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Campo fértil para Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva

A fertile field for Food and Nutrition in Public Health

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Campo fértil para Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva

A fertile field for Food and Nutrition in Public Health

Eduardo Faerstein

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Departamento de Epidemiologia, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. efaerstein@gmail.com

Neste debate sobre o instigante texto de Bosi e Prado1, meus comentários pretendem contribuir para a continuidade das investigações pretendidas pelas autoras sobre o campo disciplinar Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva no Brasil.

Acredito que as investigações de natureza histórica e epistemológica que abordem o percurso e os contornos (tanto os existentes como os desejáveis) desse campo de conhecimento assumiriam maior concretude e abrangência se incluíssem mais intensamente dois conjuntos de subsídios que descrevo a seguir.

Em primeiro lugar, seria benéfica uma maior explicitação das conexões que se fazem necessárias entre, por um lado, os contornos desejáveis do campo e, por outro, os problemas concretos da saúde populacional associados a aspectos da Alimentação e da Nutrição, que carecem de melhor compreensão e enfrentamento. A explicitação dessas conexões, idealmente, deve estar em sintonia com a complexidade dos problemas a compreender e enfrentar, e com as mutações e tendências neles detectadas. Cabe, igualmente, integrar-se ao debate acadêmico e político a respeito dos problemas identificados, no Brasil e em nível internacional. Em segundo lugar, para que se possa visualizar de modo mais preciso esses percursos e contornos em nosso meio, seria útil considerar um conjunto amplo de evidências empíricas, adiante sugeridas.

Sobre o primeiro conjunto - as conexões necessárias com problemas substantivos -, sirvome aqui de exemplo propício a esse esforço: a crescente prevalência da obesidade, cujas consequências clínicas, assim se especula, ameaçam reverter, em parcela crescente das populações humanas, a tendência ao aumento gradual da duração média da vida, conquistado ao longo de vários séculos.

Esse problema prioritário tem sido intensamente pesquisado. Entretanto, persistem lacunas importantes de conhecimento acerca do papel de vários determinantes proximais e distais em sua rede causal complexa. Por exemplo, há controvérsias sobre a contribuição relativa de mudanças ocorridas, respectivamente, nos padrões de consumo e de gasto energéticos das populações2. Discute-se ainda o efeito obesogênico das diversas fontes de calorias (e.g. gorduras vs. carboidratos)3. Assiste-se também a um debate sobre efeitos especificamente resultantes do processamento dos alimentos4. Não menos importante, há hipóteses mecanísticas promissoras envolvendo a possível influência desempenhada pela composição da microbiota intestinal na captação calórica5, que começaram a ser testadas em anos recentes, a partir dos avanços havidos nas técnicas metagenômicas (essas técnicas dispensam cultivo celular e vêm proporcionando conhecimento crescente sobre as "comunidades microbianas" que povoam nossas superfícies e cavidades corporais - em número dez vezes superior ao de nossas próprias células! - e se hipotetiza que possam desempenhar papéis cruciais em nosso metabolismo e saúde6). Foram desenvolvidas análises inovadoras sobre a estrutura e o funcionamento de redes sociais na "transmissão" da obesidade7. Outras investigações, de cunho macroestrutural, detalharam a origem e a consolidação de processos e cadeias produtivas que vêm transformando a cultura alimentar de massa em escala planetária8. Ganharam também espaço e força as variadas vertentes de food politics/movements, que incluem a crítica de Michael Pollan ao "nutricionismo" - diz ele: "Coma comida. Não muito. Principalmente plantas"9,10.

O exemplo da obesidade poderia ser aplicado, sem maiores dificuldades, a outros problemas da saúde populacional que envolvem a alimentação e a nutrição, como as síndromes carenciais e os transtornos alimentares. Para compreender melhor e atuar de modo mais efetivo em relação a esses problemas, há a necessidade de conhecimento relevante que se origine tanto das ciências biomédicas como das ciências sociais. São especialmente relevantes as inter-relações entre fatores biológicos, comportamentais e macroestruturais nessas redes causais. Pesquisadores, ao formular e testar hipóteses, tendem a se concentrar em determinados segmentos das redes causais, seja nos mais proximais (em geral, com maior peso de fatores biológicos), seja naqueles mais distais (em geral, com maior ênfase em determinantes sociais), em relação aos desfechos de interesse. Inclinações pessoais, oportunidades, formação prévia e fatores institucionais poderão determinar escolhas sobre o foco de pesquisadores e grupos de pesquisa. Será benéfico para todos que se explore maior porosidade e interação entre grupos que adotam ênfases diversas - e dedicar menos tempo e atenção a tarefas de demarcação de territórios.

Comento a seguir a possibilidade de que diagnósticos mais abrangentes possam contribuir para melhor compreender os atuais contornos desse campo de conhecimento. Minha sugestão é que, futuramente, a contribuição que as autoras ora nos apresentam em perspectiva ensaística fosse complementada e enriquecida por evidências empíricas, disponíveis em natureza e fontes diversificadas.

A propósito, uma das autoras (SD Prado) do texto em debate1 já se empenhou nessa direção, ao liderar publicação recente neste mesmo periódico11 em que foram analisados dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq relativos aos grupos que registraram linhas de pesquisa na área da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Nesse artigo, foram identificados, entre outros aspectos, a natureza recente e ainda restrita da produção vinculada à SAN: poucos grupos, em geral ainda com baixo dinamismo e consolidação, excessivamente concentrados na região Sudeste, e com predomínio de agendas especializadas. Entre os debatedores do artigo, Anjos e Burlandy12 ressaltaram limitações potenciais dessa base de dados, tendo em vista a falta de padronização da indexação (os descritores são selecionados pelos próprios pesquisadores).

Neste aspecto particular, sugiro que a utilização de métodos e técnicas bibliométricas, cada vez mais potencializados com o uso da Internet, seriam capazes de gerar dados empíricos úteis para a continuidade das investigações pretendidas, com a exploração de variados subconjuntos: por exemplo, as 49 publicações com títulos contendo palavras relacionadas à Nutrição e Alimentação e mencionadas na lista Qualis/Saúde Coletiva da Capes; os periódicos e anais de congressos mais especificamente voltados para a Saúde Coletiva; e as dissertações e teses de programas de pós-graduação.

Neste debate do texto de Bosi e Prado1, sintome instado a registrar importantes contribuições que vêm sendo fornecidas por epidemiólogos brasileiros para a constituição desse campo (historicamente, as investigações lideradas por Goldberger13,14 sobre a etiologia da pelagra foram pioneiras quanto ao escopo amplo pretendido para o campo da Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva - abrangendo de ensaios clínicos ao estudo da economia agrícola vigente no sul dos EUA, na segunda década do século passado). Isso porque essa contribuição é aparentemente subestimada pelas autoras, que enfatizam (equivocadamente, a meu ver) uma disjuntiva entre "dois polos" na Saúde Coletiva: um voltado para a "esfera conceitual" do "pensar a saúde", com "paradigma social" (equalizado pelas autoras às Ciências Sociais), em embate com outro, "empírico", voltado para a "quantificação", "distante de reflexões teóricas", em busca de "racionalidade neutra", "naturalizante": um "paradigma biológico", enfim, associado pelas autoras à Epidemiologia. Porém, o mencionado "cenário de embates que marca a Epidemiologia" não corresponde à realidade da disciplina há bastante tempo. Fundamentalmente, isso não constitui força motriz digna de nota, em razão da marcha de acontecimentos de todo tipo, e do amadurecimento teórico e metodológico de numerosos grupos de pesquisa e programas de pós-graduação em Epidemiologia, no Brasil e em muitos outros países. Em suma, consideramos as imagens que as autoras nos apresentaram sobre a Epidemiologia brasileira como datadas, desfocadas e captadas de ângulo restrito.

Segue meia dúzia de exemplos, selecionados apenas para ilustrar o argumento anterior. Monteiro et al.15 analisaram as mudanças no padrão de desigualdades sociais no estado nutricional de crianças brasileiras em período superior a três décadas. Bezerra e Sichieri16, também via análise de dados secundários, investigaram características do hábito alimentar de fazer refeições fora de casa. Chor et al.17 pesquisaram os gradientes étnico-raciais de ganho de peso na idade adulta, e o grau em que tais gradientes podem ser explicados por circunstâncias socioeconômicas de origem e de destino. Horta et al.18 analisaram a influência intergeracional (i.e., no peso ao nascer da prole) do ganho de peso na infância. Lopes et al.19 verificaram o grau em que instrumentos de aferição de consumo alimentar devem passar por calibração específica para aplicação em idosos. Barreto et al.20 detectaram impacto benéfico da suplementação de vitamina A sobre a severidade dos episódios diarreicos na infância.

Essa riqueza analítica na abordagem de problemas de suma relevância, via exploração dos bancos de dados secundários, e via condução de estudos metodológicos, observacionais e experimentais, pode ser confirmada pelo exame dos conteúdos abarcados pela coletânea Epidemiologia nutricional21, publicada em 2007: integrantes de grupos de pesquisa sediados em ao menos 15 diferentes instituições públicas coautoram capítulos que abrangem temas metodológicos, e.g. relativos à aferição e à análise de características antropométricas e nutricionais; problemas de saúde pública, e.g. aqueles relacionados à desnutrição e à obesidade; considerações sobre políticas públicas no campo; e debate de temas de fronteira do conhecimento científico, e.g. os efeitos de longo prazo da nutrição na infância, ao longo do ciclo de vida, e via epigênese transgeracional.

Há, portanto, campo fértil para a Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva, que vem se beneficiando de conjunturas históricas, políticas, institucionais e acadêmicas mais favoráveis do que aquelas vigentes à época da constituição inicial da Saúde Coletiva brasileira.

  • 1
    Bosi MLM, Prado SD. Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva: constituição, contornos e estatuto científico. Cien Saude Colet 2010; 16(1):7-17.
  • 2
    Bleich SN, Cutler D, Murray C, Adams A. Why is the developed world obese? Annu Rev Public Health 2008; 29:273-295.
  • 3
    Taubes G. Good calories, bad calories: fats, carbs, and the controversial science of diet and health New York: Anchor Books; 2007.
  • 4
    Monteiro CA. Nutrition and health: the issue is not food, nor nutrients, so much as processing. Public Health Nutr 2009; 12(5):729-731.
  • 5
    Turnbaugh PJ, Hamady M, Yatsunenko T, Cantarel BL, Duncan A, Ley RE, Sogin ML, Jones WJ, Roe BA, Affourtit JP, Egholm M, Henrissat B, Heath AC, Knight R, Gordon JI. A core gut microbiome in obese and lean twins. Nature 2009; 457(7228):480-484.
  • 6
    Blaser MJ. Who are we? Indigenous microbes and the ecology ofhuman diseases. EMBO reports 2006; 7(10):956-960.
  • 7
    Koehly LM, Loscalzo A. Adolescent obesity and social networks. Prev Chronic Dis 2009; 6(3) [acessado 2010 jul 31]. Disponível em: http://www.cdc.gov/pcd/issues/2009/jul/08_0265.htm
  • 8
    Schlosser E. Fast food nation: the dark side of the all-American meal New York: Harper Collins; 2001.
  • 9
    Pollan M. In defense of food: an eater's manifesto New York: The Penguin Press; 2008.
  • 10
    Pollan M. The food movement, rising. The New York Review of Books 2001; May 20.
  • 11
    Prado SD, Gugelmin AS, Mattos RA, Silva JK, Olivares PSG. A pesquisa sobre segurança alimentar e nutricional no Brasil de 2000 a 2005. Cien Saude Colet 2010; 15(1):7-18.
  • 12
    Anjos LA, Burlandy L. Construção do conhecimento e formulação de políticas públicas no Brasil na área de segurança alimentar. Cien Saude Colet 2010; 15(1):19-22.
  • 13
    Goldberger J, Wheeler GA, Sydenstricker E. A study of the relation of family income and other economic factors to pellagra incidence in seven cotton-mill villages of South Carolina in 1916. Public Health Reports 1920; 35:2673-2714.
  • 14
    Morabia A. Joseph Goldberger's research on the prevention of pellagra. J R Soc Med 2008; 101:566-568.
  • 15
    Monteiro CA, Benicio MH, Conde WL, Konno S, Lovadino AL, Barros AJ, Victora CG. Narrowing socioeconomic inequality in child stunting: the Brazilian experience, 1974-2007. Bull World Health Organ 2010; 88(4):305-311.
  • 16
    Bezerra IN, Sichieri R. Characteristics and spending on out-of-home eating in Brazil. Rev Saude Publica 2010; 44(2):221-229.
  • 17
    Chor D, Faerstein E, Kaplan GA, Lynch JW, Lopes CS. Association of weight change with ethnicity and life course socioeconomic position among Brazilian civil servants. Int J Epidemiol 2004; 33(1):100-106.
  • 18
    Horta BL, Gigante DP, Osmond C, Barros FC, Victora CG. Intergenerational effect of weight gain in childhood on offspring birthweight. Int J Epidemiol 2009; 38(3):724-732.
  • 19
    Lopes AC, Caiaffa WT, Mingoti SA, Lima-Costa MF. The Bambui Health and Aging Study: is calibration of dietary intake necessary among older adults? J Nutr Health Aging 2004; 8(5):368-373.
  • 20
    Barreto ML, Santos LM, Assis AM, Araújo MP, Farenzena GG, Santos PA, Fiaccone RL. Effect of vitamin A supplementation on diarrhoea and acute lower-respiratory-tract infections in young children in Brazil. The Lancet 1994; 344(8917):228-231.
  • 21
    Kac G, Sichieri R, Gigante DP, organizadores. Epidemiologia nutricional Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Atheneu; 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Jan 2011
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