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Utilização da telemedicina como estratégia de promoção de saúde em comunidades ribeirinhas da Amazônia: experiência de trabalho interdisciplinar, integrando as diretrizes do SUS

Use of telemedicine technology as a strategy to promote health care of riverside communities in the Amazon: experience with interdisciplinary work, integrating NHS guidelines

Resumos

Este artigo apresenta uma experiência de formação educacional e de assistência médica, utilizando a telemedicina como recurso tecnológico para a promoção e prevenção em saúde, além da capacitação profissional de populações ribeirinhas do baixo Madeira, no Estado de Rondônia. A atuação contou com a constituição de um pequeno pólo de telemedicina na comunidade de Santa Catarina, localizada no rio Madeira, há duzentos quilômetros do município de Porto Velho. A experiência no campo foi realizada entre 17 e 31 de julho de 2006, promovendo a inclusão de moradores de nove comunidades ribeirinhas. O sistema permitiu a troca simultânea de vídeo e áudio em tempo real, possibilitando acesso à informação, assistência médica e palestras sobre prevenção em saúde básica à população em geral. A realização deste projeto mostrou que a implantação da telemedicina é uma alternativa para a melhor distribuição dos serviços de saúde. Além de levar o atendimento a populações menos favorecidas, permite a reintegração social de pessoas preteridas pelo isolamento geográfico, auxilia na difusão de informação, proporciona capacitação aos moradores e futuros usuários do sistema, promove a prevenção em saúde, desenvolvendo a responsabilidade da população para uma melhor da qualidade de vida da região.

Telemedicina; Amazônia; Saúde coletiva; Atendimento interdisciplinar


This article aims at presenting an experience of professional and medical assistance education using telemedicine as a technology for the promotion and prevention in health care as well as professional qualification of the riverside population living in the margins of Madeira river, in the State of Rondônia. This project comprised a small pole of the telemedicine in the community of Santa Catarina, located by Madeira river, 200 km from the city of Porto Velho, Rondônia State. Field experience was performed between July 17 and 31, 2006, promoting the inclusion of inhabitants of nine riverside communities. The system allowed simultaneous, real time audio and video exchange providing the riverside communities with unique access to information, medical assistance, and lectures on prevention in basic health to the population in general. This project showed that the implantation of telemedicine is an alternative for a better distribution of health services. In addition to bringing assistance to people less favoured, it allows social reintegralization of people excluded due to geographic isolation, assists in information diffusion, proves education to the population and future system users, promotes prevention in health, developing responsibility of the population for a better quality of life of the region.

Telemedicine; Amazon; Public health; Multisector assistance


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Utilização da telemedicina como estratégia de promoção de saúde em comunidades ribeirinhas da Amazônia: experiência de trabalho interdisciplinar, integrando as diretrizes do SUS

Use of telemedicine technology as a strategy to promote health care of riverside communities in the Amazon: experience with interdisciplinary work, integrating NHS guidelines

Felipe Salles Neves MachadoI,II; Marcela Alves Pinto de CarvalhoI,II; Andrea MataresiI,III; Eloísa Trevisan MendonçaI,IV; Lucila Moraes CardosoI,V; Milton Seiyu YogiVI; Hamilton Modesto RigatoI; Marcelo SalazarI,VII

INúcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia (NAPRA). Rua Professor Fernando Thielli 21, Vila Pompéia. 13050-472 Campinas SP. felipemac@msn.com

IIFaculdade de Medicina de Catanduva

IIIDepartamento de Psicologia, Universidade Presbiteriana Mackenzie

IVFaculdade de Enfermagem de Catanduva

VUniversidade Paulista

VIUniversidade Cidade de São Paulo

VIIFaculdades Metropolitanas Unidas

RESUMO

Este artigo apresenta uma experiência de formação educacional e de assistência médica, utilizando a telemedicina como recurso tecnológico para a promoção e prevenção em saúde, além da capacitação profissional de populações ribeirinhas do baixo Madeira, no Estado de Rondônia. A atuação contou com a constituição de um pequeno pólo de telemedicina na comunidade de Santa Catarina, localizada no rio Madeira, há duzentos quilômetros do município de Porto Velho. A experiência no campo foi realizada entre 17 e 31 de julho de 2006, promovendo a inclusão de moradores de nove comunidades ribeirinhas. O sistema permitiu a troca simultânea de vídeo e áudio em tempo real, possibilitando acesso à informação, assistência médica e palestras sobre prevenção em saúde básica à população em geral. A realização deste projeto mostrou que a implantação da telemedicina é uma alternativa para a melhor distribuição dos serviços de saúde. Além de levar o atendimento a populações menos favorecidas, permite a reintegração social de pessoas preteridas pelo isolamento geográfico, auxilia na difusão de informação, proporciona capacitação aos moradores e futuros usuários do sistema, promove a prevenção em saúde, desenvolvendo a responsabilidade da população para uma melhor da qualidade de vida da região.

Palavras-chave: Telemedicina, Amazônia, Saúde coletiva, Atendimento interdisciplinar

ABSTRACT

This article aims at presenting an experience of professional and medical assistance education using telemedicine as a technology for the promotion and prevention in health care as well as professional qualification of the riverside population living in the margins of Madeira river, in the State of Rondônia. This project comprised a small pole of the telemedicine in the community of Santa Catarina, located by Madeira river, 200 km from the city of Porto Velho, Rondônia State. Field experience was performed between July 17 and 31, 2006, promoting the inclusion of inhabitants of nine riverside communities. The system allowed simultaneous, real time audio and video exchange providing the riverside communities with unique access to information, medical assistance, and lectures on prevention in basic health to the population in general. This project showed that the implantation of telemedicine is an alternative for a better distribution of health services. In addition to bringing assistance to people less favoured, it allows social reintegralization of people excluded due to geographic isolation, assists in information diffusion, proves education to the population and future system users, promotes prevention in health, developing responsibility of the population for a better quality of life of the region.

Key words: Telemedicine, Amazon, Public health, Multisector assistance

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) preconiza a universalização do acesso, integralidade da atenção, equidade, descentralização da gestão, hierarquização dos serviços e controle social. A gestão participativa vem somar a esses princípios doutrinários a ampliação dos espaços públicos de construção e pactuação da política de saúde nas esferas governamentais, fortalecendo os espaços instituídos de controle social, mobilizando a população em torno do direito à saúde e, ao mesmo tempo, promovendo a equidade. Esses fatores criam, na estrutura do Ministério da Saúde, um espaço de inclusão e diálogo com grupos populacionais socialmente excluídos1. A situação da saúde, no Brasil, passou por inegáveis avanços nos últimos dez anos, após a implantação do SUS.

Se muitos problemas evoluíram favoravelmente, novos desafios somaram-se aos antigos, exigindo uma estratégia que promova a descentralização, regionalização, tecnologia e informação, no sentido de buscar a construção da integralidade, equidade e atenção humanizada da saúde, que atenda de forma abrangente populações excluídas.

Com a criação e implementação do Programa Saúde da Família (PSF), parte das populações tradicionais da Amazônia, como é o caso de algumas das populações ribeirinhas, tiveram um acesso à saúde que não possuíam antes. Porém, em se tratando de uma região geográfica de dimensões continentais e sua população se estabelecer ao longo de centenas de rios, na maioria das vezes, sem acesso por estradas, grande parte das pessoas permanecem completamente isoladas. Neste cenário, a telemedicina contribui para associar tecnologia de informação e promoção de saúde, diminuindo a distância dessas populações com os grandes centros.

O presente estudo aborda a utilização da telemedicina como recurso de diagnóstico e de educação em saúde nas comunidades ribeirinhas localizadas na região denominada "baixo rio Madeira" ao norte do Estado de Rondônia, em uma faixa de 100 à 250 km de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia.

Condições adversas e ausência quase total dos serviços de saúde de média e alta complexidade, acrescidas do isolamento geográfico e falta de profissionais, acarretam muitas vezes o não cumprimento dos direitos à saúde e a universalidade da assistência.

Este motivo levou o Núcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia (NAPRA)2 a executar a primeira experiência completa de telemedicina na Amazônia. O NAPRA é uma associação privada, sem fins lucrativos, que realiza projetos interdisciplinares na Amazônia há mais de dez anos. A missão do NAPRA é dar suporte ao desenvolvimento de comunidades tradicionais em áreas ricas em biodiversidade com ações integradas de saúde, educação e produção e, ao mesmo tempo, contribuir com o desenvolvimento da consciência de trabalho social e interdisciplinar de estudantes universitários integrados ao projeto. As principais atividades do projeto são realizadas todo mês de julho com um grupo de cinquenta a setenta integrantes de diversas universidades e áreas do conhecimento. As principais linhas de atuação são: atendimento médico, odontológico, fisioterapêutico, análises laboratoriais, educação em saúde, formação de educadores ribeirinhos, atividades de ressignificação da cultura local, pesquisas de tecnologias sociais em saúde, educação e produção, suporte à produção e comercialização de produtos florestais não madeireiros (PFNM) e apoio no planejamento das unidades de conservação local. Para cumprir esses objetivos, o NAPRA conta com uma rede de parceiros e colaboradores de diversas empresas e instituições governamentais e não governamentais.

Projeto de telemedicina

Os objetivos do projeto de telemedicina são:

1. Execução da telemedicina como recurso tecnológico para a promoção e prevenção da saúde em comunidades isoladas, mostrando a viabilidade do atendimento de saúde para populações nessas condições de isolamento;

2. Capacitação profissional de agentes de saúde locais para uso desta tecnologia;

3. Capacitação para o manuseio desta tecnologia aos estudantes universitários durante sua extensão universitária, introduzindo aos estudantes de diferentes instituições e cursos uma realidade diferente daquela vivenciada em sua vida acadêmica;

4. Ser exemplo para a implantação de outros sistemas semelhantes em diferentes regiões do país.

Devido ao pioneirismo e complexidade desta primeira experiência de telemedicina em comunidades isoladas na floresta amazônica, aliado aos recursos extremamente limitados que o NAPRA dispunha, foi necessária a mobilização de uma rede organizações para a concretização do projeto. Os principais atores e suas responsabilidades são:

1. Projeto NAPRA - idealizador, articulador, investidor financeiro e executor da experiência;

2. Equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) do Município de Porto Velho - disponibilizarão da infra-estrutura das Unidades Básicas de Saúde (UBS);

3. Unidades de serviço hospitalar de atenção terciária - Hospital Escola Emílio Carlos de Catanduva, Hospital Escola Padre Albino de Catanduva - prestação de suporte médico à distância por meio da disponibilizarão de seu corpo clínico;

4. GoDoctor - disponibilização dos softwares, capacitação dos executores e orientação de todo o sistema de telemedicina empregado;

5. Instituto de Telemedicina (ITMS) - equipamentos de eletrocardiograma transtelefônicos, bem como profissionais para pronta análise dos eletros e diagnóstico;

6. Pólo de Telemedicina da Amazônia, Manaus - suporte remoto para as teleconsultas;

7. Telespazio - empresa contratada para estabelecer o link de Internet satelital de alta velocidade e instalação da antena receptora na comunidade;

8. IBAMA-RO e SEMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Velho) - suporte logístico;

9. Grupo Jovens com uma missão (JOCUM) - médico para suporte remoto para as teleconsultas e presencial durante alguns dias;

10. Médicos de diversas instituições do Estado de São Paulo - suporte remoto para as teleconsultas3.

Abrangência da experiência

O Estado de Rondônia conta com 1,31 milhões de habitantes; cerca de um quarto desta população mora na capital. Entre as décadas de sessenta e oitenta do século passado, a população do estado cresceu nove vezes.

O saneamento básico é considerado precário. Segundo o censo de 1998 do IBGE, a rede de esgoto alcançava apenas 3,5% dos domicílios do estado. Os reflexos dessas condições insalubres aparecem na saúde da população: o estado é considerado pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) uma região endêmica de malária, leishmaniose e febre amarela.

O Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (SNVS) publicou, em 2006, um coeficiente geral de mortalidade inferior a 4,0/1 mil hab., indicando precariedade na cobertura das informações de mortalidade4. De acordo com dados do Conselho Federal de Medicina, o estado conta com 4,59 médicos para cada grupo de 10 mil habitantes, menos da metade do que é considerado aceitável pela Organização Mundial de Saúde.

Essa situação precária de desenvolvimento se mantém, principalmente, pelo isolamento de seus núcleos populacionais, resultado de difícil acesso e distribuição disforme de seus contingentes5.

Devido a essas dificuldades, poucos profissionais se dispõem a trabalhar nestas áreas. Além disso, faltam projetos governamentais efetivos para o desenvolvimento dessas comunidades. A maioria das iniciativas contemplam questões imediatistas e resultados de curto prazo.

Nesse contexto, as populações ribeirinhas da Amazônia, distantes dos grandes centros, permanecem privadas do acesso a serviços básicos de saúde, educação e a opções que possam auxiliar em seu desenvolvimento, o que leva muitos jovens a emigrarem em busca de melhores condições de vida nos grandes centros populacionais.

Nos 250 quilômetros por via fluvial que separam Porto Velho do distrito de Calama, existem três bases do PSF, localizadas nas comunidades de maior tamanho São Carlos, Nazaré e Calama. Nestas bases, as equipes do PSF atuam de uma a três vezes ao mês nos finais de semana; porém, as UBS das comunidades menores, muitas vezes, ficam meses sem visita, e quando elas acontecem, o médico e o dentista atendem apenas dez consultas pré-agendadas, número insuficiente para a demanda. Em casos de emergência, o paciente precisa ser levado de barco (voadeira com motor 40HP) a Porto Velho, o que depende da disponibilidade de barco, piloteiro e combustível.

Dessa forma, a instalação de um pólo de telemedicina de baixa complexidade (PTBC) no Rio Madeira entre estas bases do PSF, certamente, traria uma melhora significativa no atendimento das necessidades da região, obtendo um modelo de atenção mais adequado, além de oferecer suporte a uma área de maior abrangência.

Descrição do processo

O pólo de telemedicina de baixa complexidade (PTBC) do Rio Madeira, instalado na comunidade de Santa Catarina, foi implementado em 2006 na UBS local e trabalhou intensivamente no período de 17 a 31 de julho. A escolha desta comunidade, entre as 28 localizadas na região do "baixo rio Madeira", obedeceu os seguintes critérios:

. Representatividade e localização -comunidade típica ribeirinha, cujo acesso se dá unicamente via fluvial a uma distância aproximada de duzentos quilômetros de Porto Velho e equidistante das principais comunidades do chamado baixo rio Madeira;

. Número de famílias - possui 26 famílias, todas cadastradas pelo PSF, número médio de famílias das comunidades da região;

. Estrutura da comunidade - possui gerador elétrico a diesel que funciona 24 horas, telefone público solar, associação de pescadores que permite alojar a equipe, escola em funcionamento e um administrador atuante;

. Recursos na área da saúde - sua UBS, apesar de ser totalmente de madeira, possui energia elétrica, água tratada e conta com dois agentes de saúde e da visita mensal da equipe de PSF;

. Abrangência do posto de saúde - nove comunidades do entorno dependem do atendimento desta UBS - Santa Catarina, Ilha de Iracema, Tira Fogo, Bomfin, Pombal, São José da Praia, Conceição da Galera, Lago do Caranã e Laranjal-, totalizando aproximadamente mil moradores.

Nas proximidades da UBS, foi construída uma base para receber uma antena com conexão de satélite, que trabalhou com a plataforma VSAT IP Banda Larga EVOLV. O sistema permitiu a troca simultânea, em alta velocidade, de vídeo e áudio com qualidade suficiente para o estabelecimento de videoconferências por meio de DSL (Internet - banda larga) a Centros de Suporte em Saúde (CSS) dos estados de São Paulo e Amazonas.

Para que toda a consulta e/ou aula fosse realizada com perfeição de voz e vídeo, foi necessário um ponto de Internet de banda larga conectado em computador com características mínimas (1.5 GHz, 512MB de memória RAM), acoplado a uma webcam de alta definição, softwaresespecíficos e um datashow.

Esses centros, em contato com o pólo de telemedicina de baixa complexidade (PTBC) do Rio Madeira, tinham disponibilidade diária e agenda para consultas com diversos especialistas da saúde. Os serviços de teleducação também funcionaram conforme agenda estipulada.

Com o sistema funcionando, os agentes de saúde informavam as comunidades e seus moradores da possibilidade da consulta médica e faziam triagem dos pacientes. Os estudantes, juntamente com o médico da equipe, examinavam-nos e agendavam suas consultas de acordo com a agenda de especialistas gerada, além de operar o sistema. Os agentes do posto de saúde acompanharam a instalação do sistema tecnológico, assim como as consultas, e experimentaram a facilidade do manuseio.

Implementação do sistema de telemedicina - barreiras, desafios e possibilidades

Ante à grande dificuldade de acesso, falta de estrutura, condições climáticas extremas, devido ao calor e chuvas constantes, e ao isolamento geográfico da região, o deslocamento e fixação de profissionais de saúde e de outras áreas de atuação é bastante difícil e custoso. Mesmo para o NAPRA, que atua todo mês de julho na região, a permanência de médicos com a equipe ao longo de apenas um mês sempre foi um grande desafio. Dessa forma, na busca de uma solução, em junho de 2004, surgiu a idéia de levar para a região formas alternativas de atendimento, aproveitando o grande avanço nas tecnologias de informação e de telecomunicações. A partir do contato realizado com a equipe de organização do MobileMed-congresso de mobilidade em saúde, realizado na UNIFESP em São Paulo-, surgiu o primeiro embrião da telemedicina, dando início às conversas que viabilizariam o atendimento em saúde via telemedicina já em 2004. A primeira aplicação prática só ocorreu em julho de 2005, com a realização de eletrocardiogramas. No entanto, em 2006, conseguiu-se unir um desenho tecnológico adequado aos recursos financeiros captados pelo NAPRA, possibilitando a realização da primeira experiência completa de telemedicina em comunidades ribeirinhas no interior da floresta amazônica. Através dessa experiência, é possível validar e avaliar ações de diferentes profissionais sem os custos, financeiros e pessoais, que implicam o deslocamento. A partir deste projeto, aplicado no rio Madeira, surgiu o conceito do pólo de telemedicina de baixa complexidade (PTBC).

Desde 2004, as barreiras a serem vencidas foram inúmeras, começando pelo desenho tecnológico do sistema e identificação de empresas de telecomunicações dispostas a enfrentar o desafio. A princípio, o sistema todo tinha um alto custo e uma logística muito complicada, inviabilizando sua operacionalização, na medida em que estavam previstas instalações de três antenas comunicando-se entre si para que o sistema funcionasse. No entanto, uma nova solução (mais barata e prática) foi desenhada, o que viabilizou o projeto. Outra barreira era convencer os diversos parceiros que uma ONG, relativamente pequena e composta em sua maioria por estudantes universitários e recém-formados, tinha know-how e persistência para realizar este projeto. Com o comprometimento de alguns dos parceiros e parte dos recursos, o passo seguinte foi a elaboração de um plano de ação detalhado, definição da logística e negociação de todos os contratos de serviços para viabilizar a experiência. Nesta fase, foram utilizadas as tecnologias móveis e de videoconferência, utilizando os recursos de Internet disponíveis nas cidades - a empresa que forneceu o link e antena estava no Rio de Janeiro (RJ), a antena, em Curitiba (PR), os representantes da empresa GoDoctor em Manaus (AM) e São Paulo (SP) e os integrantes do NAPRA espalhados em cidades do Estado de São Paulo e em Londres, Inglaterra. Também ajudaram, na especificação do sistema, parceiros de Porto Velho (RO) e representantes das comunidades ribeirinhas diretamente do rio Madeira. Não houve nenhuma reunião presencial com envolvidos para a implantação e funcionamento do sistema.

Em campo, na comunidade de Santa Catarina no rio Madeira, os desafios apresentaram uma dinâmica de solução completamente diferente. Depois de definido o local para a instalação dos equipamentos, os primeiros desafios de campo foram o transporte da antena para a comunidade de Santa Catarina no rio Madeira e sua instalação e estabelecimento do link com o satélite da Telespazio. Tarefas consideradas simples na cidade, como a construção de uma base de concreto para uma antena, telefonar para o Rio de Janeiro ou comprar um cabo de Internet demoram dias ou até semanas. Transpostos os obstáculos de instalação e conectividade, com apenas cinco dias de atraso no nosso planejamento, estávamos conectados à Internet no meio da floresta Amazônica, há duzentos fluviais da cidade mais próxima. Depois de alguns testes e ajustes nos softwares, foi realizada a primeira consulta, um momento histórico e de grande emoção para os integrantes do NAPRA, médicos de suporte remoto e, sobretudo, para o primeiro paciente - um ribeirinho que nunca havia sido consultado por um médico.

Com o sistema pronto e testado, efetuou-se o refinamento da logística para avisar as comunidades vizinhas, a definição da grade de atendimentos com os diversos especialistas de São Paulo e Manaus e a operacionalização do planejamento previamente realizado para os atendimentos e aulas.

O pólo de telemedicina de baixa complexidade (PTBC) tornou-se, então, uma realidade e, desde os primeiros momentos, observou-se que é um sistema expansível, podendo acoplar-se a muitos recursos disponíveis na telemedicina, entre outros, telexames, teleprontuários, teledermatologia, telepsiquiatria. O sistema também possibilita a formação de agentes comunitários, líderes da comunidade e demais profissionais de saúde por meio de software e programas de teleducação e educação continuada6.

O custo dos equipamentos para um mês de atendimento ficou em aproximadamente R$ 30.000,00 por ponto; o custo do link satelital pode diminuir consideravelmente com a contratação de diversos pontos ou por um período contínuo.

Resultados

A telemedicina é uma das opções para prestar assistência médica a pacientes que estão geograficamente distantes do médico. Além disso, é uma forma de difundir cuidados na área da Saúde para localidades desprovidas destes serviços ou, ainda, deficitários de determinados tipos de procedimentos. O objetivo é permitir igualdade de acesso aos serviços médicos, independente da localização geográfica do indivíduo.

A telemedicina é um serviço emergente que apresentou contribuições efetivas na prestação de cuidados de saúde, facilitando o acesso a cuidados médicos de melhor qualidade, obtenção de uma segunda opinião médica a custos acessíveis, proporcionando extensão de serviços médicos especializados a locais remotos.

Através de uma estrutura permanente, vislumbra-se a criação de um protocolo de atendimento com horários e dias fixos para cada especialidade, possibilitando que as comunidades próximas marquem consultas por meio de seus agentes comunitários. Um dos resultados diretos desta proposta é a diminuição dos deslocamentos dos pacientes até Porto Velho para serem atendidos, contribuindo para a descentralização e diminuindo a demanda de atendimento nos hospitais públicos da capital.

Outro benefício é a troca de experiências entre universitários e profissionais de diferentes regiões do Brasil, que poderiam utilizar este recurso para aumentar suas atividades acadêmicas, além de ser um incentivo para a maior participação no desenvolvimento do seu próprio estado, buscando alternativas para outros problemas locais.

Os resultados e benefícios diretos podem ser facilmente medidos e apresentados; os indiretos são difíceis de mensurar, pois envolvem a incorporação da tecnologia para os acadêmicos e para a população. Com relação ao SUS, observamos que foram promovidos e experimentados seus princípios doutrinários e organizacionais, foram incluídos os participantes e beneficiados no projeto, levantados os indicadores de saúde e as doenças de notificação compulsória. Como promotores de extensão acadêmica, os integrantes foram expostos a diferentes culturas e à divergência regional das doenças num país composto por diversos cenários, capacitando-os para uso desta nova tecnologia.

Resultados da atuação da telemedicina na comunidade de Santa Catarina no rio Madeira (RO)

Das oitenta consultas realizadas na UBS de Santa Catarina ("Amazônia"), 34 foram teleconsultas e/ou segunda opinião médica. Participaram treze profissionais à distância e cinco profissionais locais, totalizando onze especialidades. A equipe de saúde do NAPRA contou com 44 profissionais oito formados e 36 estudantes de nove universidades diferentes, totalizando dezessete cursos.

Foram realizadas, ainda, cinco aulas a distância para públicos diversos:

. Duas sobre anti-inflamatórios com o Prof. Dr. Marcelo Mascará do ICB 1-USP para integrantes do NAPRA;

. Uma sobre malária com o Dr. Franklin Simões do Centro de Telemedicina de Manaus;

. Duas para estudantes da comunidade sobre higiene básica com o Prof. Dr. Milton Yogi de São Paulo.

Potencial inovador com marcas e diretrizes do participativo do SUS

A utilização de um sistema tecnológico na promoção da saúde em regiões de difícil acesso se mostra promissora. Desenvolver tal sistema implica capacitar e integrar membros das comunidades para que continuem o trabalho, deixando de ser somente público-alvo. Além desta capacitação, a utilização dos recursos de áudio e vídeo possibilita a realização de aulas e palestras para a população, promovendo qualidade de vida, tornando-a protagonista de bons resultados.

Um país de proporções continentais como o Brasil pode usufruir da tecnologia para comunicar-se de um extremo a outro. A atribuição da tecnologia em saúde garante maior abrangência e acesso, em lugares mais distantes, à saúde, educação e prevenção7, fazendo com que sejam cumpridos os direitos da população de ser atendida.

Caráter multiplicador

Esta experiência pode ser replicada para diversas outras comunidades ribeirinhas isoladas no interior da floresta Amazônica e em outros biomas brasileiros, desde que haja um esforço inicial de implantação da antena e dos equipamentos de informática, bem como no aprimoramento dos métodos de treinamento de multiplicadores locais e desenvolvimento de mais parceiros para o atendimento remoto.

Caráter interdisciplinar

A instalação desse sistema para telemedicina abre caminhos para uma série de outras melhorias nas comunidades ribeirinhas, como a ampliação do suporte a educadores locais - formando-os de forma constante e dialogando sobre as dificuldades cotidianas no processo de ensino-aprendizagem (teleducação)-, e a realização de reuniões para negociações de produtos florestais não madeireiros locais, inserindo esses produtos em outros mercados nacionais e internacionais. Além disso, a implantação de um sistema que funciona para a telemedicina pode funcionar também para a comunicação de crimes ambientais e monitoramento de indicadores de preservação da biodiversidade. Finalmente, a implementação desta ferramenta de comunicação, além de melhorar o atendimento à saúde, possibilitar diversas melhorias para as comunidades.

Discussão

No Estado de Rondônia, existe uma grande dificuldade na assistência à saúde nas comunidades situadas em áreas geograficamente distantes. Esta assistência, muitas vezes, é baseada em centros urbanos, cuja demanda por atendimento especializado não justifica o custo da manutenção de profissionais e equipamentos específicos para a atenção médica terciária.

No geral, essas comunidades contam somente com a assistência primária de saúde, oferecida pela rede pública através de unidades dotadas de profissionais generalistas em medicina, odontologia e enfermagem, além de agentes comunitários do PSF.

Com o avanço das tecnologias de informação e telecomunicações, a possibilidade da inserção da telemedicina, como um dos instrumentos de acesso a populações isoladas, está cada vez mais próxima da realidade, possibilitando, além de outros benefícios, a expansão da assistência terciária em saúde. É imprescindível a continuidade do projeto, bem como a ampliação da sua praticidade, beneficiando ainda mais as comunidades ribeirinhas, por meio de novas políticas públicas que facilitem sua implantação e manutenção.

Conclusão

A aplicação da telemedicina na Amazônia encurta a distância geográfica no que se refere ao desenvolvimento sustentado de suas comunidades, melhorando a qualidade do atendimento e a efetividade de sistemas de saúde. Além disso, permite:

. o contato direto e simultâneo com centros avançados em saúde;

. a melhoria da orientação de suporte à vida frente a situações de risco;

. a melhoria da resolubilidade do atendimento primário e secundário;

. o acompanhamento de especialista, uma vez que o atendimento secundário é realizado apenas na zona urbana (Porto Velho-RO);

. a prevenção em saúde, utilizando a teleducação e educação continuada favorecida pelos recursos audiovisuais.

Desse modo, a implantação da telemedicina é uma alternativa para a melhor distribuição dos serviços de saúde, por que leva atendimento a quem necessita, reintegra à sociedade pessoas preteridas pelo isolamento geográfico, auxilia na difusão de informação, proporciona capacitação de moradores e futuros usuários do sistema, promove a prevenção em saúde e desenvolve, com isso, a responsabilidade da população para uma melhora da qualidade de vida da região.

A telemedicina é uma ferramenta necessária para a complementar o sistema de saúde de regiões isoladas, uma vez que amplia a informação e o conhecimento, melhorando a saúde do individuo e da comunidade.

Colaboradores

FSN Machado trabalhou na coordenação, atuação local na Amazônia, pesquisa e redação do texto. MAP Carvalho, ET Mendonça e A Mataresi colaboraram com a pesquisa, atuação local na Amazônia e redação do texto. LC Moraes trabalhou na pesquisa, metodologia e redação do texto. MS Yogi colaborou com o apoio técnico, desenho do sistema, orientação tecnológica e de pesquisa, atividades do sistema à distância (São Paulo). M Salazar idealizou o sistema e coordenou o projeto, participou da atuação local na Amazônia, sendo corresponsável pela logística, contratações e desenvolvimento das parcerias, redação de trechos e revisão final do presente artigo e HM Rigato foi um dos idealizadores do sistema e coordenador do projeto, participando da atuação local na Amazônia, sendo corresponsável pela logística, contratações e desenvolvimento das parcerias. Revisou o presente artigo. Todos os autores participaram ativamente das discussões para o planejamento, operação e resultados desta experiência.

Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradecemos à população da comunidade de Santa Catarina do baixo rio madeira (Porto Velho-RO), que confiou no projeto e nos recebeu com carinho, não poupando esforços para ajudar na implementação do sistema.

A experiência com utilização da telemedicina para o diagnóstico de casos clínicos e de educação em saúde contou com apoio financeiro da Fundação Padre Albino (UNIFPA), da participação de alunos da Faculdade de Medicina de Catanduva (FAMECA) e Faculdade de Enfermagem de Catanduva (FEC), da disponibilização do corpo clínico dos hospitais Emilio Carlos e Hospital Escola Padre Albino. Além disso, contribuíram muito com sua experiência alguns médicos da Universidade Estadual do Amazonas, representantes do Conselho Federal de Medicina, integrantes do Pólo de Telemedicina da Amazônia baseado em Manaus. A empresa ITMS forneceu os equipamentos para a realização de eletrocardiograma de forma remota; a secretaria de saúde de Porto Velho autorizou a utilização dos postos de saúde locais; o IBAMA e Secretaria de Educação de Porto Velho deram apoio logístico. Agradecemos, ainda, a Telespazio, empresa contratada para o estabelecimento do link entre São Paulo, Manaus e a comunidade de Santa Catarina; a empresa GoDoctor, que prestou assistência e consultoria no dimensionamento da tecnologia, instalação e testes de software; além de uma rede de profissionais colaboradores que prestaram suporte remoto. Finalmente, agradecemos aos voluntários, profissionais e apoiadores que tornaram possível a atuação do NAPRA no ano de 2006.

Artigo apresentado em 23/12/2006

Aprovado em 18/06/2007

Versão final apresentada em 19/06/2007

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    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégia e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. [acessado 2006 set 14]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/sgp/visualizar_texto.cfm?idtxt=22736
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  • 4
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Fev 2010
  • Data do Fascículo
    Jan 2010

Histórico

  • Aceito
    18 Jun 2007
  • Recebido
    23 Dez 2006
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