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Adesão medicamentosa em idosos em seguimento ambulatorial

Medicine adeshion in eldery people in an ambulatorial attendance

Resumos

Este estudo objetivou avaliar a adesão ao tratamento medicamentoso em idosos em seguimento ambulatorial e identificar os fatores relacionados a esta adesão. Foram entrevistados 165 idosos em seguimento ambulatorial no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo. Utilizou-se instrumento próprio, com informações relativas à identificação dos sujeitos, dados de saúde autorreferidos e relativos à terapêutica medicamentosa. Os dados foram submetidos às análises descritiva e de comparação. A maioria dos idosos revelou adesão ao tratamento (88,5%), dentre os quais 91,1% moravam acompanhados. Os idosos que moravam sozinhos apresentaram três vezes mais chances de não aderência ao tratamento (OR: 3,655). Os efeitos colaterais dos medicamentos mostraram sete vezes mais chances de não aderência (OR: 7,092). Os fatores combinados que apresentaram maior chance de predizer a não adesão à terapêutica foram "mora sozinho" (OR: 4,346) e "efeitos colaterais" (OR: 8,219).

Uso de medicamentos; Saúde do Idoso; Idoso


The objectives of this study were to evaluate the elderly drug adhesion in an outpatient geriatric service linked to the State University Hospital of Campinas (São Paulo, Brazil) as well as to identify the related events to this adhesion. One hundred sixty five elders were submitted to an interview. It was used an instrument to collect information about the patients' identification, besides the self-reported state of health and drug utilization. The data were evaluated through the descriptive and comparative analysis. They showed that most of the elderly (88.5%) have confirmed the drug adhesion and among them 91.1% were living with company. The elderly who were living alone presented three-time more chance of non-adhesion to the drug therapy (OR: 3.655). Those that have referred drug side effects presented seven-time more chance of non-adhesion (OR: 7.092). The associated events which better predict the drug non-adhesion were: "living alone" (OR: 4.346) and "side effects" (OR: 8.219).

Drug use; Health of the elderly; Elderly


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Adesão medicamentosa em idosos em seguimento ambulatorial

Medicine adeshion in eldery people in an ambulatorial attendance

Fernanda Aparecida CintraI; Maria Elena GuarientoII; Lilian Akemi MiyasakiI

IDepartamento de Enfermagem, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Alexander Fleming 40, distrito de Barão Geraldo. 13083-970 Campinas SP. fernanda@fcm.unicamp.br

IIDepartamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas

RESUMO

Este estudo objetivou avaliar a adesão ao tratamento medicamentoso em idosos em seguimento ambulatorial e identificar os fatores relacionados a esta adesão. Foram entrevistados 165 idosos em seguimento ambulatorial no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo. Utilizou-se instrumento próprio, com informações relativas à identificação dos sujeitos, dados de saúde autorreferidos e relativos à terapêutica medicamentosa. Os dados foram submetidos às análises descritiva e de comparação. A maioria dos idosos revelou adesão ao tratamento (88,5%), dentre os quais 91,1% moravam acompanhados. Os idosos que moravam sozinhos apresentaram três vezes mais chances de não aderência ao tratamento (OR: 3,655). Os efeitos colaterais dos medicamentos mostraram sete vezes mais chances de não aderência (OR: 7,092). Os fatores combinados que apresentaram maior chance de predizer a não adesão à terapêutica foram "mora sozinho" (OR: 4,346) e "efeitos colaterais" (OR: 8,219).

Palavras-chave: Uso de medicamentos, Saúde do Idoso, Idoso

ABSTRACT

The objectives of this study were to evaluate the elderly drug adhesion in an outpatient geriatric service linked to the State University Hospital of Campinas (São Paulo, Brazil) as well as to identify the related events to this adhesion. One hundred sixty five elders were submitted to an interview. It was used an instrument to collect information about the patients' identification, besides the self-reported state of health and drug utilization. The data were evaluated through the descriptive and comparative analysis. They showed that most of the elderly (88.5%) have confirmed the drug adhesion and among them 91.1% were living with company. The elderly who were living alone presented three-time more chance of non-adhesion to the drug therapy (OR: 3.655). Those that have referred drug side effects presented seven-time more chance of non-adhesion (OR: 7.092). The associated events which better predict the drug non-adhesion were: "living alone" (OR: 4.346) and "side effects" (OR: 8.219).

Key words: Drug use, Health of the elderly, Elderly

Introdução

A população idosa compreende aproximadamente 17.800.000 brasileiros, o que representa 9,5% da população geral, estimada em 187 milhões de habitantes no último Censo de 2007, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística1. Este percentual revela o envelhecimento do país, decorrente do incremento da população idosa, e impõe desafios nas áreas da ciência, tecnologia e educação com vistas a possibilitar ao ser humano o alcance dos limites da longevidade de forma independente2.

A velocidade com que o processo de transição demográfica vem ocorrendo no país remete a dificuldades para o Estado lidar com esse novo perfil epidemiológico. Nesse processo observa-se a substituição, entre as primeiras causas de morte, de doenças transmissíveis por doenças não transmissíveis e por causas externas, além do deslocamento da maior carga de morbimortalidade dos segmentos mais jovens para os mais envelhecidos. Modifica-se, assim, o perfil de morbimortalidade da população, com predomínio de doenças que exigem tratamento de longa duração, e que frequentemente são acompanhadas de complicações secundárias3.

A doença crônica, via de regra, requer mudanças no estilo de vida, especialmente entre os idosos, além do acompanhamento da evolução do quadro clínico que, se não controlado adequadamente, tende a agravar o prognóstico. O aumento da prevalência das doenças crônicas não transmissíveis, na idade avançada, coloca os idosos no grupo etário mais medicalizado da sociedade4.

O número elevado de portadores de doenças crônicas que utilizam os serviços de saúde repetidas vezes pode revelar, entre outros fatores, o seguimento inadequado da terapêutica medicamentosa. Na população idosa, esta inadequação da terapêutica, além de aumentar a demanda dos serviços de saúde, favorece a internação hospitalar ou contribui para ampliar a sua duração5,6.

Apesar dos avanços tecnológicos para a redução da polifarmácia na maioria dos setores ligados às áreas de economia e de saúde, o custo gerado pela falta de adesão ao tratamento nos idosos mostra-se ainda elevado2. A esse respeito, grande número das hospitalizações que poderiam ser evitadas tem aumentado simultaneamente ao tempo de hospitalização, encarecendo ainda mais o tratamento.

Na literatura, é comum o uso concomitante dos termos "adesão" e "aderência" para expressar o cumprimento das ações terapêuticas. Apesar de interligados, os vocábulos "adesão" e "aderência" que se relacionam à mesma ação, ou seja, a de aderir, diferenciam-se por indicarem, respectivamente, o ato (adesão) e o efeito (aderência) dessa ação7.

Os problemas decorrentes da não adesão ao tratamento medicamentoso aumentaram nas últimas décadas e têm preocupado os profissionais de saúde, dada a participação de fatores que influenciam o uso racional dos recursos terapêuticos8. Há quase duas décadas, já se chamava a atenção para a complexidade do uso inapropriado dos medicamentos entre os idosos, e destacava-se a importância de os profissionais de saúde orientarem os pacientes sobre o uso correto das drogas9.

Os estudos que abordam essa problemática, particularmente nos idosos, indicam vários fatores relacionados à não adesão ao tratamento, dentre os quais destacam-se: consumo elevado e uso prolongado, efeitos colaterais, desaparecimento dos sintomas, desconhecimento sobre os medicamentos, alto custo das medicações, falta de motivação, analfabetismo e distúrbios de memória5,9-13.

A partir dos dados obtidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, em 1998, junto à população idosa brasileira, verificou-se que metade desta tinha um gasto médio mensal com medicamentos equivalente a 23% da sua renda14. Este percentual, por si só, poderia justificar grande parcela das dificuldades enfrentadas por indivíduos nessa faixa etária para o cumprimento da terapêutica medicamentosa.

Esse panorama levou ao desenvolvimento do presente estudo, que busca responder às seguintes indagações: os idosos em seguimento ambulatorial cumprem a terapêutica medicamentosa? Que fatores dificultam ou incentivam o cumprimento da terapêutica medicamentosa pelos idosos?

Espera-se, assim, obter elementos que facilitem a compreensão dessa problemática junto à população idosa, e fundamentem programas de intervenção e ações para a participação efetiva dos idosos na adesão ao tratamento.

Dessa forma, os objetivos do presente estudo são os seguintes:

- avaliar a adesão ao tratamento medicamentoso em idosos em seguimento ambulatorial;

- identificar os fatores relacionados à adesão ao tratamento medicamentoso em idosos em seguimento ambulatorial.

Método

Realizou-se uma pesquisa do tipo descritiva/exploratória que permite obter informações acerca das características de sujeitos, grupos e instituições, ou ainda obter dados sobre a frequência de um determinado fenômeno15. Ela possibilitou verificar se os idosos cumprem a terapêutica medicamentosa e identificar os fatores relacionados a esse cumprimento.

O estudo foi desenvolvido no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, nos ambulatórios de Cardiologia Geral, Medicina Interna e Oftalmologia. Estas especialidades foram eleitas devido ao número elevado de idosos em seguimento terapêutico.

Participaram do estudo 165 idosos com idade igual ou superior a 60 anos, de ambos os sexos. Esta faixa etária atende ao Estatuto do Idoso16, o qual assegura no artigo 15, capítulo IV, atenção integral à saúde do idoso, por meio de ações de prevenção, promoção e proteção da saúde, além de atenção às doenças que afetam preferencialmente essa classe populacional.

Foram considerados critérios de inclusão: estar em seguimento ambulatorial em uma ou mais especialidades aqui relacionadas; fazer uso contínuo de, pelo menos, um medicamento, por via oral ou tópica, pelo período mínimo de 15 dias4; demonstrar orientação auto e alopsíquica; apresentar capacidade para compreender e responder o instrumento de coleta de dados; e concordar em participar do estudo por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Foram excluídos do estudo os pacientes que apresentaram pelo menos uma das seguintes condições: ter sido submetido a procedimento cirúrgico nos últimos 15 dias anteriores à coleta de dados; utilizar medicamentos pelo período inferior a 15 dias da participação na pesquisa; fazer uso de compostos homeopáticos, fitoterápicos ou chás4.

A exclusão de pacientes no período pós-operatório relacionou-se a uma possível motivação destes para o uso regular dos medicamentos prescritos visando à recuperação do procedimento cirúrgico, considerado aqui um evento distinto da cronicidade das enfermidades manifestas na velhice.

O tamanho da amostra (n=165) foi estabelecido conforme a indicação para análise multivariada17, que determina 15 sujeitos por variável preditora.

Os dados foram coletados por meio de um questionário elaborado a partir do Instrumento de Avaliação da Adesão ao Tratamento da Hipertensão18, no período de janeiro a maio de 2006.

O questionário foi dividido em: Parte I - Identificação: contém dados de identificação dos idosos (nome, sexo, idade, estado civil e registro no hospital) e dados sociodemográficos (escolaridade, com quem mora, participação de cuidador, renda familiar mensal); Parte II - Dados de saúde autorreferidos: aborda informações sobre o diagnóstico médico e condições clínicas associadas; Parte III - Dados relativos à terapêutica medicamentosa: relaciona os medicamentos em uso, forma de administração, adesão ao tratamento, e fatores que dificultam ou incentivam os sujeitos ao tratamento.

Para o registro da adesão ao tratamento foi utilizada a classificação de Moreira e Araújo18:

( ) Adesão extrema (AE): Afirma ter cuidado extremo com o horário e a forma de tomar os medicamentos;

( ) Limítrofe à adesão total (LA): Refere que, às vezes, se esquece de tomar os medicamentos, mas é raro;

( ) Intervalo médio de adesão (IMA): Refere claramente que tem dificuldade em tomar os medicamentos corretamente, devido aos efeitos colaterais;

( ) Limítrofe à não adesão total (LNA): Refere claramente que não toma os medicamentos, apenas quando apresenta sintomas;

( ) Não adesão extrema (NAE): Refere claramente que não toma os medicamentos e menciona isto como sem importância.

As entrevistas foram realizadas individualmente por uma das autoras, em local reservado, durante a permanência dos pacientes nos ambulatórios eleitos para este estudo, nos períodos que antecederam as consultas médicas ou outros procedimentos.

A análise estatística foi realizada com o apoio do Serviço de Estatística da Comissão de Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Os dados foram inseridos no programa SAS System for Windows, versão 9.1.3, para as seguintes análises:

Descritiva: a partir da confecção de tabelas de frequências para as variáveis categóricas, e medidas de posição (média, mediana, mínima e máxima) e de dispersão (desvio-padrão) para as variáveis contínuas.

De comparação: para comparar as variáveis categóricas, utilizou-se o teste Qui-quadrado (χ2) ou, quando necessário, o teste Exato de Fisher. Para comparar as medidas contínuas ou ordenáveis entre dois grupos, foi empregado o teste de Mann-Whitney. A identificação entre os fatores associados à não adesão medicamentosa foi realizada por meio da análise de regressão logística univariada e múltipla. Foi calculada a razão de chances (Odds Ratio, OR) e o intervalo de confiança (IC: 95%). O nível de significância adotado para os testes estatísticos foi 5% (p-valor: 0,05).

Foram garantidos aos sujeitos o sigilo e o anonimato da identidade, do registro no hospital e das informações obtidas por meio da entrevista.

Resultados

Na amostra estudada, a idade variou entre 60 e 93 anos, com média de 71,9 (± 7,8) anos e predomínio do sexo feminino (66,0%). A maioria dos entrevistados era casada (58,8%). O tempo médio de escolaridade foi de 3,0 (± 3,0; mediana: 3,0) anos de estudo. Grande parte dos idosos morava acompanhada (89,1%) e uma parcela significativa (55,2%) referiu não ter cuidador. A renda familiar mensal informada mostrou média de 2,4 (±2,4; mediana: 2,0) salários mínimos (SM), oscilando entre um e vinte SM (Tabela 1).

Os idosos entrevistados estavam em seguimento clínico nos ambulatórios das seguintes especialidades médicas: Medicina Interna (41,8%), Oftalmologia (33,9%) e Cardiologia (24,2%).

Com respeito aos diagnósticos médicos relatados pelos idosos, conforme as especialidades médicas, na Medicina Interna predominaram os distúrbios gastrintestinais, informados por 10,3% dos sujeitos, seguidos por diabetes mellitus relatado por 9,8%. No ambulatório de Oftalmologia, a afecção mais referida foi a catarata, mencionada por 24,2%. Na Cardiologia, houve um equilíbrio entre três dos diagnósticos autorreferidos: pós-operatório tardio de cirurgia cardíaca (6,7%), hipertensão arterial e arritmia cardíaca, com a mesma proporção (6,1%).

Todos os idosos relataram, além da afecção correspondente ao diagnóstico médico da especialidade na qual estavam em seguimento ambulatorial, pelo menos uma comorbidade. A maior proporção (58,2%) referiu apresentar acima de quatro condições clínicas associadas. O número de comorbidades/paciente referido foi de 13 (média: 5,3; ± 2,4).

Dentre as condições clínicas associadas, houve prevalência do déficit visual (87,9%) e da hipertensão arterial sistêmica (80%). As cardiopatias apareceram em 51,5% dos idosos, e a dislipidemia em 42,4%. Outras afecções como diabetes mellitus e artrose foram observadas, na mesma proporção, em 40% dos entrevistados. O déficit auditivo e as vasculopatias foram relatados por 35,1% e 33,9%, respectivamente.

O total de medicamentos em uso contínuo pelos entrevistados variou entre um e 12, com média de 4,5 (± 2,4; mediana: 4,0) medicamentos por idoso. Grande parte dos entrevistados (70,3%) referiu utilizá-los sem auxílio ou supervisão. De forma equilibrada, 16,4% e 13,3% dos idosos informaram que o uso de medicamentos era feito sob supervisão ou administrado por outra pessoa, respectivamente.

Ao serem interrogados sobre as dificuldades para a aquisição dos medicamentos, a referência à falta deles nas Unidades Básicas de Saúde apareceu em 63,6% das respostas, seguida dos gastos com medicamentos (62,4%). Não relataram dificuldades 22,4% dos entrevistados (Tabela 2).

Grande parte da amostra revelou adesão ao tratamento, a qual variou entre "adesão extrema" (53,9%) e "limítrofe à adesão total" (34,6%). Em menores proporções aparecem os idosos que relataram não adesão ao tratamento, com variação entre as classes "limítrofe à não adesão total" e "não adesão extrema" (Tabela 3).

Considerando o baixo número de idosos nas classes relacionadas à não adesão ao tratamento, foram criados os seguintes grupos: "adesão ao tratamento" (inclui "adesão extrema" e "limítrofe à adesão total") e "não adesão ao tratamento" (agrupamento de "limítrofe à não adesão total"; "intervalo médio de adesão" e "não adesão extrema").

Nos agrupamentos "adesão" e "não adesão", a maioria dos idosos concentrou-se na "adesão ao tratamento" (88,5%), enquanto 11,5% deles permaneceram no grupo "não adesão ao tratamento".

Nos dados sociodemográficos identificados neste estudo, somente a variável "arranjo familiar" mostrou associação estatisticamente significativa com a adesão ao tratamento (p: 0,0382). Dentre os que aderiam ao tratamento, 91,1% (133/146) moravam acompanhados (com familiar ou não familiar) e 52,7% (77/146) não tinham cuidador. A variável "cuidador" mostrou apenas uma tendência de significância estatística (p: 0,0842).

Entre as dificuldades relatadas pelos idosos para a aquisição dos medicamentos, a variável "efeitos colaterais" foi a única que apresentou associação estatisticamente significativa com a adesão ao tratamento (p: 0,0056). Dentre os idosos que não aderiam ao tratamento, 26,3% (5/19) relatou efeitos colaterais dos medicamentos que utilizava.

Na análise de regressão logística univariada, houve associação positiva entre a não adesão ao tratamento e as variáveis "mora sozinho" e "efeitos colaterais". Os idosos que moravam sozinhos apresentaram três vezes mais chances de não aderência ao tratamento (OR: 3,655; IC: 1,135 a 11,766). Da mesma forma, aqueles que relataram os efeitos colaterais dos medicamentos mostraram sete vezes mais chance de não aderência ao tratamento (OR: 7,092; IC: 1,987 a 25,315). A variável "número de condições clínicas associadas" apresentou apenas uma tendência de significância estatística na associação com a não adesão ao tratamento (p: 0,0592) (Tabela 4).

Os fatores combinados que apresentaram maior chance de predizer a não adesão ao tratamento foram "mora sozinho" (OR: 4,346; IC: 1,271 a 14,857) e "efeitos colaterais" (OR: 8,219; IC: 2,199 a 30,716) (Tabela 5).

Para ilustrar os dados relativos ao cumprimento da terapêutica medicamentosa, realizou-se uma análise qualitativa dos depoimentos dos idosos com respeito aos fatores que dificultavam ou incentivavam esse cumprimento. Para tanto, foram agrupados os motivos com sentidos e significados comuns que melhor expressavam as dificuldades e motivação manifestas pelos idosos.

Com respeito aos motivos que dificultavam o cumprimento do tratamento, os idosos apontaram os efeitos colaterais dentre os quais destacaram-se: "dor no estômago" e "constipação intestinal". A associação entre os efeitos colaterais e a ausência de companhia de outra pessoa para morar pode ser verificada no depoimento de uma das idosas: Como moro sozinha, não tomo (os medicamentos) por causa dos efeitos ruins. A falta de companhia para morar também apareceu associada à perda da memória: Moro sozinha, não lembro de tomar (os medicamentos).

Outros fatores também chamaram a atenção, como a dificuldade financeira para a compra dos medicamentos, associada ao custo elevado, bem como o número elevado de medicamentos: Sinto muito sono, são muitos remédios para lembrar.

Os idosos também apontaram facilitadores da adesão ao tratamento. Dentre eles, destaca-se o apoio da família como importante coadjuvante: Meu marido não deixa esquecer dos remédios... Ele sabe direitinho os horários. A necessidade do cumprimento da terapêutica, bem como o medo de agravo à saúde e a vontade de viver, apareceram de forma explícita nos depoimentos: ...não pode ficar sem tomar, porque sem tomar piora; ...vontade de viver, de não ficar doente. Faço caminhada todas as manhãs para a osteoporose, para melhorar a saúde.

Discussão

A análise do presente estudo mostra que a maioria dos idosos entrevistados apresentava adesão ao regime terapêutico, sendo que cerca de metade deles afirmou ter cuidado extremo com o horário e a forma de tomar os medicamentos. Esta adesão é coerente com outras investigações na população idosa9,11,13,19 e em adultos não necessariamente idosos12,18. No entanto, num estudo que avalia o grau de cumprimento da prescrição médica em idosos, considerando os motivos e características biossociais, somente 8,4% da amostra cumpriam totalmente o tratamento5.

A literatura acerca do uso de medicamentos na população idosa aponta diversos fatores que influenciam a não adesão ao tratamento medicamentoso. Dentre eles, destacam-se os efeitos colaterais, a falta de informações sobre a terapêutica, o alto custo e o número elevado de medicamentos, além das características socioeconômicas5,9,11,13,19-22.

Na presente investigação, não foi encontrada associação entre o uso incorreto das medicações e as variáveis: idade, sexo, estado civil, escolaridade e renda mensal. Entretanto, observou-se forte associação entre a não adesão e o arranjo familiar "mora sozinho". A participação da família ou do cuidador mostra-se importante para o cumprimento da terapêutica pelos idosos, uma vez que com o avançar da idade eles tendem a se tornar mais dependentes devido aos déficits cognitivo e fisiológico, característicos dessa fase da vida5,9,11,13.

Estudos que analisam a situação do idoso no Brasil indicam a presença de pelo menos uma condição clínica crônica em pessoas com idade igual ou superior a 60 anos2,13,14. De forma semelhante, todos os idosos deste estudo revelaram a presença de pelo menos uma condição clínica associada, além do diagnóstico principal. A maior prevalência foi de déficit visual, seguida da hipertensão arterial sistêmica. A alta proporção da hipertensão arterial sistêmica já era esperada, tendo em vista que esta afecção crônica é comum nas faixas etárias mais elevadas2-5,13,14,19-21. Contudo, chama a atenção o número expressivo de idosos que relataram apresentar queda na acuidade visual, considerando as implicações da baixa visão no cumprimento da terapêutica medicamentosa, o que sugere futuras investigações a esse respeito.

Todos os idosos entrevistados informaram utilizar pelo menos um medicamento, com média de 4,5 medicamentos por sujeito. Este dado aproxima-se aos resultados encontrados na literatura3,4,13,19,21,22. A quantidade diária de medicamentos a ser consumida pode originar erros na sua administração, particularmente entre os idosos. O uso de vários comprimidos ao dia em horários distintos pode ser dificultado pelo esquecimento, trabalho e déficit cognitivo5,20. No presente estudo, a maioria dos entrevistados referiu tomar os medicamentos "por conta própria", sem qualquer forma de auxílio ou supervisão. Isto remete à necessidade de orientação profissional de forma diferenciada aos idosos, especialmente na prescrição das medicações13,23.

A dificuldade para adquirir os medicamentos foi relatada por grande parcela dos entrevistados. A falta de medicamentos nas Unidades Básicas de Saúde foi o principal motivo identificado para esta dificuldade. Isto revela uma possível dependência desses sujeitos em relação à Rede Básica de Saúde, justificada, em parte, pela baixa renda familiar mensal informada (média de 2,4 salários mínimos). Este achado está em consonância com o que foi encontrado por Lima-Costa et al.14 na avaliação de idosos residentes no município de Bambuí (MG).

No Brasil, as condições financeiras precárias da população idosa, associadas aos gastos com medicamentos, vêm sendo destacadas na literatura, tendo em vista as implicações na adesão terapêutica11,13,21,23. O uso em doses inferiores ao que recomenda a prescrição médica por iniciativa própria, por parte dos idosos, é revelado como tentativa de "economizar" a medicação, especialmente no final dos meses. Esta conduta é motivada pelo medo da falta da medicação nas Unidades Básicas de Saúde, bem como pelas condições financeiras precárias para adquiri-la13. Outras estratégias são utilizadas pelos idosos para a baixa renda: uso de crédito, substituição da compra de alimento pelo medicamento, ou até mesmo o não cumprimento do tratamento5,11,20,21. Também são relatados estudos europeus acerca da não adesão aos medicamentos. Na Alemanha e na República Tcheca, por exemplo, os serviços públicos de saúde são eficientes, porém o alto custo das medicações e a menor renda da população idosa são apontados como fatores que influenciam a não aderência19.

Esta investigação mostrou forte associação entre os efeitos colaterais dos medicamentos e a não adesão à terapêutica. Estudos revelam o medo de reações adversas causadas pelas medicações como um dos fatores para o não cumprimento da prescrição médica5,11,13. Esse não cumprimento pode, em alguns casos, estar associado à manifestação de reações indesejáveis, nem sempre compreendidas pelo paciente. Entretanto, chamam a atenção as associações inadequadas e comumente realizadas pelos idosos que acabam por responsabilizar a medicação pelos efeitos indevidamente atribuídos a ela, suspendendo-a desnecessariamente20.

A análise do presente estudo revela que os idosos que moram sozinhos apresentam três vezes mais chance de não aderência ao tratamento. De forma semelhante, aqueles que relataram os efeitos colaterais dos medicamentos mostraram sete vezes mais chance de não aderir ao tratamento. Além disso, os fatores "morar sozinho" e "efeitos colaterais", quando combinados, são os que melhor predizem a não adesão ao tratamento. Estes achados corroboram outras investigações sobre o tema5,9,11,13,19-21 e reiteram a demanda de atenção para essa problemática no cuidado à população idosa.

Conclusão

Apesar das limitações apresentadas pelos idosos, a grande maioria revelou cumprir a terapêutica medicamentosa, possivelmente motivada pelo "medo de agravo à saúde" e pela "vontade de viver".

A condição de morar sem companhia e os efeitos colaterais dos medicamentos, fortes preditores para a não adesão à terapêutica, sinalizam a relevância do apoio de outras pessoas (familiares ou não), que pode ser materializado pela convivência com os idosos. Isso remete à necessidade de atenção individualizada a essa população, com vistas a identificar possíveis fatores para a não adesão ao tratamento, bem como incrementar ações efetivas para facilitar esta adesão.

A educação em saúde aos idosos e familiares, de forma individual ou em grupo, apresenta-se como uma estratégia que possibilita a participação e o envolvimento na terapêutica23.

Colaboradores

FA Cintra e ME Guariento participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo; LA Miyasaki participou do projeto, aplicação do instrumento (entrevistas) e análise dos resultados.

Artigo apresentado em 16/08/2007

Aprovado em 08/02/2008

Versão final apresentada em 08/03/2008

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Nov 2010

Histórico

  • Aceito
    08 Mar 2008
  • Revisado
    08 Fev 2008
  • Recebido
    16 Ago 2007
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