Acessibilidade / Reportar erro

Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil

RESENHAS BOOK REVIEWS

Alberto Carneiro Barbosa de Souza

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz

Kulick D. Travesti – prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. 280 p.

Segunda-feira no centro do Rio de Janeiro. Entro no banco, vou até o gerente e, entregando-lhe contas para serem pagas, coloco o livro de Don Kulick sobre sua mesa. O homem volta sua atenção para a capa colorida, dançando seu olhar sem disfarce entre a tela de seu computador, o livro e eu. Em silêncio, observo a cena. É nítida a forma com que a palavra em vermelho travesti, escrita na parte superior da capa, atrai seu olhar. Ao final do atendimento, ao me levantar, o rapaz gentilmente segura meu braço e pergunta: “o senhor é psicólogo, correto?”. Surpreso com a precisão de seu palpite, balanço positivamente a cabeça e pergunto como ele chegara a esta conclusão. A resposta veio fulminante, surpreendendo-me ainda mais: “ora, o senhor, um cidadão de bem, lendo sobre esse assunto, só pode ser por interesse científico. Essa gente é estranha, não dá para entender: ou a pessoa é homem ou é mulher!”

A partir deste episódio, não é difícil compreender a importância do livro de Don Kulick, professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Estocolmo e doutor pela mesma instituição, além de diretor do Centro de Estudos de Gênero e Sexualidade da Universidade de Nova York.

A obra de Kulick, ao por em discussão a questão de gênero em um estudo etnográfico que resultou na pesquisa qualitativa realizada no ano de 1997 com treze travestis na cidade de Salvador, relativiza e desconstrói sua naturalização. Se os binarismos hetero/homossexualidade e homem/mulher fossem mais amplamente debatidos na sociedade, provavelmente o estranhamento daquele gerente não teria sido tão desmesurado.

Logo na introdução e no primeiro capítulo, o autor delineia o cenário no qual a pesquisa foi realizada, explicando como o gênero feminino, por si só, não extingue em si mesmo qualquer explicação superficial, uma vez que nem sempre parece ser único em diferentes contextos sociohistóricos. Além disso, Kulick aponta para uma interessante interseção nas travestis que, apesar de homens em sua biologia, produzem um logos feminino discursivamente construído que será marcado também em seus corpos, justificando, desta forma, seu gênero como legitimamente feminino, sem se confundirem, contudo, com mulheres.

Da teoria ao campo, Kulick acompanha a transformação corporal e psicoemocional das travestis. Deste modo, o autor nos convida a uma profícua investigação antropológica, ressaltando as dimensões simbólicas, assim como o papel da cultura na construção do corpo. Ao ler o segundo capitulo , Virando Travesti, percebemos como o corpo é construído por práticas, crenças e relações do sujeito com seu ethos, sustentando as estruturas sociais de cada grupo. Assim, é possível perceber como as entrevistadas traduzem a noção de que seus corpos são sua linguagem, já que é neles que as travestis se produzem e se constituem como sujeitos.

Avançando na investigação, no terceiro capítulo, intitulado Um Homem na Casa, Kulick apresenta a vida privada das travestis. Aqui, os relacionamentos e o sexo com seus parceiros são explorados de forma a mostrar mais uma vez como o gênero e o sexo são construídos e não dados necessariamente naturais. Apesar de se relacionarem com homens que se identificam socialmente como tal, não raro estes são “feminizados”, assumindo muitas vezes, dentro da dinâmica do casal, o papel que a mulher faria na família tradicional, sendo sustentados pelas travestis ou cuidando dos afazeres domésticos. A partir deste registro, percebemos que se o sexo for tomado pelo gênero, não parece prudente definir este último como sendo uma simples interpretação cultural do primeiro. Em outras palavras, é possível afirmar que nem sempre o gênero ocupa, na cultura, o mesmo papel que o sexo exerce na biologia. Portanto, parece pertinente citarmos aqui a célebre afirmação de Simone de Beauvoir, ao dizer que “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”1.

A prostituição é a fonte de renda mais comum entre as informantes. Como não existiam em Salvador estabelecimentos exclusivos para clientes que procurassem este tipo de serviço durante a realização da pesquisa, o local de trabalho acabava sendo mesmo a rua, o carro do cliente ou um quarto de hotel mais próximo. Assim, no capítulo intitulado O Prazer da Prostituição, somos presenteados com um excelente estudo etnográfico, no qual descobriremos juntos com o pesquisador as características socioculturais deste grupo de travestis em busca da construção do valor de sua identidade social. Dos programas que resultam prazerosos e gratificantes aos encontros, culminando em assaltos e ameaças, Kulick faz uma competente narrativa panorâmica do principal meio de sobrevivência das travestis.

Keila, Rita Lee, Lia Hollywood, Elizabeth, Magdala, Érika: determinar o gênero, apontar o sexo, definir a sexualidade. Serão realmente importantes estes questionamentos? Seria uma identidade marcada e definida verdadeiramente necessária para a constituição do sujeito? Estas perguntas são amplamente discutidas no capítulo final, Travesti, Gênero e Subjetividade. Acompanhando as travestis por vários meses, Kulick analisou a importância da demarcação do que seria natural para o que é transformado no corpo e na psique de cada uma, concluindo que, na verdade, parece ser importante para elas manter a biologia como está, sem, contudo, identificar-se com qualquer um dos gêneros criados por um binarismo fortemente essencialista.

Assim, através de uma sabedoria que surge das ruas e das práticas, nasce um novo gênero: o travesti. Não parece haver uma clara preocupação em ser ou não mulher, do mesmo modo como não há o questionamento em não ser homem nos moldes instituídos por um mainstream hegemônico e heterocentrista. Admitindo por vezes as “vantagens” da mulher por possuir vagina, argumentam ao mesmo tempo a respeito da superioridade fálica das travestis. Isentas de rótulos identidários marcados e engessados, elas usam o silicone para se fazerem fêmeas e o pênis para se construírem machos. Sem conflito. Sem drama. Com liberdade.

O livro Travesti – prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil,de Don Kulick, se mostra, portanto, de grande importância para o profissional de saúde pública, já que, como sabemos, a saúde não é só a ausência de doença, mas, antes, o bem-estar físico, mental e social. Como não parece ser fácil haver saúde mental sem uma rede social de apoio ao cidadão,as travestis que por ventura procurem o sistema de saúde público podem começar a ser pacientes e deixar, aos poucos, de serem apenas padecentes.

  • 1. Beauvoir S. The Second Sex New York: Vintage; 1973.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br