiologia tem sido lenta, enfrentando dilemas teóricos que geram obstáculos ao uso de gênero como categoria analítica, e não apenas como substituição da variável sexo. Dificuldade maior ainda é apontada pelas autoras no que se refere à incorporação das outras categorias sociais, tais como raça/etnia e idade.

Sem ter aqui o objetivo de fazer um amplo balanço das correntes epistemológicas, teóricas e políticas que têm definido o conceito de gênero como categoria analítica, destacamos quatro componentes do marco conceitual que nos auxiliaram na formulação da perspectiva analítica sobre gênero e saúde empregada na análise da política nacional de direitos sexuais e direitos reprodutivos: 1) o sistema sexo/gênero; 2) a dimensão relacional; 3) as relações de poder e 4) a ruptura da tradução do modelo binário de gênero nas esferas da política, das instituições e das organizações sociais.

Nos últimos trinta anos, em que os estudos de gênero se consolidaram na produção acadêmica, foram produzidos trabalhos, especialmente no campo das ciências humanas e sociais, que discutem os homens e o masculino como faces malditas das relações que geram desigualdades sociais e subordinam as mulheres.

No campo dos direitos reprodutivos, as produções sobre as masculinidades como objeto de estudo têm início no final da década de oitenta a partir de trabalhos elaborados de maneira ainda pouco sistemática, com concentração em autores específicos e sem necessariamente se desdobrar em uma ampla e consistente discussão teórica, política e ética sobre o tema.

Mais recentemente, sobretudo a partir da segunda metade da década de noventa, tem surgido um conjunto de obras que buscam sistematizar produções diversas, de modo a possibilitar o aprofundamento almejado. Procurando organizar essas produções, Connell, Hearn e Kimmel2, no Handbook ofstudies on men and masculinities, abordam o que eles denominam como "desenvolvimento do campo de pesquisas sobre masculinidades", a partir do modo como os estudos e pesquisas têm construído esse campo: desde um olhar "mais amplo e global" até a expressão "mais íntima e pessoal". Este campo é constituído, segundo esses autores, por produções que apresentam objetos distintos: a) a organização social das masculinidades em suas inscrições e reproduções locais e globais; b) a compreensão do modo como os homens entendem e expressam identidades de gênero; c) as masculinidades como produtos de interações sociais dos homens com outros homens e com mulheres, ou seja, as masculinidades como expressões da dimensão relacional de gênero; d) a dimensão institucional das masculinidades, ou seja, o modo como as masculinidades são construídas em (e por) relações e dispositivos institucionais.

Nossas reflexões se situam entre o terceiro e o quarto níveis de análise propostos por aqueles autores, na medida em que consideramos a saúde pública como um campo de relações institucionais que se organizam em dispositivos e relações de poder, e que marcam posições de sujeito e modos de ser, de saber e de fazer.

Esta posição decorre da preocupação teórica e política com relação à produção acadêmica e/ou militante e suas repercussões na formulação e implementação de políticas públicas em saúde, a partir do enfoque de gênero. Ao mesmo tempo, esta posição nos autoriza a identificar, no artigo ora em debate, a frouxa articulação que as autoras apresentam entre os estudos acadêmicos e seus impactos na formulação e aprimoramento das políticas públicas voltadas para a promoção da equidade de gênero.

Reconhecemos como um problema de pesquisa a legitimação e permanência em nossa sociedade de uma ideologia sexista que atribui às mulheres o lugar da vida privada, da vida reprodutiva e que se traduz numa produção acadêmica em que gênero, em grande medida, ainda é sinônimo de mulheres e de saúde sexual e reprodutiva.

Como um efeito perverso dos processos de manutenção do status quo vigente, identificamos esta mesma ideologia sexista na formulação de políticas, nos documentos de domínio público e também no próprio movimento de mulheres e feminista, ou de parte dele, quando focam apenas mulheres em seus planos de ação.

Não há como negar que as desigualdades sociais na vida das mulheres são uma constante histórica, mas é necessário trabalhar com os homens ou conseguir trabalhar adotando o aspecto relacional. Destacamos ainda a necessidade e a importância de um posicionamento analítico e crítico a respeito do discurso sobre/dos homens, tendo em vista o avanço do conhecimento neste campo formulado pelas mulheres feministas, e alguns homens, feministas ou não. Assinalamos também que temos percebido nos trabalhos sobre a denominada área da saúde do homem uma tendência a realizar investigações de caráter descritivo, técnico e baseado em indicadores epidemiológicos, que desconsideram a trajetória histórica das reflexões neste campo oriundas do movimento de mulheres e feminista e também do movimento gay e lésbico. A revisão apresentada pelas autoras reitera esta observação, ao demarcar a incorporação da categoria gênero predominantemente como um marco de diferenciação entre homens e mulheres ou um marco descritivo/analítico da experiência feminina.

O gênero como categoria de análise é uma ferramenta dos estudos acadêmicos para questionar relações de poder e questionar o que é dito, seja pelos atores da política, pelos números ou pela literatura. Esta contribuição epistemológica, teórica e metodológica tem uma história própria e uma autoria que não é possível desconsiderar e que não se resolve apenas adotando o termo "gênero". É necessário reconhecer e nomear esta contribuição, dado o caráter político fundante do campo da saúde coletiva, como bem assinalado pelas autoras.

Assim, postulamos a necessidade de sistematização crítica do debate sobre gênero e saúde, especialmente no que se refere ao trabalho voltado aos homens e às masculinidades no campo dos direitos reprodutivos, em particular no contexto das políticas públicas. Para tanto, é necessário reconhecer que as teorias de gênero que dialogam mais diretamente com o feminismo constituem um campo teórico-epistemológico em constante desenvolvimento e revisão e que os estudos de gênero, embora por vezes considerados uma espécie de evolução do pensamento feminista, precisam resgatar os princípios críticos a partir dos quais foram forjados, ou seja, precisam resgatar a matriz ético-política feminista.

  • 1. Lyra J. Homens, feminismo e direitos reprodutivos no Brasil: uma análise de gênero no campo das políticas públicas (2003-2006) [tese]. Recife (PE): Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2008.
  • 2. Connell RW, Hearn J, Kimmel M. Introduction. In: Kimmel M. Hearn J, Connell RW, editors.Handbook of studies on men and masculinities California: Sage; 2005. p. 1-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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