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Condicionantes estruturais da regionalização na saúde: tipologia dos Colegiados de Gestão Regional

Structural conditions for regionalization in health care: typology of Regional Management Boards

Resumos

O atraso na implementação da estratégia da regionalização e a fragilidade de iniciativas combinadas de descentralização e regionalização no Brasil requerem explicação. O artigo levanta algumas hipóteses para elucidar essa intricada questão e analisa os condicionantes estruturais do processo de regionalização em curso nos estados. Para isso, elabora uma tipologia nacional das regiões de saúde que as diferenciam segundo graus de desenvolvimento econômico, social e características da rede de saúde, dos municípios que compõem os Colegiados de Gestão Regional (CGR) formalmente implantados até janeiro de 2010. Para a construção da tipologia, adotaram-se os modelos de análise fatorial e de análise de agrupamentos (cluster analysis). Foram identificados cinco grandes grupos socioeconômicos de CGR, descritos de acordo com sua distribuição regional, população, despesa em saúde, perfil da oferta (incluindo mix público e privado) e cobertura de serviços de saúde. Os resultados encontrados servem como norteadores da constituição de redes de atenção à saúde e de novas iniciativas no campo regional, de forma a aprimorar a política de regionalização e favorecer a construção de instrumentos de regulação diversificados, flexíveis e, sobretudo, mais ajustados às realidades regionais.

Regionalização; Colegiados de Gestão Regional; Política de saúde; Sistema Único de Saúde


An explanation is required for the delay in implementing the regionalization strategy and the fragile nature of the combined decentralization and regionalization initiatives in Brazil. The article raises some hypotheses to clarify this intricate issue and reviews the structural conditioning factors of the regionalization process ongoing in the states. A national typology of the health care regions is prepared, differentiating them according to the degree of socio-economic development and the characteristics of the health care network and of the municipalities that form the Regional Management Boards (CGR), formally implanted by January 2010. Factorial and cluster analysis models were used to build the typology. Five major socio-economic groups of CGRs were identified, described according to their regional distribution, population, health care spending, profile of services offered (including the public-private sector mix) and health service coverage. The results obtained serve as guidelines for the constitution of health care networks and new initiatives at the regional level, in order to improve the regionalization policy and favour the construction of diverse and flexible regulatory instruments that are more in tune with the regional state of affairs.

Regionalization; Regional Management Boards; Health policy; Unified Health System


ARTIGO ARTICLE

Condicionantes estruturais da regionalização na saúde: tipologia dos Colegiados de Gestão Regional

Structural conditions for regionalization in health care: typology of Regional Management Boards

Ana Luiza d'Ávila VianaI; Luciana Dias de LimaII; Maria Paula FerreiraIII

IDepartamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 455, Cerqueira César. 01246-903 São Paulo SP. anaviana@usp.br

IIDepartamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz

IIIFundação Sistema Estadual de Análise de Dados, Secretaria de Economia e Planejamento, Governo do Estado de São Paulo

RESUMO

O atraso na implementação da estratégia da regionalização e a fragilidade de iniciativas combinadas de descentralização e regionalização no Brasil requerem explicação. O artigo levanta algumas hipóteses para elucidar essa intricada questão e analisa os condicionantes estruturais do processo de regionalização em curso nos estados. Para isso, elabora uma tipologia nacional das regiões de saúde que as diferenciam segundo graus de desenvolvimento econômico, social e características da rede de saúde, dos municípios que compõem os Colegiados de Gestão Regional (CGR) formalmente implantados até janeiro de 2010. Para a construção da tipologia, adotaram-se os modelos de análise fatorial e de análise de agrupamentos (cluster analysis). Foram identificados cinco grandes grupos socioeconômicos de CGR, descritos de acordo com sua distribuição regional, população, despesa em saúde, perfil da oferta (incluindo mix público e privado) e cobertura de serviços de saúde. Os resultados encontrados servem como norteadores da constituição de redes de atenção à saúde e de novas iniciativas no campo regional, de forma a aprimorar a política de regionalização e favorecer a construção de instrumentos de regulação diversificados, flexíveis e, sobretudo, mais ajustados às realidades regionais.

Palavras-chave: Regionalização, Colegiados de Gestão Regional, Política de saúde, Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

An explanation is required for the delay in implementing the regionalization strategy and the fragile nature of the combined decentralization and regionalization initiatives in Brazil. The article raises some hypotheses to clarify this intricate issue and reviews the structural conditioning factors of the regionalization process ongoing in the states. A national typology of the health care regions is prepared, differentiating them according to the degree of socio-economic development and the characteristics of the health care network and of the municipalities that form the Regional Management Boards (CGR), formally implanted by January 2010. Factorial and cluster analysis models were used to build the typology. Five major socio-economic groups of CGRs were identified, described according to their regional distribution, population, health care spending, profile of services offered (including the public-private sector mix) and health service coverage. The results obtained serve as guidelines for the constitution of health care networks and new initiatives at the regional level, in order to improve the regionalization policy and favour the construction of diverse and flexible regulatory instruments that are more in tune with the regional state of affairs.

Key words: Regionalization, Regional Management Boards, Health policy, Unified Health System

Introdução

Na Europa Ocidental e América Latina, a descentralização foi um fenômeno marcante dos processos de reforma dos Estados Nacionais desde o final dos anos setenta do século XX até os dias atuais.

A experiência internacional sugere que, em grande número de países (tais como Inglaterra, Itália, Alemanha e Canadá), a descentralização da política de saúde articulou-se à regionalização por meio da organização de redes de serviços, associadas à criação e fortalecimento de autoridades sanitárias regionais1. Essa agenda foi construída visando alcançar maior grau de eficiência e efetividade dos sistemas de saúde, e maior democratização e transparência dos processos decisórios na saúde.

Entretanto, na América Latina, ambos os processos (descentralização e regionalização) foram implementados com graus variados de articulação, sempre com maior destaque para a descentralização.

Particularmente, no Brasil, a regionalização ganha destaque de modo relativamente recente na política nacional de saúde. Apesar de presente nas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), a regionalização é reforçada somente a partir de 2000, quando da edição da Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS) e, de forma mais incisiva, após a publicação do Pacto pela Saúde em 2006, sendo concebida como uma estratégia para integração dos sistemas municipais (constituição de sistemas regionais), ampliação do acesso e redução da iniquidade em saúde.

Nesse estudo, compreende-se a regionalização como um processo político que envolve mudanças na distribuição de poder e o estabelecimento de um sistema de interrelações entre diferentes atores sociais (governos, agentes, instituições, cidadãos) no espaço geográfico. Inclui, ainda, a criação de novos instrumentos de planejamento, integração, gestão, regulação e financiamento de uma rede de ações e serviços de saúde no território.

Segundo Bifulco2, a complexidade da regionalização se deve à necessidade de conciliação de "fenômenos quase inconciliáveis", tais como a institucionalização de uma rede homogênea de serviços e intervenções frente a uma grande heterogeneidade territorial; a formalização da responsabilidade pública com ampla participação e envolvimento da sociedade civil e dos diversos agentes que compõem o sistema de saúde no território e a regulação centralizada com a manutenção da autonomia dos governos locais.

O artigo tem como objetivo explorar algumas hipóteses sobre o atraso do processo de regionalização frente à descentralização no Brasil e a fragilidade de experiências combinadas no âmbito do SUS. Além disso, procura-se identificar o contexto da regionalização nos anos recentes e as principais mudanças introduzidas pelo Pacto pela Saúde. Em especial, as novas concepções e diretrizes que informam a delimitação e o planejamento do espaço regional, e a criação dos Colegiados de Gestão Regional (CGR) intraestaduais como instâncias de gestão compartilhada das regiões de saúde.

Por fim, busca-se elucidar os condicionantes estruturais do processo recente de regionalização nos estados, por meio da construção de uma tipologia nacional das regiões de saúde com base nos CGR formalmente constituídos até janeiro de 2010. A tipologia aqui apresentada permite a diferenciação dos CGR segundo graus de desenvolvimento econômico, social e características da rede de saúde dos municípios que os compõem.

O atraso da regionalização no SUS: algumas hipóteses explicativas

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica de Saúde de 1990 vinculam a perspectiva territorial à diretriz da descentralização, por meio da regionalização das ações e serviços de saúde3,4. Assim, no plano jurídico-legal, configura-se um projeto político audacioso para organização do sistema público de saúde que deve ser, em um só tempo, nacional e universal, mas também descentralizado, unificado e hierarquizado no território, atendendo à diversidade regional do país5.

No entanto, desde que o SUS foi instituído, a estratégia privilegiada para a implantação do sistema nacional de saúde foi a descentralização, notadamente a responsabilização dos municípios pela provisão dos serviços e organização de sistemas municipais de saúde. A necessária integração de serviços, instituições e práticas, que impõem mudanças de peso no papel, nas funções, nas competências e nos modos de relacionamento entre os três níveis de governo, não foi considerada a contento.

As razões para o privilegiamento da estratégia de descentralização podem ser explicadas pelo próprio momento de constituição do SUS, quando a descentralização de recursos, competências e responsabilidades para as esferas subnacionais de governo foram identificadas no discurso contra o regime militar e o autoritarismo, com a ampliação da democracia e maior eficiência governamental. Sem embargo, outros fatores devem ser considerados na explicação da experiência brasileira, caracterizada pela dissociação entre os processos de descentralização e regionalização.

Em primeiro lugar, a descentralização, reduzida de seu significado precípuo e compreendida exclusivamente como um processo de transferência da gestão dos serviços do SUS para as esferas subnacionais de governo, não foi inserida no contexto de um modelo político de desenvolvimento para o país6. A agenda desenvolvimentista, pelo contrário, saiu do cenário nacional e foi substituída pelo debate da redemocratização do Estado nos anos oitenta e pela busca de estabilização fiscal e monetária nos anos noventa7. A descentralização, portanto, não se configurou num projeto estratégico de intervenção econômica e social com vistas ao desenvolvimento, adequando-se mais aos projetos de enxugamento do Estado brasileiro e de suas funções e de estabilização macroeconômica8.

Nesse contexto, as condições para um projeto de descentralização virtuoso, que atendesse às finalidades da política nacional de saúde - de garantia do acesso universal às ações e serviços de saúde e da atenção integral compatível com as necessidades e demandas diferenciadas da população - e reduzisse a iniquidade em saúde em diferentes planos não foram asseguradas. Em consequência, os resultados da descentralização brasileira na saúde são contraditórios e altamente dependentes das condições prévias locais. Observa-se que as características dos sistemas descentralizados de saúde são bastante heterogêneas no território nacional: diferentes capacidades financeiras, administrativas e operacionais para a prestação da atenção à saúde e às distintas disposições políticas de governadores e prefeitos9.

Em segundo lugar, o território não se apresentou como objeto principal de análise e planejamento para as diferentes áreas de governo ao longo desse período, restringindo-se às políticas de desenvolvimento macrorregional. Na saúde e, em especial, no processo de descentralização, a dimensão territorial também não tem sido incorporada à formulação de políticas, embora iniciativas esporádicas tenham se dirigido para regiões mais carentes. Há, portanto, uma fragilidade da lógica territorial na formulação de políticas públicas10. A falta de um planejamento regional das estratégias de descentralização da política de saúde comprometeu sua adequação às múltiplas realidades que se apresentam no território brasileiro pela ausência de uma diversificação de políticas e investimentos que melhor relacionassem as necessidades de saúde e as dinâmicas territoriais visando à redução da iniquidade.

Em terceiro lugar, a descentralização acoplouse ao desenho federativo consolidado pelas regras constitucionais brasileiras, privilegiando os municípios sem a face do planejamento regional e desconsiderando o papel das esferas estaduais de governo. Seguindo o movimento mais geral de municipalização - de encargos e recursos - o SUS acentua o papel dos municípios pela provisão de serviços em seus territórios político-administrativos.

Em que pesem os resultados positivos do processo de municipalização - a ampliação do acesso à saúde, a incorporação de práticas inovadoras no campo da gestão e da assistência à saúde e a incorporação de novos atores que dão sustentabilidade política e financeira ao setor - permaneciam, no final dos anos noventa, problemas relativos à iniquidade na oferta e no acesso, à intensa fragmentação e à desorganização de serviços de saúde devido à existência de milhares de sistemas locais isolados11-13.

Assim, o balanço que se faz do processo de descentralização no SUS é de que o mesmo foi importante para a expansão de cobertura dos serviços de saúde e induziu os estados e municípios a aumentarem seu peso no financiamento público em saúde. Porém, não foi capaz de resolver as imensas desigualdades presentes no acesso, utilização e gasto público em saúde, além de não ter conduzido à formação de arranjos mais cooperativos na saúde.

Contexto e condicionantes da regionalização nos estados

As propostas de regionalização têm início tardio e após sucessivos ciclos de descentralização14 que ocorreram sob forte indução e regulação federal. De fato, até a edição da NOAS, publicada no ano de 2001, houve uma dificuldade em se traçar estratégias políticas que garantissem a integração das ações e serviços de diferentes níveis de complexidade situados em distintos espaços geográficos e territórios político-administrativos15. Embora essa norma não trouxesse avanços significativos para adequação regional dos processos de descentralização em curso, em função da excessiva normatividade técnica e rigidez embutida na proposta de conformação das microrregiões e regiões de saúde, é inegável que estimulou o planejamento regional no âmbito dos estados.

Assim, foi somente na virada dos anos 2000 que a regionalização, adquirindo um sentido mais organizativo para a rede de serviços de saúde, destaca-se como uma estratégia prioritária no âmbito da política nacional de saúde16. Entretanto, os modos de coordenação e condução política da rede regionalizada do SUS (a governança regional) não são tratados a contento, sendo uma questão de enorme complexidade que se configura diferentemente no território por fatores de ordem histórica, social e político-institucional.

Em muitas regiões, a governança é função da atuação de alguns poucos municípios que possuem papel diferenciado na rede de prestação de serviços. Em outras, as Secretarias de Estado de Saúde (SES) assumem um papel de destaque por meio da implantação e/ou reconfiguração de suas estruturas regionais (coordenadorias, diretorias, escritórios ou núcleos regionais). E, na maioria das situações, arranjos e instrumentos de gestão compartilhada são conformados (comissões intergestores regionais, consórcios de saúde), visando ampliar a coordenação federativa do processo de regionalização.

Entretanto, o grau de formalização e institucionalidade dos espaços de negociação de decisão envolvendo as secretarias municipais e estaduais são ainda incipientes. Em geral, não existem mecanismos e incentivos criados para garantir investimentos, alocação e gestão de recursos financeiros, para permitir a formalização dos acordos e parcerias intergovernamentais e a regulação das relações público-privadas a favor dos interesses da saúde da população no espaço regional.

Lançado em 2006, o Pacto pela Saúde expressa o compromisso entre os gestores para o fortalecimento da gestão compartilhada do SUS com base nos princípios constitucionais e ênfase nas necessidades de saúde17. Com o pacto, novas diretrizes são preconizadas para a regionalização do sistema de saúde, baseadas no fortalecimento da pactuação política entre os entes federados, e na diversidade econômica, cultural e social do país para a redefinição das regiões de saúde ("regionalização viva")18. Assim, ele retoma a regionalização como eixo central, reatualiza os instrumentos de planejamento da NOAS e amplia a visão da regionalização para além da assistência à saúde.

O Plano Diretor de Regionalização (PDR), já previsto na NOAS, adquire caráter mais sistêmico e alcance intersetorial ao permitir diferentes combinações de variáveis (de saúde, econômicas, sociais e culturais) para o estabelecimento das regiões de saúde em cada estado da federação.

Os Colegiados de Gestão Regional (CGR), elemento novo criado pelo pacto, configuram-se como instâncias de cogestão dos espaços regionais definidos no PDR19. Formados por representação do estado (do nível central ou das estruturas de representação regional das Secretarias de Estado de Saúde) e do conjunto de municípios das regiões, podem ser considerados uma inovação da política de saúde ao criar um canal permanente de negociação e decisão intergovernamental, com regras definidas e funcionamento estável, o que possibilitará preencher aquilo que chamamos de "vazio" de governança regional.

Os CGR permitem a identificação de problemas, a definição de prioridades e de soluções para organização da rede assistencial, bem como a formalização de novos modelos de relacionamento entre provedores públicos e privados. Dessa forma, podem ser um instrumento poderoso para a constituição de objetivos compartilhados e do estabelecimento de uma lógica voltada para o bem-estar da população e as necessidades de saúde na provisão dos serviços.

A constituição dos CGR nos estados brasileiros tem sido gradual, com processos mais acelerados em algumas regiões do país e extrema lentidão em outras, como é o caso da região Norte do país.

Esse processo reflete condições diferenciadas entre os estados brasileiros, alguns conformados ainda no período colonial com processos muito antigos de regionalização como é o caso de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul e outros mais recentemente, como são os casos do Estado do Rio de Janeiro (estado que se constituiu por meio da fusão entre o extinto Distrito Federal e o antigo Estado do Rio de Janeiro), do Tocantins e dos antigos territórios brasileiros transformados em estados (casos do Amapá, Roraima e Rondônia), cuja identidade estadual ou regional é muito incipiente.

As dificuldades de constituição de espaços regionais nos estados também decorrem do fato de que, muitas vezes, as linhas de integração dos serviços de saúde obedecem a lógicas territoriais que extrapolam suas fronteiras (presença de municípios que fazem limite e se relacionam com outros estados). Há também forte ingerência do poder político eleitoral (os chamado bolsões eleitorais de determinados políticos) em determinadas regiões, e pesadas heranças centralizadoras em alguns estados da federação.

Outras razões vinculam-se à concentração/centralização de recursos e tecnologias em algumas regiões (por exemplo, regiões metropolitanas ou sede de capitais estaduais em sua maioria situadas no litoral), o que chamamos de fatores estruturais que se ligam ao perfil socioeconômico de uma determinada região, dado pela atividade econômica preponderante e seu grau de desenvolvimento, os indicadores sociais e a capacidade instalada da rede de serviços de saúde e seu grau de complexidade. Além disso, o mix público-privado na oferta de serviços também pode ser um elemento facilitador ou dificultador da montagem de redes integradas e regionalizadas.

O exercício feito a seguir, de abrangência nacional, pretende justamente evidenciar esse condicionante de natureza estrutural e que pode explicar, em parte, as razões do atraso da estratégia de regionalização no caso brasileiro.

Metodologia

Para a construção da tipologia das regiões de saúde com base nos CGR, foram utilizados os modelos de análise fatorial e de análise de agrupamentos (cluster analysis). O primeiro consiste em uma técnica estatística de análise multivariada que se aplica à identificação de fatores para a agregação de um conjunto de medidas. Uma vez identificados os fatores, cabe ao pesquisador verificar se estes são coerentes e consistentes em relação à natureza dos fenômenos ou processos estudados. Esta técnica é frequentemente utilizada na resolução de problemas envolvendo um grande número de variáveis, em que se deseja a redução deste número com a finalidade de facilitar o entendimento analítico dos dados. É também muito utilizada para fins de análise regional, em que se procura observar os padrões de semelhança ou diferença entre áreas sendo comparadas (por exemplo, municípios ou agregados municipais).

Já a análise de agrupamentos identifica perfis semelhantes em um conjunto de observações (no caso desta pesquisa, os CGR) segundo um conjunto de variáveis selecionadas. Para a caracterização dos CGR, foi construído um modelo de agrupamento no qual se levou em consideração as condições socioeconômicas, a complexidade do sistema de saúde (oferta e densidade tecnológica dos serviços prestados) e as condições de saúde dos municípios que os compõem.

As variáveis utilizadas foram os escores gerados na análise fatorial. A Tabela 1 contém os indicadores selecionados para a conformação dos fatores. As informações foram obtidas nos sítios da Internet - DATASUS (http://www.datasus.gov.br), Fundação IBGE (http://www.ibge.gov.br) e IPEA (http://www.ipea.gov.br) - para os 5.071 municípios brasileiros que conformam os 397 CGR formalmente constituídos até janeiro de 2010 e que representam cerca de 173 milhões de habitantes. Não foram incluídos os municípios dos estados do Acre, Amazonas, Roraima, Maranhão e parte do Piauí, para os quais não haviam sido estabelecidos os CGR.

Para a dimensão socioeconômica, a análise fatorial produziu quatro fatores, ou seja, as catorze variáveis originais foram reduzidas a quatro, com uma explicação de 91% da variabilidade total; para a dimensão condições de saúde, o modelo resultou em quatro fatores, que explicam 72% da variabilidade total, e para a dimensão complexidade do sistema de saúde, foram gerados dois fatores, que respondem por 77,6% da variabilidade total.

Na análise de agrupamentos, porém, foram utilizados somente três fatores que se mostraram mais importantes para explicação do modelo. Estes fatores podem ser descritos como:

. Fator 1- desenvolvimento econômico: relacionado ao grau de desenvolvimento econômico dos municípios pertencentes aos CGR. Os CGR que atingem os maiores valores nesse indicador caracterizam-se por agruparem os municípios mais urbanizados, populosos, industrializados e dinâmicos economicamente;

. Fator 2 - desenvolvimento humano: relacionado aos componentes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M). Os CGR que atingem os maiores valores nesse indicador caracterizam-se por agruparem os municípios que apresentam maiores níveis de renda, escolaridade e longevidade;

. Fator 3 - complexidade do sistema de saúde: relacionado à complexidade dos serviços ofertados no CGR; maiores valores nesse fator indicam maior complexidade do sistema de saúde.

Posteriormente, procurou-se descrever cada agrupamento gerado segundo suas principais características, incluindo distribuição geográfica, população, despesa em saúde, perfil da oferta e cobertura de serviços de saúde. De acordo com o mix público-privado dos prestadores do SUS, foi possível identificar os CGR cuja oferta é predominantemente pública, privada ou de tipo intermediário (híbrido público e privado, sem padrão preponderante).

Resultados e discussão

Os agrupamentos resultantes do modelo de cluster analysis aplicado nos escores fatoriais produzidos classificaram os 397 CGR em cinco grupos socioeconômicos (Quadro 1), que podem ser descritos como:


. Grupo 1: engloba 183 CGR e cerca de 24% da população brasileira estudada, com seus componentes localizando-se basicamente nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte (84%). Apresenta menor desenvolvimento econômico e humano e sistema de saúde com baixa complexidade, quando comparado com os demais grupos;

. Grupo 2: engloba 78 CGR e 11,6% da população brasileira, com seus componentes localizando-se nas regiões Sudeste e Sul (95%). Caracteriza-se por apresentar baixo desenvolvimento econômico, mas alto desenvolvimento humano. O sistema de saúde se situa entre os de maior complexidade no conjunto dos CGR, da mesma forma a capacidade instalada;

. Grupo 3: engloba 62 CGR e cerca de 11% da população, com seus componentes localizandose nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste (94%). Caracteriza-se por apresentar um perfil socioeconômico similar ao Grupo 2, porém com um sistema de saúde menos complexo;

. Grupo 4: engloba 27 CGR e 36,6% da população, com cerca de 73% seus componentes localizando-se nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Esses CGR agregam os municípios mais desenvolvidos economicamente do Brasil e sistemas de saúde complexos;

. Grupo 5: engloba 47 CGR e 17% da população, com 100% localizados nas regiões Sudeste e Sul. Caracteriza-se por apresentar alto desenvolvimento humano, médio desenvolvimento econômico e sistemas de saúde complexos.

A distribuição espacial e as principais características dos cinco grupos socioeconômicos podem ser visualizadas no Mapa 1 e Tabela 2 apresentados a seguir.


A tipologia de CGR nos permite visualizar dois Brasis: um primeiro conformado por uma situação socioeconômica menos desenvolvida e um sistema de saúde menos complexo; o segundo, ao contrário, com situação socioeconômica mais desenvolvida e um sistema de saúde mais complexo. Essa divisão é geográfica, separando as regiões brasileiras no sentido Norte-Sul. Habitam o primeiro Brasil 24% da população brasileira e, o segundo, 54%. Dentro do segundo Brasil, há bolsões de baixo dinamismo econômico, porém com indicadores sociais altos e médios e sistemas de saúde mais e menos complexos.

Do ponto de vista da prestação, tanto numa como noutra situação, observam-se presença expressiva de prestadores públicos ou privados e ainda situações sem padrão predominante (padrão intermediário). Mas existem diferenças importantes: a predominância do prestador público se dá no Norte (menos desenvolvido), mas é seguida, em grau de importância, pelo Sul (mais desenvolvido). Isto é, o prestador público se alinha com os extremos (baixo e alto desenvolvimento econômico). Porém, no grupo mais desenvolvido, também aparece uma predominância do tipo intermediário.

Quando examinamos o comportamento de outras variáveis nos agrupamentos de CGR, como era de se esperar, a maior despesa total em saúde por habitante é típica dos grupos mais desenvolvidos, bem como a transferência do SUS. É característica do primeiro Brasil a baixa cobertura de planos e seguros, expressiva cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF), baixa relação médico por mil habitantes, maior percentual de médicos SUS no total de médicos e maior percentual de leitos SUS. No outro Brasil, os planos cobrem pouco mais de 30% da população, da mesma forma que o PSF, há mais médicos por mil habitantes (quatro vezes mais) e presença expressiva de faculdades de medicina.

O que nos sugere a tipologia apresentada: "Belíndia" revisitada?

Nos anos setenta do século passado, o economista Edmar Bacha cunhou a expressão "Belíndia" para designar o fenômeno de dois Brasis: um semelhante à Bélgica (nas regiões Sudeste e Sul) e outro, semelhante à Índia (nas regiões Norte e Nordeste)20. Não temos como não pensar nesse retrato ao fazer esses comentários finais.

Porém, fica apenas como lembrança de uma grande reflexão, pois há fortes indícios de que o que separa um e outro Brasil não é tão significativo, pelo menos no tocante à política de saúde. Isto é, as diferenças no gasto per capita em saúde e no número de leitos por mil habitantes são menores do que no passado, além do primeiro Brasil contar com uma alta cobertura de atenção primária (mais de 70% da população está cadastrada no PSF). Isso indica que políticas redistributivas na área da saúde (como o Piso da Atenção Básica (PAB), o PSF e a própria estratégia da descentralização, por exemplo), diminuíram essas distâncias.

A presença predominante do prestador público também chama atenção nos dois Brasis, indicando que seguiram duas trajetórias complementares: cuidar dos menos favorecidos e garantir hegemonia tecnológica no país desenvolvido. Esses dados nos permitem, e isso é muito bom, não revisitar a "Belíndia", mas apontar para uma nova configuração do sistema de saúde e da política de proteção social em que a divisão Norte/Sul se encurtou.

Permanece a questão regional, porém ela é mais acentuada do ponto de vista econômico e social do que relativo à política de saúde. Como os dados estão referidos para um ano, é de se esperar que o encurtamento da distância, em futuro próximo, seja maior, dado a maior oferta de assistência e a possibilidade que isso se reflita e impacte nos indicadores sociais e de saúde.

Os resultados encontrados nesta pesquisa podem auxiliar na constituição de redes de atenção à saúde e formulação de novas iniciativas no campo regional. Espera-se que o aprimoramento da estratégia de regionalização e a construção de instrumentos de regulação diversificados, flexíveis e, sobretudo, mais ajustados às realidades regionais possam contribuir para reduzir ainda mais as desigualdades territoriais no país.

Colaboradores

ALD Viana, LD Lima e MP Ferreira foram responsáveis pela concepção, desenvolvimento, análise dos dados, redação e revisão do artigo.

Agradecimentos

O trabalho se insere em uma pesquisa interinstitucional (USP e ENSP) de abrangência nacional intitulada "Avaliação nacional das Comissões Intergestores Bipartites (CIBs): as CIBs e os modelos de indução da regionalização no SUS". A pesquisa conta com o apoio financeiro da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde e a Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Artigo apresentado em 26/04/2010

Aprovado em 01/06/2010

Versão final apresentada em 14/06/2010

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010

Histórico

  • Revisado
    01 Jun 2010
  • Recebido
    26 Abr 2010
  • Aceito
    14 Jun 2010
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