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O médico doente

RESENHAS BOOK REVIEWS

Nelson Filice de Barros

Laboratório de Pesquisa Qualitativa em Saúde, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp

Varella D. O médico doente. São Paulo: Companhia das Letras; 2007. 129 p.

Ele que sabe muito, entendeu pouco...

O livro O médico doente1, escrito por Drauzio Varella e publicado pela Companhia das Letras, em 2007, compõe a importante literatura produzida por médicos enquanto pacientes. Vários profissionais da medicina juntaram o desejo à necessidade de expressar-se, para produzir textos reveladores dos alcances e limites do modelo da prática médica. Entre eles, talvez o mais conhecido seja Oliver Sacks, que relatou após o acidente que lhe fraturou uma perna, [...]a sistemática despersonalização que se vive quando se é paciente. As próprias vestes são substituídas por roupas brancas padronizadas e, como identificação, um simples número. A pessoa fica totalmente dependente das regras da instituição, se perde muitos dos seus direitos, não se é mais livre2.

O livro de Varella é de muito fácil e agradável leitura, pois entremeia percepções do médico às do paciente, em meio à intensa viagem temporal entre presente e passado. Inicia sua narrativa com o retorno à cidade de São Paulo, após uma expedição no Rio Negro, entre as mais de cinquenta de que já participou, onde é desenvolvido um projeto de pesquisa botânica, com o fim de produzir fitoterápicos, sob sua coordenação. Segue a narrativa na forma de um diário em que relata minuciosamente os sentidos e sentimentos trazidos pela doença, que, ao levar dias para ser diagnosticada, causou intenso sofrimento. Já internado e em processo de investigação diagnóstica, relata o suplício que é receber visitas de pessoas pouco próximas e pergunta ao leitor: “Existe constrangimento maior do que passar mal na presença de pessoas com quem não temos intimidade?” Com isso, a família e ele restringem as visitas com a enfática afirmação da mulher: “No seu estado, não tem cabimento ser obrigado a fazer sala para visitantes”.

Outro fato que se percebe no relato do “médico doente” é a presença constante e próxima do núcleo familiar do autor, formado pela mulher e duas filhas, sendo a mais jovem médica residente, à época. Alguns momentos cruciais da narrativa passam-se exatamente nas percepções diferentes dos dois conjuntos formados pelos membros da família, médicos e leigos. Assim, vários fatos mostram a cumplicidade com a filha médica, em oposição a certa “ingenuidade” da mulher e da filha mais velha, como, por exemplo, quando a mulher afirma sorrindo:

¯ Tenho uma boa notícia. Descobriram o que você tem: febre amarela.

¯ Isso é grave – foi o que pude dizer.

Para ela, o diagnóstico trazia o fim das incertezas; para mim, o risco de morte.

Ou ainda, no relato das ultimas páginas do livro: O pessimismo não se restringiu a mim e ao infectologista. Todos os médicos que me assistiram consideraram o coma hepático seguido de óbito a hipótese mais provável. Minha filha Letícia e diversos colegas que me visitaram ou acompanharam a evolução à distância, também. Apenas Regina, Mariana[filha mais velha]e minha irmã Maria Helena deixaram de levar em conta essa eventualidade.

No fim, as três que não eram médicas foram as únicas a prever o desfecho.

Sabe-se que a narrativa literária é um importante elemento para análises sócio-antropológicas, tornando-se inclusive um método de coleta e análise de dados, pois a compreensão do adoecer não ocorre apenas a partir dos enunciados das narrativas dos sujeitos da doença. Esses enunciados, em específico, e a narrativa, em geral, devem ser entendidos como recortes de uma realidade que os contém, sem, contudo, a eles se reduzir.[...] [Assim] as narrativas problematizam a relação entre cultura ou formas simbólicas e experiência.[...] [Sendo] uma forma na qual a experiência é representada e recontada e os eventos são apresentados como tendo uma ordem significativa e coerente3.

Portanto, não é estranho afirmar que do livro é possível compreender importantes aspectos da sociologia da profissão médica e do modelo biomédico. No entanto, um aspecto específico chama atenção, devido a uma possível contradição entre o relato e o conceito de ruptura biográfica. De acordo com Varella, A doença infecciosa tem o poder de expor a fragilidade do corpo humano como nenhuma outra.[...]Infelizmente, em meu caso a ameaça de perder a vida não trouxe transformações filosóficas, iluminações espirituais, nem mudanças práticas significativas. [...]Das duas uma: ou me faltou sensibilidade para viver em plenitude a experiência transformadora de chegar à beira do abismo, ou a metamorfose ocorre somente com os que não levam a sério a finalidade da própria existência.

Todavia, na literatura da sociologia da saúde, as investigações sobre a “experiência de quase-morte”4 tem se dado mais com as doenças crônicas e menos com as agudas. Sobretudo, porque elas são as principais responsáveis pelo processo de ruptura na vida das pessoas, pois a ausência da perspectiva de cura leva o indivíduo a negociar e gerenciar seu estado alterado, para identificar e obter o suporte físico, psíquico, social e religioso necessário5,6.Certamente, a metamorfose se dá por exigir da pessoa em condição crônica processos, como: de adaptação - experiência cognitiva desenvolvido pelo portador da cronicidade para sustentar sua autoconfiança para lidar com as alterações promovidas no corpo e na vida; de definição de estratégias -ações envolvidas no gerenciamento da condição e seus impactos nas interações e mudanças da vida; e de definição de um estilo de vida - adoção de estilo ou de ajustamento à nova condição, que requer a decisão individual sobre as relações de temor e identidade que serão construídas7.

Embora o autor tenha tido experiências de cunho profissional, inclusive relatadas no livro “Por um fio”, publicado em 2004, e pessoal de proximidade com a morte, certamente o tempo de três semanas de exposição e sofrimento não foi o suficiente para registrar transformações existenciais; ou, quem sabe, a sua mente racional e biomédica não lhe permite realizar essas passagens. Assim, concluo que ele, que sabe muito, entendeu pouco e ele sumariza afirmando que Embora tenha sido decepcionante não ter enxergado a luz do fim do túnel, de certa maneira foi uma descoberta tranqüilizadora emergir da febre amarela com a consciência de que estava disposto apenas a modificar o horário de trabalho. Não pretendia trocar de mulher nem de profissão, nem abandonar o atendimento na cadeia, os programas educativos na TV, as viagens para o Rio Negro e a mania obsessiva de pensar em escrever sobre tudo o que me acontece.

  • 1. Varella D. O médico doente Săo Paulo: Companhia das Letras; 2007.
  • 2. Caprara A, Franco ALS. A Relaçăo paciente-médico: para uma humanizaçăo da prática médica.Cad. Saúde Pública [periódico na Internet]. 1999 [acessado 2009 jan 14]. 15(3):[cerca de 7 p.
  • 3. Gomes R, Mendonça EA, Pontes ML. As representaçőes sociais e a experięncia da doença. Cad. Saúde Pública [periódico na Internet]. 2002 [acessado 2009 jan 14]. 18(5):[cerca de 8 p.
  • 4. Bury M. Chronic illness as biographical disruption. Sociology of Health and Illness1982; 4(2):167-182.
  • 5. Moody Jr RAR. Vida depois da vida - a investigaçăo do fenômeno de sobrevivęncia ŕ morte corporal Rio de Janeiro: Nórdica; 1986.
  • 6. Bury M. The sociology of chronic illness: a review of research and prospects. Sociology of Health and Illness 1991; 13(4):451-468.
  • 7. Gabe J, Bury M, Elston M, editors. Key Concepts in Medical Sociology London: Sage; 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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