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Gênero, gêneros: onde se encontram mulheres e homens?

Gender, genders: where women and men meet?

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Gênero, gêneros: onde se encontram mulheres e homens?

Gender, genders: where women and men meet?

Carlos Botazzo

Instituto de Saúde. E-mail: cbotazzo@hotmail.com

A oportunidade deste artigo de Villela, Monteiro e Vargas1 assume relevância no presente da saúde coletiva e do Sistema Único de Saúde no Brasil por motivos essenciais, um dos quais apontado no próprio texto das autoras: trata-se de recuperar a crítica que uma epistemologia engajada também definiria como o reconhecimento de que "os estudos de saúde no campo das ciências humanas e sociais [...] nem sempre conseguem avançar na análise dos modos particulares como as relações de gênero se organizam em situações concretas e específicas" .

Tal enunciado fornece base suficiente para problematizar algumas das referências teórico políticas presentes no texto que acabamos de ler. O comentário geral enfoca algumas questões marginais na produção teórica da saúde coletiva que de um modo ou de outro acabam refletindo, interferindo, interagindo e determinando os contornos e os modos de agir do SUS brasileiro.

Já vai longe o tempo em que se discutia a "natureza" de gênero, se significava feminismo, se tinha a ver tão somente com - sexo mulheres, evidentemente - ou se podia ver-se como algo que, instalado na cultura, fosse tomado como uma categoria transitiva, em movimento, com capacidade de deslocar posições políticas fossilizadas; do contrário, gênero corresponderia a sexo e nos veríamos diante da equivalência biológica do termo. A literatura pesquisada e comentada no artigo já bem resolve esta controvérsia.

Também vai longe o tempo em que os movimentos sociais e entidades sindicais, ou o que genericamente se poderia denominar "a esquerda", não conseguia assimilar amplamente a luta das mulheres e as posições políticas daí derivadas, o que sempre resultava em debates mornos e em contemporizações piedosas.

Mas ainda permanece o estranhamento entre homens e mulheres quando se trata de discutir "a relação", parecendo não serem claras o suficiente as categorias do masculino e do feminino. E isto não significando tão somente o relacionar-se de homens e mulheres, mas também das mulheres entre elas e dos homens entre eles, por ser grande a diversidade e o temperamento de cada um. E mais estranho que tanta variedade de "masculinos" e diversidade de "femininos", é o fato de alguns homens não tolerarem muitas das tendências tidas como masculinas, como algumas mulheres terem restrições a comportamentos ou atitudes tidas como compatíveis com o "ser mulher". Ou bem entendemos isso ou no fim concordaremos que se acha em operação uma redução do masculino e do feminino aos seus papéis tradicionais, e aí voltamos ao ponto de partida: a sagrada família, o matrimônio, o sexo reprodutivo, a repressão sexual, ou seja, tudo o que não queremos - nós, os movimentos sociais, a saúde coletiva, a militância feminista e a sanitária.

As autoras situaram no texto algumas posições que merecem atenção crítica. Uma delas, das quais nos ocuparemos neste debate, refere-se a um conjunto de problemas autorizados por gênero, porém tomados pelo conceito de desigualdade.

Possivelmente, nenhum tema tem sido mais mal-tratado na produção teórica e na prática política que desigualdade. As mulheres se implicam fortemente com desigualdade e vêem homens sempre do outro lado. Valeria a pena refletir sobre tal questão e verificar onde a coisa começa e onde termina. Ou melhor, sabemos onde termina: com as mulheres na condição de "desiguais". Sabemos mais que isso, é preciso que se diga. No projeto político do positivismo do século XIX, tal questão emerge com clareza suficiente para o propósito atual. De fato, na teoria de Augusto Comte2 encontramos as bases do pensamento que, na sociedade burguesa, orientará as formas da política entre os sexos (ainda não se tratava de gênero). Acerca disto, o positivismo comteano é claro e elucidativo: há um processo revolucionário em marcha (Comte escreve em meio ao fragor das revoluções européias daquele século) e é preciso impedir que a vasta massa do proletariado à beira da miséria - trabalhadores homens e mulheres -, pudesse se interessar pela política e, pior que tudo, se interessar pelo poder político. Comte pensa coerentemente que o proletariado deveria ser educado de modo positivo, isto é, sabendo o lugar que ocupa na sociedade. Esta classe social, que ele chama de "produtores", é generosa e altruísta porque, sendo ela que produz todos os bens de que a sociedade necessita, não deseja reter tais produtos consigo; ao contrario, o proletariado entrega o que produziu e não quer nada em troca. Para que esta disposição continue a prevalecer, duas coisas são necessárias. A primeira é que o proletariado seja educado de tal modo que jamais pense em reivindicar o poder político para si; se isto ocorresse, seria verdadeiramente um desastre. Educar positivamente é educar tendo em vista concepções claras, corretas, é afirmar que as coisas são como devem ser, que as vontades e os comportamentos (a moral) são orientados pela ciência. Educar é formar o "ser social" 3. Formar quer dizer: colocar na forma, modelar conforme - conformar, conformado, conformismo - e eis que o proletariado deverá ser formado conforme as necessidades da sociedade positiva. Esta, nos dirá Comte, compreende a classe dos empreendedores (para os quais não adianta pensar qualquer tipo de educação, pois se acham ocupados com lucros e negócios), os filósofos e as mulheres. Os filósofos são mais ou menos como os proletários, ao menos no aspecto do altruísmo, pois também entregam à sociedade o produto do seu pensamento. Quanto às mulheres, e isto é o que mais nos interessa, elas serão a pedra angular sobre as quais se erguerá a sociedade positiva. Elas produzem filhos para a sociedade, são naturalmente reacionárias e a elas não interessam as ilusórias montagens da modernidade; renunciarão a qualquer projeto da inteligência e, antes, se dedicarão à sociabilidade, e à tarefa de educar positivamente o proletariado; a mulher proletária, ao renunciar à inteligência, recusará também o trabalho fora de casa e se dedicará à maternagem e ao cuidado do seu marido proletário, em suma, ao cuidado do lar. Serão castas, e - junto com a reprodução biológica - reproduzirão subjetivamente a nova ordem social (capitalista).

Não estaria nesta fabulação positivista já contida a posição de gênero? Por mais caricata que possa parecer tal reconstrução, ela não conteria o conceito contemporâneo de divisão sexual e social do trabalho, que dá origem ao conceito de gênero?

Tomando-se gênero como o processo social que constrói diferenças e hierarquias sexuais, delimitando o que seria o masculino e o feminino, fica uma indagação, pois trata-se tanto de discutir categorias como de evidenciar hierarquias e relações de poder daí decorrentes. Ou seja, apontar que masculino e feminino são diferenciações biológicas e sociais que implicam relações de poder e resultam na subalternidade das mulheres.

São colocações corretas, mas que não elucidam como se produziu a dominação de umas pelos outros. É preciso saber se não estaria intuído nestas colocações que homens - isto é, todos os homens - são livres; mulheres não são livres. Seria livre o "homem-proletário"? É possível especular que este homem-proletário, amanhado por sua companheira, ao se tornar provedor, tenha adotado a posição de dominador da mulher, autorizado a tal exercício de poder pela filosofia. No entanto, a experiência indica que o proletariado não renuncia espontaneamente ao poder político sobre a sociedade; é pela educação (ideologia) que se logrará tal renúncia, não havendo a renúncia "altruísta", como quer o positivismo comteano. Reproduz-se, deste modo, o esquema geral dos exercícios de poder, a dominação de uns sobre outros e a reprodução da dominação na escala microeconômica, conformado como micropoderes. Num primeiro plano, homens e mulheres acham-se submetidos aos dispositivos gerais da ordem instaurada nas relações capitalistas; num segundo plano, estes mesmos homens e mulheres garantirão a manutenção e a reprodução de tais arranjos de poder nas suas relações pessoais.

Cabe assim indagar-se se não estaria necessitado deanáliseeste homem-proletário que não é capaz de produzir a própria existência subjetiva de modo autônomo e ao qual cabe interrogar sobre seus próprios desejos e fragilidades, e cujo modelo de masculinidade não é mais que um simulacro. E é aqui que talvez emerja a força do conceito de gênero, pois ele contém, e de uma vez só vez, a possibilidade de dissolver a rigidez das fronteiras nas relações entre os sexos e indicar caminhos para a sociedade.

A ênfase na condição feminina para o trabalho reprodutivo implica discutir o lugar das mulheres no SUS. Se as culturas atribuem valores e sentidos diversos à constituição anatômica e à participação de mulheres e homens na reprodução biológica, como encontramos no texto em debate, estes valores de certo determinam modos distintos de viver, adoecer e morrer. Por isso, a "utilização da categoria gênero na análise de eventos de saúde encontra-se relacionada ao conceito de determinação social do processo saúde-doença".

Ora, o sistema público de saúde brasileiro tem se notabilizado pela afirmação de políticas que visam à equidade e à inclusão social. No entanto, esta boa intenção não tem apresentado resultado prático compatível. Ou seja, há forte contradição entre a intenção e o gesto, na medida em que o sistema funciona ainda pela lógica de quantidades realizadas (procedimentos, internações, intervenções) e resulta que grupos sociais majoritários, como são as mulheres, idosos, população negra, etc., ocupam lugar marginal ou são objeto de políticas especiais. A observação das políticas pactuadas no nível loco-regional na PPI, tal como a conduzida no âmbito do Observatório de Saúde Bucal Coletiva3 em cidades da Região Metropolitana de São Paulo, indicam que elas são pautadasin abstracto, desaparecendo da cena toda irregularidade e toda diferença; ao contrário, planeja-se levando em conta "a população" e assim esta categoria demográfica passa a encobrir a diferença. As ações coletivas são reduzidas ao trabalho com grupos numa perspectiva clínica, e desaparecem gênero, sexualidade, classe social e etnia, cultura, subjetividade, pobreza, violência, ou tudo isto junto, porém tomado na perspectiva da medicalização.

Oxalá logremos, algum dia, "que a produção de evidências sobre desigualdades em saúde decorrentes das desigualdades de gênero seja capaz de impactar políticas públicas."

  • 1. Villela W, Monteiro S, Vargas E. A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em Saúde Coletiva: o caso do uso da categoria gênero.Cien Saude Colet 2009; 14(4):997-1006.
  • 2. Comte A. Curso de filosofia positiva São Paulo: Abril Cultural; 1978.
  • 3. Botazzo C, Barros RS, Martino LVS, Oliveira MA, Pires FS. O relatório científico do "Observatório de saúde bucal coletiva. Construindo a cidadania na saúde", com informações úteis para o planejamento, avaliação e monitoramento dos serviços de saúde bucal das cidades e regiões, e outros subsídios para a educação permanente dos trabalhadores da saúde. In: Botazzo C, Oliveira MA, organizadores. Atenção básica no Sistema Único de Saúde: abordagem interdisciplinar para os serviços de saúde bucal São Paulo: Páginas e Letras; 2008. p. 239-290.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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