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Produção de conhecimento e intersetorialidade em prol das condições de vida e de saúde dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro

Production of knowledge and an inter-sectoral approach vis-à-vis living and health conditions of workers in the sugarcane sector

Resumos

Neste artigo, são apresentadas algumas dimensões da atuação intersetorial com vistas à melhoria das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores na área de saúde do trabalhador do setor sucroalcooleiro. É analisada a dinâmica seguida na construção de formas de intersetorialidade em determinadas práticas desenvolvidas a esse respeito numa região do Estado de São Paulo. Destaca-se o importante papel desempenhado por setores do Ministério Público do Trabalho e do Poder Legislativo na articulação de atores institucionais e da sociedade civil que potencializa uma atuação de maior alcance de cada órgão público responsável, envolvido na solução das questões de saúde do trabalhador. O estudo foi produzido a partir da análise documental do material produzido pelas instituições e por fóruns de debates com propostas de intervenção. Os resultados mostram que a apropriação de conhecimentos estratégicos produzidos por pesquisadores no setor canavieiro, nos recursos utilizados do instrumental jurídico e nas ações de fiscalização e vigilância, propicia importantes avanços na saúde do trabalhador e no meio ambiente.

Saúde do trabalhador; Ação intersetorial; Vigilância em saúde


This article presents some dimensions of inter-sectoral action aimed at improving working and living conditions of workers in the sugarcane and alcohol industry. The dynamics of the implementation of certain forms of given intersectoral practices established in a region of the State of São Paulo are analyzed. The important role played by sectors of the Labor Prosecution Office and the Legislative Authority in the articulation of institutional actors and civil society is stressed. They give greater impetus to the work of each public sector responsible for addressing the issues of workers'healthcare. This study was produced from analysis of documents and material provided by institutions and discussion forums with proposals for intervention. The results show that the appropriation of strategic knowledge produced by researchers of the sugarcane industry in the instrumental resources used in legal actions, monitoring and surveillance generates important advances in the health of workers and the environment.

Workers'health; Inter-sector action; Health surveillance


DEBATE

Produção de conhecimento e intersetorialidade em prol das condições de vida e de saúde dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro

Production of knowledge and an inter-sectoral approach vis-à-vis living and health conditions of workers in the sugarcane sector

Carlos Minayo-Gomez

Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Manguinhos. 21041-230 Rio de Janeiro RJ. minayogo@ensp.fiocruz.br

RESUMO

Neste artigo, são apresentadas algumas dimensões da atuação intersetorial com vistas à melhoria das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores na área de saúde do trabalhador do setor sucroalcooleiro. É analisada a dinâmica seguida na construção de formas de intersetorialidade em determinadas práticas desenvolvidas a esse respeito numa região do Estado de São Paulo. Destaca-se o importante papel desempenhado por setores do Ministério Público do Trabalho e do Poder Legislativo na articulação de atores institucionais e da sociedade civil que potencializa uma atuação de maior alcance de cada órgão público responsável, envolvido na solução das questões de saúde do trabalhador. O estudo foi produzido a partir da análise documental do material produzido pelas instituições e por fóruns de debates com propostas de intervenção. Os resultados mostram que a apropriação de conhecimentos estratégicos produzidos por pesquisadores no setor canavieiro, nos recursos utilizados do instrumental jurídico e nas ações de fiscalização e vigilância, propicia importantes avanços na saúde do trabalhador e no meio ambiente.

Palavras-chave Saúde do trabalhador, Ação intersetorial, Vigilância em saúde

ABSTRACT

This article presents some dimensions of inter-sectoral action aimed at improving working and living conditions of workers in the sugarcane and alcohol industry. The dynamics of the implementation of certain forms of given intersectoral practices established in a region of the State of São Paulo are analyzed. The important role played by sectors of the Labor Prosecution Office and the Legislative Authority in the articulation of institutional actors and civil society is stressed. They give greater impetus to the work of each public sector responsible for addressing the issues of workers'healthcare. This study was produced from analysis of documents and material provided by institutions and discussion forums with proposals for intervention. The results show that the appropriation of strategic knowledge produced by researchers of the sugarcane industry in the instrumental resources used in legal actions, monitoring and surveillance generates important advances in the health of workers and the environment.

Key words Workers'health, Inter-sector action, Health surveillance

Introdução

Reiteradamente, quando se trata de mudar determinadas situações que dizem respeito à saúde dos trabalhadores, bem como em outros âmbitos da saúde coletiva, se coloca como premissa a necessidade de agir em articulação intersetorial e com abordagem interdisciplinar. Partindo desse pressuposto, realiza-se a análise de algumas práticas desenvolvidas nos últimos anos no Estado de São Paulo sobre a problemática da saúde dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro, as quais revelam diversas facetas do que representa ou pode representar uma atuação intersetorial. Apresenta-se a dinâmica de construção de alguns tipos de intersetorialidade na atuação pautada pelas premissas que inspiram e compõem as bases para a promoção da saúde dos trabalhadores e, mais especificamente, para a implementação de ações efetivas.

Discute-se a produção e a apropriação de conhecimento quando os objetos de estudo abordam questões pertinentes em relação aos problemas de saúde dos trabalhadores e ambientais. Esses trabalhos revelam o compromisso dos pesquisadores que, desde o seu lugar social, se empenham em contribuir para o diagnóstico e para a mudança das condições de trabalho que estão na origem dos problemas.

Condições de trabalho e saúde no setor canavieiro

As plantações de cana de açúcar, seguindo modelos de monocultura intensiva, ocupam atualmente grande parte da área de produção agrícola do Estado de São Paulo e vêm paulatinamente deslocando a produção de alimentos para regiões cada vez mais afastadas. Embora o açúcar seja um produto de consumo tradicional na agricultura brasileira, atualmente desempenha um novo e importante papel no mercado interno e externo, particularmente com a produção de etanol combustível. Mas para o etanol ter livre aces-so aos mercados internacionais, principalmente aos europeus, e se tornar commodity mundial, exige-se às usinas garantia de condições saudáveis de trabalho e uma produção que não comprometa o meio ambiente. Essa intenção está implícita no "Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana de açúcar", com a adesão voluntária das agroindústrias, lançado na Casa Civil pelo governo federal, em 2009, e assinado por diversos ministérios, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura - CONTAG, pela Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo - FERAESP e pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar - UNICA.

Entretanto, como se mostra neste artigo, ambas exigências não estão sendo contempladas adequadamente, tanto no que diz respeito à saúde dos trabalhadores, quanto aos impactos ambientais. À degradação do solo, à contaminação das águas e à poluição do ar somam-se os problemas relativos às condições de reprodução da força-de-trabalho, composta em sua grande maioria por migrantes, instalados em alojamentos precários.

Estudos realizados por pesquisadores de diferentes áreas - alguns dos quais serão referidos aqui - permitem delinear uma caracterização dessas situações que apresentam grandes potencialidades para fundamentar ações de diversos órgãos públicos. Nesse sentido, cabe ressaltar al-guns avanços conseguidos em ações desenvolvidas por determinados atores institucionais com atribuições e capacidade de intervenção nos ambientes de trabalho.

O corte de cana de açúcar é um dos trabalhos rurais mais árduos, realizado a céu aberto, sob sol escaldante e com a presença de fuligem e poeira. É uma atividade exaustiva e repetitiva que exige milhares de movimentos1 e que pode provocar, ao final da jornada, uma elevação da frequência cardíaca acima de 174 batimentos por minuto2. O trabalhador derruba, em 10 minutos, 400 quilos de cana, desfere 131 golpes de podão, faz 138 inflexões num ciclo de 5,6 segundos para cada ação, sendo que ciclos menores de 30 segundos já representam risco de lesões osteoarticulares3. As mulheres foram praticamente alijadas do corte da cana, mas são destinados a elas os piores trabalhos, como o da bituca, termo utilizado para se referir à coleta de pedaços de cana o dia todo ou a catar pedras.

Como o pagamento é feito por produção, os cortadores se veem impelidos a aumentar o ritmo de trabalho, ultrapassando os limites fisiológicos, atingindo até uma média de produtividade de 12 toneladas diárias de cana cortada, três vezes maior do que na década 1950. Nesse senti-do, o fim do pagamento por produção é considerado pelos estudiosos que realizam pesquisas nessa área uma das premissas fundamentais para mudar o funesto quadro de saúde dos migrantes canavieiros.

Os equipamentos de proteção individual fornecidos, em geral, são inadequados para o corte e desconfortáveis, gerando mais insegurança do que segurança4. As luvas não são aderentes ao cabo do facão, o que explica o fato de ser a mão a parte do corpo mais atingida nos acidentes de trabalho. A grande maioria dos óculos de proteção inviabiliza uma visão nítida, o que também eleva os riscos de ocorrência de acidentes. Somam-se a isso os acidentes de trajeto, ocorridos com caminhões, carretas, ônibus e outros meios de transporte velhos, em condições precárias e em mau estado de conservação. Segundo informações colhidas junto ao setor, vem sendo verificado a ocorrência de acidentes graves nas rodovias e levanta-se a hipótese de que essas ocorrências tenham a ver com o pagamento dos condutores por número de via-gens realizadas, intensificando-se seu trabalho e elevando-se os riscos nas estradas.

O trabalho é feito em temperaturas muito elevadas, as quais podem chegar a 37ºC à sombra, o que conforme a legislação brasileira seria considerado como atividade laboral pesada, sendo que a Norma Regulamentadora do MTE prevê a paralisação parcial ou total do trabalho quando o índice de sobrecarga térmica, medido pelo IBUTG (Índice de Bulbo Úmido Termômetro de Globo), ultrapassar o limite de 27ºC. Então, haveria a necessidade de pausas regulares na sombra, um regime de 30 minutos de descanso e a paralisação total da atividade enquanto o IBUTG estiver acima de 30ºC.

A temperatura corporal dos cortadores, influenciada também pela vestimenta pesada e fechada, pode ser comparada à dos maratonistas, sendo que estes - quando rapidamente resfriados - se recuperam com pouco ou nenhum efeito residual, mas, se for feito tardiamente, correm perigo de morte2.

Em avaliação qualitativa alimentar, comprova-se que a dieta ingerida é insuficiente e pobre em nutrientes, em relação ao gasto energético despendido com um trabalho extenuante, constatandose perda significativa de peso e de gordura corporal, assim como aumento da massa magra5.

O trabalho excessivo, associado às longas jornadas, sob sol inclemente, resulta em episódios de gravidade crescente que se manifestam com câimbras e podem levar à morte por parada cardíaca. Quando essas câimbras são fortes e frequentes, seguidas de tontura, dor de cabeça, vômitos e convulsões, os trabalhadores denominam essa situação de "birola", que corresponderia ao termo karoschi, e que designa um quadro clínico extremo ligado ao estresse ocupacional com morte súbita por patologia coronária isquêmica ou cérebro vascular6.

Nos serviços de urgência e emergência é habitual encontrar trabalhadores com alguns desses sintomas, e nos dias mais quentes e secos, durante o pico da safra de cana, também é frequente os ambulatórios dos hospitais ficarem repletos de cortadores de cana tomando soro.

Hoje, no estado de São Paulo, aproximadamente 50% da cana é cortada mecanicamente, com o qual diminuíram os postos de trabalho, mas aumentou o volume de cana cortada por trabalhador. Mantêm-se, no entanto, as mesmas dificuldades, pois onde a máquina não corta, por motivos diversos, como nos declives acentuados, terrenos pedregosos, por ser cana de primeiro corte ou para replantio, cabe ao trabalhador fazêlo, sendo-lhe exigido cada vez maior volume de produção7.

A total mecanização do corte já foi anunciada várias décadas atrás, mas poderá ocorrer em 2014 se os usineiros e os fornecedores de cana aderirem ao protocolo de intenções do governo estadual. E suporia também a efetivação de um elenco de propostas de políticas públicas já existentes para compensar a perda de postos de trabalho e, ao mesmo tempo, melhorar as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores remanescentes e os problemas ambientais8,9.

Problemas ambientais

Aos problemas derivados da carga de trabalho a que os trabalhadores estão submetidos, se acrescentam os ambientais decorrentes das queimadas realizadas no período da pré-colheita, expondo também várias cidades a uma população que chega a ser três vezes maior daquela do período da não queima de cana.

Diversos estudos10,11 têm demonstrado alterações respiratórias entre a população residente em áreas próximas aos canaviais, onde ocorre a queima da cana, sendo os grupos mais sensíveis a esses efeitos as crianças, os idosos e os portadores de patologia cardiorespiratória prévia12.

Esse tipo de poluição atinge o sistema respiratório e provoca um processo inflamatório que pode causar patologias respiratórias e circulatórias, e afetar o sistema cardiovascular13. Parte desses efeitos pode observar-se na grande procura da população por serviços de inalação e emergência, chegando a ser três vezes e meia maior o número de internações hospitalares por asma brônquica11, como também significativos os aumentos de internação por hipertensão arterial e por problemas respiratórios14.

Grande parte dos problemas gerados por esse tipo de poluição poderá ser superado com o fim da queima da cana - uma causa que vem mobilizando vários atores públicos e organizações da sociedade civil - prevista para o ano de 2014, nas áreas mecanizáveis, e, em 2017, nas não mecanizáveis, caso seja respeitado o Protocolo Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro, de adesão voluntária, firmado pela União da Indústria da Cana-de-açúcar (UNICA) e o governo do Estado de São Paulo.

Outra fonte com potencial de contaminação ambiental - particularmente dos cursos hídricos superficiais e das reservas subterrâneas - encontra-se no uso intensivo e em grandes volumes de agrotóxicos, uma vez que cultura da cana-deaçúcar é responsável por aproximadamente 11% das vendas desses produtos no Brasil15. No entanto, apesar dessa produção ocupar uma área por onde passam importantes aquíferos como o Guarani, a maior reserva de água doce subterrânea do mundo, há carência de estudos e de programas permanentes de monitoramento a esse respeito. O próprio Protocolo Agroambiental aponta, ao menos, a intenção de se cuidar da conservação do solo e dos recursos hídricos, de proteger as matas ciliares, de recuperar as nascentes e de tomar cuidados no uso de defensivos agrícolas.

Exemplos de articulação intersetorial

Com o intuito de refletir sobre as experiências desenvolvidas que mostram as potencialidades de formas de atuação intersetorial consideradas exemplares, destacam-se três casos. Em dois deles, se apresenta o modo de agir de setores do Ministério Público do Trabalho de São Paulo, especialmente da 15ª Região. E em um terceiro caso, se analisa o fórum criado por iniciativa de um vereador de Piracicaba na Câmara Municipal, o que propiciou uma atuação integrada impar de órgãos públicos e de organizações não governamentais, objetivando a melhoria das condições de vida e de trabalho dos cortadores de cana nessa região.

Pode-se dizer que determinados procuradores dessa região vêm desempenhando sua função constitucional no acolhimento e no tratamento dado a questões de saúde e de condições de vida dos trabalhadores canavieiros migrantes, enquanto verdadeiros promotores de articulações intersetoriais para formulação das propostas necessárias para enfrentar os principais problemas desse setor, tendo como base os conhecimentos existentes e a utilização dos instrumentos jurídicos. Ao longo destes últimos anos vem se constatando a contribuição desse Ministério, a partir dos desdobramentos que vêm acontecendo no grande número de audiências públicas realizadas, na construção dos vários termos de ajuste de conduta (TAC) firmados com empresas e nas diversas ações civis públicas encaminhadas.

As audiências, realizadas em vários municípios com a participação de diversos representantes de setores públicos, de centros de pesquisa e de organizações da sociedade civil, constituemse em espaços socialmente construídos, para onde convergem olhares baseados no conhecimento, na pesquisa empírica e na experiência vivida. Nelas, inicialmente é feito um diagnóstico amplo das situações em pauta, se constatam as limitações ou as deficiências dos órgãos públicos de fiscalização e de vigilância dos ambientes de trabalho, para em seguida serem formuladas as demandas de intervenção.

Uma dessas audiências teve por finalidade apurar as denúncias ao Ministério Público Federal, por parte da Pastoral dos Migrantes de Guariba, sobre a ocorrência de 21 mortes de cortadores de cana-de-açúcar nas usinas da região, atribuídas ao trabalho exaustivo, entre 2004 e 2008. Foi nela que se acordou demandar às vigilâncias sanitárias regionais e municipais uma atuação efetiva nesse setor, o que deu lugar à construção do Programa Paulista de Vigilância em Saúde do Trabalhador do setor canavieiro, o qual conta com a participação dessas instâncias de vigilância e de centros de referência de saúde do trabalhador. O programa, além de capacitar várias centenas de técnicos das vigilâncias municipais, vem desenvolvendo, entre outras ações, a vigilância: das condições de hidratação e da qualidade da água consumida pelo trabalhador canavieiro; e dos alojamentos e habitações coletivas, segundo os critérios de instalação e funcionamento estabelecidos na portaria CVS 12. Elaboraram-se também protocolos de organização da assistência, incluindo-se diagnóstico clínico e laboratorial, referência e contra referência, especialmente na emergência, atenção básica, mas também olhando para a questão da atenção secundária e terciária no âmbito da saúde.

Uma das ações civis públicas, entre as várias dezenas realizadas pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) de Bauru contra as empresas da região, serve para ilustrar e revelar a contribuição indispensável do conhecimento científico construído, inclusive por alguns autores já citados1,3, para fundamentar a atuação ministerial. Essa ação veio precedida de cuidadosa aferição do não cumprimento de itens acordados em TAC anterior e das reiteradas autuações do Grupo Móvel de Fiscalização Rural. A abrangência e a minuciosidade com que foi apropriado estrategicamente esse conhecimento acabam transformando o conteúdo dessa ação em excelente guia sobre os requerimentos necessários para o controle das cargas de trabalho e os riscos relativos às condições e ambientes de trabalho. Inclui-se um amplo leque de procedimentos e padrões exigidos para a elaboração e a implementação dos programas de prevenção dos riscos ambientais, particularmente no referente à sobrecarga térmica. Outras ações também foram realizadas, como as dirigidas ao combate da terceirização irregular, à melhoria de questões básicas em saúde e segurança, previstas na NR-31, do ritmo de trabalho, dos exames médicos e da qualidade da água potável e do transporte. Em relação a este, foi alterada a portaria que regulamenta a autorização de veículos no estado de São Paulo, que hoje devem passar por uma inspeção rigorosa e não podem ter mais de 20 anos.

Além disso, em um dos TAC emitidos se assegura a todos os trabalhadores uma remuneração diária, no mínimo, equivalente ao piso da categoria por dia de trabalhado. Nela se determina também que, enquanto for utilizado o modelo de pagamento por produção no corte manual da cana, se adotará o sistema de "quadra fechada". Esse sistema de controle da produção foi implantado pelo sindicato de Cosmópolis para coibir o roubo no peso praticado por usinas e tem permitido um ganho adicional médio aos trabalhadores de 30%.

Formas similares de atuação do MPT vêm acontecendo em Estados com grande produção de cana. Um fato relevante, nesse sentido, foi o lançamento por esse Ministério Público, em 2009, do Programa Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas no Setor Sucroalcooleiro, com vistas à adoção dos postulados do trabalho decente no meio rural.

A outra iniciativa que merece atenção quando se discutem as possibilidades de atuação integrada intersetorialmente é o Fórum da Cidadania, Justiça e Cultura da Paz de Piracicaba16. Trata-se de um espaço criado na câmara de vereadores, que agrupa representantes de organizações da sociedade civil e de órgãos públicos, para discutir varias dimensões dos direitos humanos e encaminhar propostas às instâncias públicas sobre denúncias recebidas a esse respeito. A partir de uma dessas denúncias, referente à existência de alojamentos totalmente irregulares para moradia provisória durante o período da safra da cana, promoveram-se ações integradas de órgãos públicos e de organizações não-governamentais, junto ao setor sucroalcoleiro, visando a melhoria das condições de trabalho e vida dos trabalhadores da região de Piracicaba. Estabeleceu-se um plano de ação conjunta, envolvendo profissionais e agentes de saúde, fiscais sanitários municipais, auditores do ministério do trabalho e emprego, sindicatos rurais e pastoral de migrantes, entre outros. Criou-se uma central de informação sediada na Câmara Municipal de Piracicaba. As denúncias eram enviadas via internet a todos os órgãos competentes para tomarem as providências cabíveis. A essa ação con-junta se somam os subsídios oferecidos por al-guns pesquisadores para uma melhor compreensão das condições de trabalho e do desgaste dos trabalhadores do corte da cana.

Em relação aos alojamentos, foi confeccionada coletivamente uma minuta do termo de ajustamento de conduta emitido pela 15ª Procuradoria Regional do Trabalho17 e assinado por 28 municípios da região de Piracicaba, em reunião solene na câmara municipal dessa cidade. Contém, entre outras cláusulas, as diretrizes que deverão ser seguidas na atuação dos órgãos municipais com prazos e obrigações no sentido de mapear os locais de moradias irregulares e de realizar inspeções periódicas para verificação das condições sanitárias e do cumprimento de direitos trabalhistas. Para a padronização das inspeções e dos requisitos para licenciamento prévio das moradias foi fundamental a contribuição do CEREST (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador) de Piracicaba, devido à experiência acumulada na vigilância de acidentes de trabalho, e da Gerência Regional de Trabalho e Emprego com suas práticas de fiscalização rural. A fim de dar visibilidade aos problemas e tornar públicos os relatórios periódicos sobre o mapeamento de moradias e alojamentos do setor e as medidas adotadas nas ações de vigilância que vinham sendo efetuadas, foi criada uma plataforma no site do MPT da 15ª Região e inseridas numerosas matérias na mídia. Entre outros avanços conseguidos, merece destaque o fato de terem sido eliminadas as terceirizações irregulares. Nos anos de 2008 e 2009, só na regional de Piracicaba, foram encaminhados 162 relatórios ao MPT, constatadas 403 irregularidades, sendo 57 provenientes de alojamentos e 105 de moradias. Regularizaram-se moradias de 8.806 trabalhadores, foram computadas 70 inserções em jornais, seis entrevistas em redes nacionais de televisão e outras seis em rádios locais a respeito das diversas ações desenvolvidas. A articulação do Fórum com a Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo possibilitou a criação da Norma CVS nº 31/08 e da Portaria CVS-12 de 19 de agosto de 2009, que obrigam a obtenção de alvará para os alojamentos. Por iniciativa também do Fórum foi elaborada minuta e sancionada a Lei Estadual 13.559/09, obrigando todas as pessoas físicas e jurídicas que mantêm no estado empregados rurais contratados para trabalhos em tempo determinado ou indeterminado e que tenham trabalhadores residindo em alojamentos ou moradias, a requerer à Secretaria Estadual de Saúde autorização para a utilização do local para essa finalidade.

Essa experiência bem sucedida tem servido de estímulo para a criação de fóruns semelhantes em outros municípios regionais, e já vêm funcionando em alguns deles.

Quanto à produção de conhecimentos, os estudos aqui mencionados constituem exceção em relação à grande maioria absoluta dos publicados sobre o setor canavieiro. Conforme refere Silva18, vários trabalhos acadêmicos, oriundos principalmente de universidades públicas paulistas, demonstram a sustentabilidade da produção de cana-de-açúcar, mas pouco se reportam aos trabalhadores rurais assalariados. É o caso de uma coletânea também sobre essa temática, editada pela UNICA, com artigos de investigadores de diversas universidades que apenas mencionam os trabalhadores ao discutir o mercado de trabalho, com base nas estatísticas da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), sem em momento algum se referirem às condições de trabalho e vida a que estão submetidos. Essa mesma autora cita também publicação recente da Revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo que apresenta o quadro das investigações realizadas em diferentes áreas do conhecimento, onde apenas constam estudos cuja finalidade é encontrar o maior número de variedades capazes de aumentar os níveis de produtividade e as melhores condições de plantio em diversos tipos de clima e solo.

Considerações finais

Em primeiro lugar, é impactante perceber que a produção de cana de açúcar provoca efeitos na saúde dos trabalhadores e no ambiente derivados de uma utilização abusiva de três principais elementos da natureza: exploração extensiva e intensiva da terra, poluição do ar como consequência das queimadas e contaminação das águas, causada pelo uso de grande quantidade de agrotóxicos. Surpreende também constatar que as instâncias públicas tenham começado a se mobilizar apenas depois de mais de vinte anos de uma primeira greve deflagrada pelos canavieiros, em Guariba, cidade do interior do Estado de São Paulo. Nessa greve - violentamente reprimida e que teve grande repercussão nacional e internacional - já se trazia à luz o conjunto de problemas aqui descrito sobre as condições de produção e reprodução dessa categoria de trabalhadores.

Foi precisamente a Pastoral do Migrante desse município quem, em virtude da atenção que vem prestando a esses trabalhadores, denunciou ao Ministério Público as mortes de canavieiros com suspeita de serem causadas em decorrência do exercício de trabalho exaustivo. E esse fato foi o elemento detonador para esse Ministério convocar as audiências públicas que redundaram nas pressões exercidas junto aos órgãos executivos, diante da sua omissão histórica na proteção da saúde desses trabalhadores. A pertinência dessa atuação ficou evidente nos diversos desdobramentos já descritos anteriormente.

É muito oportuno também reconhecer o que representou o compromisso na defesa dos diretos humanos do vereador de Piracicaba que criou o Fórum de Cidadania, Justiça e Cultura da Paz, ao abrir o espaço público da câmara municipal, disponibilizando a infraestrutura necessária para dar acolhida às denúncias de desrespeito dos direitos dos trabalhadores. A discussão das situações irregulares, e a busca coletiva de meios para enfrentá-las, possibilitou uma estreita articulação intersetorial que propiciou maior alcance das ações de cada um dos órgãos. Nesse sentido, o CEREST de Piracicaba deu uma prova de como se pode levar a termo a missão para a qual foram implantados esses centros de referência.

Deve-se ressaltar, ainda, mais uma vez, a importância da contribuição de pesquisadores imbuídos do senso de responsabilidade sobre a necessidade de encontrar respostas, seja com análises de situação, pesquisas básicas ou operacionais, que expliquem cientificamente as origens e as dimensões dos problemas de saúde dos trabalhadores. No caso do corte da cana, os efeitos nocivos já estão suficientemente estudados e conhecidos, o grande dilema reside na hora implantar as transformações necessárias para evitá-los. É unânime o reconhecimento de que a solução de boa parte dos agravos à saúde desse coletivo se daria com o fim do pagamento por produção. Mas, os próprios trabalhadores migrantes veem nisso uma ameaça de perda de seus rendimentos. As organizações sindicais se sentem obrigadas a aceitar essa justificativa, e não se sabe de estratégias para convencer os trabalhadores sobre os grandes riscos que correm e da perda ainda maior que viria da significativa redução da sua vida produtiva. Mesmo o Compromisso Nacional para aperfeiçoar as condições de trabalho assinado na Casa Civil não faz menção a esse assunto.

Finalmente, cabe registrar que para chegar a uma maior potencialização das ações intersetoriais seria preciso estender a integração aos setores do desenvolvimento agrário, da defesa agropecuária, do meio ambiente e da polícia rodoviária, além da previdência social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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