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Aids e juventude: gênero, classe e raça

RESENHAS BOOK REVIEWS

Joilson Santana Marques Jr.

Instituto Fernandes Figueira

Taquette SR, organizadora. Aids e juventude: gênero, classe e raça. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2009. 289 p.

O livro "Aids e juventude: gênero, classe e raça" é organizado por Stella Regina Taquette. Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente, professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), a autora vêm desenvolvendo ao longo de sua trajetória pesquisas na área de adolescência/juventude, gênero, sexualidade e saúde.

A obra tem, como eixo central, a qualificação da vulnerabilidade ao HIV/aids através das discussões das discriminações engendradas por gênero, raça e classe, entrecortada pela experiência da adolescência.

A primeira parte do livro é dedicada à apresentação dos resultados da pesquisa "Estudo das representações sociais de saúde e doença de adolescentes femininas afrodescendentes sobre DST/aids" e está subdividida em artigos que narram o processo de desenvolvimento da pesquisa e seus resultados através de suas categorias de análise central, que são gênero, raça, classe e juventude.

Destaca-se nesse momento os resultados diretos e indiretos da pesquisa, tais como a elaboração de um perfil das adolescentes afrodescendentes residentes em comunidades no Rio de Janeiro, baseado em inquérito quantitativo, e a adoção do recorte de gênero e racial na rotina da equipe.

A observação participante e a realização de grupos focais resultaram em um aprofundamento das inquietações teóricas que puderam demonstrar como operam as categorias gênero, raça, juventude e classe nas experiências, nas relações sociais e na vivência cotidiana das jovens pesquisadas.

Ao longo desta seção, é possível sentir falta de uma problematização maior acerca de elementos de resistência aos modelos hegemônicos estruturantes das relações de gênero, classe e raça, que, mesmo não configurando um discurso referencial, está presente. Até porque, para além dessas relações hierarquizadas, os pertencimentos de gênero e raça constroem identidades, que podem buscar novos caminhos para enfrentar as opressões.

É importante ressaltar que o desenho do estudo procurou contemplar as metodologias qualitativa e quantitativa, e conduziu tal feito de forma que as duas faces se complementam e expressam a complexidade do objeto de estudo.

A segunda parte, intitulada "Debates e comentários", é dedicada aos artigos de autores convidados a discutir os dados apresentados pela pesquisa e têm como um de seus destaques a visão interdisciplinar propiciada por um elenco de autores pertencentes a diferentes áreas do conhecimento.

Outro ponto a ser levantado é que esta seção tem autores acadêmicos, mas também podem ser chamados de militantes acadêmicos, que em sua trajetória conjugam ativismo e pesquisa acadêmica, o que demonstra um compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e livre de opressões.

Nesse ponto do livro, temos uma problematização irrigada por diálogos com saberes multifacetados, que nos levam por caminhos diferentes a pensar a interseccionalidade das categorias gênero, raça, classe e juventude e a constante interrelação entre racismo, machismo e sexismo, criando barreiras ao acesso a direitos, especialmente ao direito a saúde, contribuindo de forma essencial na fragilização das jovens à infecção pelo HIV e demais DSTs.

O texto "O impacto da pobreza em mulheres jovens afrodescendentes e o risco de DST/aids", de autoria de Zilah Meirelles e Maria Helena Ruzany, versa sobre como a pobreza diminui o potencial de escolhas e a própria liberdade das escolhas, tornando as jovens afrodescendentes mais vulneráveis à contração do HIV e de outras DSTs. Para isso, as autoras recorrem à discussão de pobreza relativa e pobreza absoluta, o que leva à discussão do acesso ao mínimo para a sobrevivência, como único indicador que determina a pobreza dos sujeitos. Por outro lado, o conceito de pobreza relativa conduz ao debate acerca das desigualdades sociais, que cria estruturas de privação de liberdade, na medida em que há poucas escolhas possíveis para as jovens do estudo.

Em "Paradoxo da moral sexual na adolescência e as DST/aids", Stella Regina Taquette demonstra como a moral sexual é contraditória ao estimular o exercício sexual em idade mais jovem, principalmente para as mulheres e, ao mesmo tempo, continua a valorizar um modelo de feminino baseado na virgindade ou na pouca vivência sexual como ideal para a mulher. Tal perspectiva está presente nas falas das próprias jovens, que demonstram essa contradição. Outro aspecto abordado é a contradição do sexo na adolescência, em que esse não é legitimado aos olhos da sociedade, mas ocorre, o que gera desorientação e dificuldade em tratar o tema junto aos adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não conseguiu avançar nessa discussão, pois não consegue colocar os adolescentes como sujeitos de sua sexualidade.

Em "Admirável mundo líquido – reflexões psicanalíticas sobre sexualidade, adolescência e contemporaneidade", Marília Mello de Vilhena discute a escravidão em um breve resgate histórico para nos levar a seu formato contemporâneo e as delineações de gênero que a fundamentam. No contínuo do artigo, a autora aborda o individualismo e a exposição ao risco como características que tornam os sujeitos mais vulneráveis, a partir de uma imposição da sociedade atual.

No texto "Violências na vida de adolescentes negras", Simone Gonçalves de Assis vai buscar através do conceito de violência social a discussão sobre como as diferentes formas de violência estrutural, cultural, intrafamiliar, institucional e criminal se interseccionam e mostram seus contornos específicos quando olhadas através da lente do pertencimento de gênero, raça/etnia e classe. E sobre como essas incidem sobre a vida das jovens da pesquisa. A partir desse pressuposto, forma-se uma visão enriquecedora, ao enfatizar a amplitude e a integralidade das formas de violência a que estão submetidas essas jovens.

No artigo "Uma abordagem sociológica da adolescência", Maria Luiza Heilborn inicia sua discussão colocando como seu referencial a adolescência, esta como processo social de passagem à vida adulta. Esse processo é desenhado pelas experiências de gênero, raça/etnia e classe. Para tanto, a autora aciona o conceito de "trajetória biográfica", que comporta tais análises. Ao abordar as interações afetivas sexuais dos jovens, a autora prossegue explicando como os novos padrões de relações apresentam algumas rupturas com os papeis de gênero e sexualidade, mas persistem em uma orientação muito tradicional com uma dicotomia e hierarquização do feminino e masculino, que coloca as mulheres em situação de vulnerabilidade.

No texto "Os direitos humanos das meninas adolescentes", Leila Linhares Barested aborda, através dos direitos sexuais e reprodutivos, a dificuldade de se efetivar esses direitos para as jovens afrodescendentes, enfocando que, embora o Brasil detenha um estatuto que garante os direitos dos adolescentes, e que seja signatário de tratados que referenciam a importância da efetivação dos direitos sexuais, especialmente de mulheres, a implementação desses direitos não ocorre no cotidiano das políticas públicas.

No artigo "Sermerssuaqs cariocas? Convenções de gênero entre adolescentes negras do Rio de Janeiro", Aline Boneti, a partir de um conto inuiti (esquimó), nos chama atenção para a ambiguidade do gênero, procurando ultrapassar o par de oposição binário formado pela dominação masculina x submissão feminina. No transcorrer do texto, a autora privilegia uma epistemologia baseada no gênero como um dos princípios estruturantes da vida social, que pode contribuir na compreensão da distribuição de poder na sociedade. Ao interpretar os dados da pesquisa, a autora chama atenção que, embora as relações sejam pautadas nas convenções de gênero hegemônicas, não são únicas e há momentos de relativização do par dominação/submissão. Outro aspecto levantado é o fato de que, para além de relações sexuais ocorrerem por imposições externas de namorados ou amigos, existe desejo, vontade e prazer. Esse ponto leva-nos a pensar no prazer e no uso cotidiano da camisinha.

Em "Estigma, discriminação e contextos de vulnerabilidade: gênero, racismo, pobreza e a infecção pelo HIV/aids", Kátia Guimarães parte da discussão do estigma e da discriminação como barreiras ao enfrentamento da epidemia do HIV/aids. O que chama atenção é a dificuldade de se obter resultados na prevenção, o que está diretamente relacionado à dificuldade de incorporar a relação sujeito x estrutura social, levando a um privilégio da ideia de indivíduo e de mudança de comportamento, ambos fragmentados, pois dissocia os sujeitos de seu contexto social e dos seus níveis de pertencimento. No desdobramento desse processo, não são consideradas as desigualdades produzidas a partir da estigmatização de alguns marcadores sociais, acarretando uma estrutura de poder altamente hierarquizada, que coloca os sujeitos em situação de vulnerabilidade, nesse caso específico, frente ao HIV/aids. As jovens da pesquisa se encontram em processos de estigmatização formados pela interlocução de gênero, raça e classe. Ao finalizar, a autora sugere a interseccionalidade das políticas públicas como forma de combater os processos de estigmatização.

No texto "Mulheres jovens negras e vulnerabilidade ao HIV/aids: o lugar do racismo", Fernanda Lopes e Jurema Werneck constroem uma reflexão em que o racismo é o ponto central da análise, embora atravessado pelo gênero e classe. Nesse texto, se encontra um pressuposto fundamental para a compreensão da interseccionalidade, que significa olhar as complexidades que formam as teias identitárias, sem fracioná-las. Assim, a autora situa que, embora haja uma boa resposta pública no Brasil à expansão da doença, aponta-se para os diversos sentidos em que essa ocorre e a dificuldade de implementar ações direcionadas para os novos caminhos da epidemia, quais sejam, feminização, pauperização, interiorização e, mais recentemente, é apontado o enegrecimento da epidemia. Ao refletir sobre esses aspectos, questiona-se em que medida a produção acadêmica tem se dedicado a essas facetas. O racismo, por sua vez, atua como vulnerabilizador em diversas esferas produzindo exclusões.

No artigo "Da pesquisa à intervenção pública: lições para o planejamento de políticas de combate as DST/aids entre jovens negras", de Luana Pinheiro, o enfoque recai na necessidade de se estabelecer políticas que priorizem a transversalidade, que a priori deveria estar presente na formulação das ações. Ao abordar as principais lições aprendidas, vêm à tona as falas das jovens como indicadores para a pauta da promoção de saúde sexual. Outra faceta diz respeito ao racismo na saúde, que ocorre em duas dimensões: direta, representada pela discriminação no atendimento as jovens, e indireta, pela hierarquia racial que opera nas instituições. Esses elementos são os que podem orientar o planejamento e execução das políticas públicas.

O conjunto de artigos aqui apresentados simboliza o desafio de buscar uma proposta que considere quatro conceitos: interseccionalidade, interdisciplinaridade, intersetorialidade e integralidade. A utilização desses conceitos revela uma postura de compreensão dos processos sociais de modo interrelacionado, esforçando-se por subverter a lógica fragmentada e individualista não só da produção de conhecimento, como do planejamento e execução das políticas públicas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Jul 2010
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