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Saúde mental e trabalho interdisciplinar: a experiência do "Cândido Ferreira"em Campinas

Mental health and interdisciplinary work: the experience in "Candido Ferreira", in Campinas, State of Sao Paulo, Brazil

Resumos

Este artigo analisa o processo de reforma psiquiátrica a partir de um foco dirigido ao trabalho interdisciplinar dos profissionais de nível superior do serviço de saúde Dr. Cândido Ferreira, em Campinas. Trata-se de uma instituição filantrópica que contribui expressivamente com a rede de assistência à saúde mental deste município. Embora integrada à rede de assistência de saúde mental desta cidade, o serviço apresenta certa independência financeira, administrativa e gerencial em relação à ela, o que lhe permite implementar algumas experiências terapêuticas e inovações gerenciais. Mais especificamente, este artigo focaliza o processo de tomada de decisão da equipe interdisciplinar, envolvendo diagnóstico e processo terapêutico. Também aborda a organização do serviço no processo de desospitalização, como o remanejamento de pacientes em residências fora da parte central do serviço, a manutenção dessas unidades, o gerenciamento das oficinas de trabalho na instituição, que preveem um rendimento financeiro para o paciente, e a implementação de um programa de três anos de residência em psiquiatria na instituição. A abordagem metodológica da pesquisa é essencialmente qualitativa, constituindo-se de entrevistas e observação participante relacionados com os profissionais desse serviço de saúde.

Reforma psiquiátrica; Interdisciplinaridade; Processo de trabalho


This article analyses the process on the psychiatric reform, with a focus on the interdisciplinary work developed by the health professionals from the health service "Dr. Candido Ferreira"in Campinas, Brazil. This is a philanthropic institution which contributes significantly to public mental health network in this city. Even though the service is integrated to the Unified Heath System (SUS), it presents a financial, administrative and managerial independence, which allows implementing some therapeutic experiences and managerial innovations. More specifically, this article focuses on the process of decision making by the interdisciplinary team, involving diagnosis and therapeutic process. Other themes, related to the organization of the service in the process of dehospitalization, are considered, such as the transfer of patients into residences outside the institution, the maintenance of these units, the management of the workshops in the institution which allows a financial income for the patient, and the beginning of the institution as a three years residence in Psychiatry. The methodological approach of the research is essentially qualitative, drawing from interviews and participant observation, related the professionals from this service.

Psychiatric reform in Campinas; Interdisciplinarity; Work process


REVISÃO

Saúde mental e trabalho interdisciplinar: a experiência do "Cândido Ferreira"em Campinas

Mental health and interdisciplinary work: the experience in "Candido Ferreira", in Campinas, State of Sao Paulo, Brazil

Marcos de Souza QueirozI; Leny Aparecida DelamutaII

ICentro de Memória, Departamento de Enfermagem, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. Rua Sergio Buarque de Holanda 800, Cidade Universitária Zeferino Vaz. 13083-970 Campinas SP. msq44@uol.com.br

IIDepartamento de Enfermagem, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp

RESUMO

Este artigo analisa o processo de reforma psiquiátrica a partir de um foco dirigido ao trabalho interdisciplinar dos profissionais de nível superior do serviço de saúde Dr. Cândido Ferreira, em Campinas. Trata-se de uma instituição filantrópica que contribui expressivamente com a rede de assistência à saúde mental deste município. Embora integrada à rede de assistência de saúde mental desta cidade, o serviço apresenta certa independência financeira, administrativa e gerencial em relação à ela, o que lhe permite implementar algumas experiências terapêuticas e inovações gerenciais. Mais especificamente, este artigo focaliza o processo de tomada de decisão da equipe interdisciplinar, envolvendo diagnóstico e processo terapêutico. Também aborda a organização do serviço no processo de desospitalização, como o remanejamento de pacientes em residências fora da parte central do serviço, a manutenção dessas unidades, o gerenciamento das oficinas de trabalho na instituição, que preveem um rendimento financeiro para o paciente, e a implementação de um programa de três anos de residência em psiquiatria na instituição. A abordagem metodológica da pesquisa é essencialmente qualitativa, constituindo-se de entrevistas e observação participante relacionados com os profissionais desse serviço de saúde.

Palavras-chave Reforma psiquiátrica, Interdisciplinaridade, Processo de trabalho

ABSTRACT

This article analyses the process on the psychiatric reform, with a focus on the interdisciplinary work developed by the health professionals from the health service "Dr. Candido Ferreira"in Campinas, Brazil. This is a philanthropic institution which contributes significantly to public mental health network in this city. Even though the service is integrated to the Unified Heath System (SUS), it presents a financial, administrative and managerial independence, which allows implementing some therapeutic experiences and managerial innovations. More specifically, this article focuses on the process of decision making by the interdisciplinary team, involving diagnosis and therapeutic process. Other themes, related to the organization of the service in the process of dehospitalization, are considered, such as the transfer of patients into residences outside the institution, the maintenance of these units, the management of the workshops in the institution which allows a financial income for the patient, and the beginning of the institution as a three years residence in Psychiatry. The methodological approach of the research is essentially qualitative, drawing from interviews and participant observation, related the professionals from this service.

Key words Psychiatric reform in Campinas, Interdisciplinarity, Work process

Introdução

Este artigo analisa o processo de reforma psiquiátrica a partir de um foco dirigido ao trabalho interdisciplinar dos profissionais de nível superior do serviço de saúde Dr. Cândido Ferreira, em Campinas. Trata-se de uma instituição filantrópica, com 85 anos de existência, que contribui expressivamente com a rede de assistência à saúde mental do município. Embora integrada à esta, o serviço apresenta certa independência financeira, administrativa e gerencial em relação à ela, o que lhe permite implementar algumas experiências terapêuticas e inovações gerenciais. Em 1993, a instituição foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como referência e modelo no Brasil para a abertura manicomial e inclusão do paciente no processo de cidadania.

A reforma psiquiátrica e o surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em um contexto descentralizado, têm permitido a ocorrência de várias experiências, que se verificam pontualmente em diversos municípios brasileiros. Da mesma forma que o SUS, a avaliação dessas experiências está apenas começando a ser feita. De um modo geral, há um consenso entre estudiosos desse fenômeno da necessidade de se trazer à tona tais experiências, através de pesquisas qualitativas, visando produzir mais consistência cognitiva ao chamado processo de desinstitucionalização da reforma psiquiátrica1.

A abordagem metodológica da pesquisa foi essencialmente qualitativa, baseada em entrevistas e observação participante, envolvendo os profissionais desse serviço de saúde. Tal perspectiva pressupõe que, no interior da instituição pesquisada, seus profissionais têm representações, embora incompletas, relativamente coerentes em relação ao universo vivido e experimentado. Nesse sentido, a realidade foi entendida como uma construção social que se desenvolve no interior de um contexto de valores, noções, regras e normas.

A concentração da pesquisa no município de Campinas justifica-se pelo fato deste município ter se caracterizado, em vários aspectos, como pioneiro, não só no processo de municipalização dos serviços de saúde, como também no desenvolvimento de abordagens alternativas de tratamento de doenças, principalmente as relacionadas com a saúde mental. A sua experiência pode contribuir de modo significativo para a geração de conhecimentos e tecnologias que permitam seu aprimoramento em escala mais ampla.

As entrevistas foram direcionadas a 22 profissionais, sendo que 21 deles opera no próprio Cândido Ferreira e o outro na Secretaria da Saúde de Campinas. Todos os profissionais consentiram livremente em conceder a entrevista após terem sido informados dos propósitos da pesquisa. Além das entrevistas, o método inclui ainda a observação participante, que ocorreu nos momentos que antecederam e que sucederam as entrevistas, envolvendo a prática profissional no dia-a-dia da instituição. Um diário de pesquisa foi elaborado para este propósito.

As entrevistas, que duraram em média 2 horas cada uma, foram formalmente agendadas e ocorreram no próprio local de trabalho do entrevistado. Todas elas foram gravadas e posteriormente transcritas. No processo de transcrição, quando foi necessário, algumas questões foram destacadas e, para esclarecê-las, procedeu-se a uma nova entrevista com o mesmo sujeito.

A análise das entrevistas obedeceu aos quatro procedimentos metodológicos propostos por Martins e Bicudo: a) leitura global das entrevistas a fim de familiarizar-nos com o material de pesquisa; b) releitura das mesmas, buscando colocar em evidência os significados atribuídos pelos sujeitos entrevistados aos problemas abordados; c) detecção das unidades de significado, indicando momentos destacáveis da percepção dos sujeitos sobre a vivência do fenômeno; d) os temas relevantes, a partir da própria experiência dos entrevistados, foram reagrupados em categorias que delinearam a estrutura do universo pesquisado2.

As entrevistas foram precedidas da aplicação de um pequeno questionário que objetivou conhecer o perfil do profissional referente a sexo, idade e tempo no serviço. Foram entrevistados 5 psicólogos, 4 médicos, 4 terapeutas ocupacionais, 4 enfermeiros, 2 nutricionistas, 1 assistente social, 1 nutricionista, 1 economista e 1 administrador. Trata-se de uma população relativamente jovem, com menos de 10 anos no serviço, com predominância da faixa etária entre 25 e 35 anos e ampla maioria do sexo feminino. Este perfil é consistente com a composição dos profissionais de saúde da rede básica de Campinas e, provavelmente brasileiro.

A Reforma Psiquiátrica: uma base teórica

A reforma psiquiátrica vem ocorrendo em todo o mundo, paralelamente à reforma dos sistemas de saúde, como um movimento cultural mais amplo que percebe o indivíduo como um ser essencialmente social, em um ambiente comunicativo. Nesse contexto, o diagnóstico, o processo terapêutico e a cura devem levar, necessariamente, a procurar promover a integração do paciente com a sua família e a comunidade.

Além de propostas de inclusão do paciente, este movimento vem contestando também o conceito de doença mental como uma prática repressiva produzida pela Psiquiatria tradicional. O movimento vem percorrendo vários países com o intuito de dissolver a barreira entre assistentes e assistidos; abolir a reclusão e a repressão imposta ao paciente e promover a liberdade com responsabilidade dos pacientes. Tais propósitos incluem, ainda, a prática de discussão em grupo de profissionais da saúde, envolvendo uma postura terapêutica essencialmente interdisciplinar2.

Entre as propostas trazidas à tona neste processo, destaca-se a diminuição radical de internações psiquiátricas e o desenvolvimento de uma rede de serviços em saúde mental na comunidade, composta por equipes interdisciplinares, capazes de responder às demandas dos pacientes e de seus familiares. A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem dando consistência a tais propostas através da promoção teórica e prática de um sistema de saúde centrado na autonomia da comunidade e do indivíduo.

O Brasil recebeu esta influência nos anos 70 do século passado, através do desenvolvimento da chamada psiquiatria comunitária, que redirecionava os objetivos da psiquiatria em direção a uma perspectiva mais social e preventiva. Tal postura antagonizou-se com o modelo hospitalocêntrico hegemônico, ao criticar a sua ineficiência, o custo crescente e a precariedade do serviço3.

A crise de financiamento da saúde, que se tornou dramática a partir da secunda metade dos anos 70, catalisou uma série de reformas que culminaram com a formação do Sistema Unificado de Saúde (SUS), a partir de 1988. Com mecanismos organizacionais de descentralização e cogestão, o SUS contemplou em suas diretrizes os princípios da Reforma Psiquiátrica, incluindo o processo de desospitalização e a garantia dos direitos de cidadania dos doentes mentais. A partir de então, o manicômio passou a ser percebido mais como um problema do que como uma resposta racional à doença mental. Em 2001, a lei 10.216, proveniente do projeto de lei Paulo Delgado, foi sancionada, dando início à extinção progressiva do modelo psiquiátrico clássico, inclusive de hospitais especializados, com sua substituição por outras modalidades assistenciais.

Com o fenômeno da desospitalização, surge um novo modelo de tratamento da doença mental, com a inclusão de serviços denominados de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Hospitais-Dia. Tais instituições têm por objetivo oferecer atenção integral, que postula a desospitalização e a desmedicalização, ao mesmo tempo em que procura promover, por meio de uma clínica interdisciplinar ampliada, o resgate da cidadania e a integração social do paciente. Tais serviços são caracterizados como estruturas intermediárias entre a internação integral e a vida comunitária; são impulsionados pelos projetos de re-forma psiquiátrica, que vêm sendo implementados em grande parte dos Estados Brasileiros.

O Ministério da Saúde vem promovendo com muita rapidez a substituição de hospitais por unidades CAPS. Em 1997, havia 176 dessas unidades no país, que recebia 6% dos recursos destinados para o SUS em Saúde Mental, enquanto a rede hospitalar, com 71 mil leitos, recebia outros 94% desses recursos. Em 2004, o número de unidades CAPS subiu para 516 e passou a receber 20% desses recursos, contra 80% destinados aos 55 mil leitos hospitalares4.

Em 2007, já existiam 1.198 CAPS, todos atendendo por ano algo acima de 360 mil pessoas, sendo a maioria portadora de transtornos mentais severos. Nesse ano, 62,9% dos recursos federais do SUS na área de saúde mental foram para a rede extra-hospitalar, enquanto que 37,07% foram para o hospital psiquiátrico. Até 2011, está previsto no planejamento do SUS aproximadamente 2.000 CAPS5.

No entanto, a maioria dos municípios não conta com equipes de apoio para ajudar os Postos de Saúde a oferecerem o cuidado em saúde mental na rede básica, tampouco possuem um atendimento adequado à crise de urgência, que trabalhe integrado com o sistema pré-hospitalar.

A condição de vanguarda do Cândido

O Cândido é um serviço de saúde e hospital dia, que atende cerca de 1.200 usuários por mês, em sua maioria provenientes da região de Campinas. A sua estrutura organizacional contém 1 Núcleo de Atenção à Crise (NAC), 1 Núcleo de Atenção à Dependência Química (NADQ), 4 Centros de Atenção Psicossocial (Caps Estação, Caps Sul, Caps Esperança e o Caps AD), 1 Núcleo Clínico (NC), 1 Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT), 3 Centros de Convivência (Convivência e Arte, Centro Cultural Cândido-Fumec e Casa Escola Rosa dos Ventos) e o Cândido Escola.

Os usuários também realizam atividades relacionadas à Comunicação Comunitária, distribuídas em 2 oficinas: oficina de jornal impresso (Jornal Candura - Espaço Aberto para um Novo Pensamento) e oficina de rádio (Programa Maluco Beleza).

A instituição mantém um convênio de co-gestão com a Prefeitura de Campinas, convênio este regulamentado pela Lei 6.215 de 1990, o que prevê dedicação integral ao atendimento de pacientes do SUS. Este serviço possui também o certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social.

Em decorrência do convênio de co-gestão, a antiga estrutura administrativa da Associação foi substituída pela criação de um Conselho Diretor, com mandato de 3 anos, responsável pela gestão institucional, que conta com a participação de representantes de vários segmentos sociais afins. Compõe-se de 3 representantes do Cândido Ferreira, 2 representantes da Secretaria Municipal de Saúde, 1 representante do Conselho Municipal de Saúde, 1 representante da Secretaria Estadual de Saúde, 2 representantes dos trabalhadores, 2 representantes das universidades parceiras (PUC-Campinas e UNICAMP), 1 representante dos familiares e 1 representante dos usuários.

O Colegiado de Gestão do Cândido controla 620 funcionários. Entre os de nível profissional mais diretamente envolvidos em pesquisa, existem 38 psicólogos, 30 enfermeiros, 26 terapeutas ocupacionais, 18 médicos psiquiatras, 9 médicos clínicos e 2 médicos plantonistas. Com a exceção dos médicos, que mostram uma relação inversa, a grande maioria desses profissionais trabalha em período integral na instituição.

Os entrevistados reconheceram unanimemente que participam de uma instituição de vanguarda, com cuja proposta mais ampla estão plenamente de acordo. Não foi encontrada uma única voz que pudesse defender a proposta médica anterior de exclusão e confinamento do paciente. Todos entendem que o rumo tomado pela reforma psiquiátrica e o processo de desospitalização é irreversível e sem retorno.

Em tal contexto, o convênio de co-gestão entre o Cândido e a Prefeitura de Campinas é considerado necessário e benéfico tanto para a instituição como para a rede de serviços. Os seguintes motivos foram arrolados para justificar tal avaliação: a) resolveu a situação de insolvência da instituição, b) inseriu seus serviços em uma rede mais ampla do SUS, c) preservou a autonomia da instituição em vários aspectos considerados importantes, como o processo de trabalho e a política salarial.

Embora favoráveis ao convênio, todos reconhecem que se trata de uma situação instável, dependente de renegociações com cada novo prefeito. Além disso, os recursos financeiros são considerados cronicamente insuficientes para dar conta dos objetivos mais amplos da instituição.

Sempre que se referem à rede de cuidados em saúde mental, os profissionais do Cândido reforçam o termo rede, querendo com isso dizer que o bom funcionamento de um serviço depende de suas conexões e interfaces com outros serviços. O sentido dado ao termo refere-se também ao fato de que um determinado serviço não pode adquirir excelência a não ser que o padrão do conjunto da rede de serviços se aproxime desse patamar.

De um modo geral, a rede de serviços em saúde mental do SUS em Campinas é percebida como em um patamar inferior àquele desejado pelos profissionais entrevistados. Com frequência, estes consideram que a rede SUS funciona, mas com sérias dificuldades, principalmente pela insuficiência de profissionais da área de saúde mental, o que dificulta a passagem do projeto terapêutico para a Unidade de Referência do paciente, quando este recebe a alta da internação.

Um olhar interdisciplinar para a doença mental

No Cândido, o tratamento do paciente envolve necessariamente um projeto terapêutico do qual participam uma equipe interdisciplinar. O foco principal deste projeto é o paciente, sendo a doença considerada um aspecto secundário, decorrente de múltiplos fatores inseridos em sua experiência social de vida. Neste contexto, os entrevistados lembram que as tecnologias terapêuticas utilizadas na instituição constituem instrumentos provisórios, que precisam ser adaptados para cada situação.

A escolha da melhor forma terapêutica é tomada pela equipe interdisciplinar, tendo em vista a análise específica de cada caso, o que envolve necessariamente conhecimento não só sobre o doente, mas também a respeito do seu modo de vida, seu trabalho, sua família, seu local de residência, entre outros fatores. A equipe interdisciplinar terá que decidir como intervir nesses aspectos, um procedimento que exige diálogo e comprometimento do paciente e de sua família. Nesse sentido, diversas estratégias podem ser configuradas no manejo do projeto terapêutico individual. Assim, o olhar para a doença mental é aberto, pressupondo reflexão e espaço para uma pluralidade de opiniões.

Os entrevistados acreditam que outras for-mas de medicina, além da convencional, podem ser utilizadas com sucesso no tratamento em saúde mental. No Cândido e na rede pública de Campinas são utilizadas acupuntura, homeopatia, fitoterapia e ginástica chinesa, entre outras formas terapêuticas não convencionais.

Um aspecto constantemente lembrado pelos profissionais de nossa pesquisa diz respeito à percepção do paciente como um ser integral, o que exige uma clínica que não se limita ao mode-lo de pronto-socorro. Este aspecto contrasta radicalmente com a perspectiva manicomial, na qual os pacientes eram nivelados em uma condição de submissão.

O ambiente do Cândido revela um aspecto bucólico, harmonioso e tranquilo, surpreendendo o visitante, por se tratar de um hospital com vários doentes mentais, alguns graves, circulando livremente em seu meio. Os tratamentos são facultativos e o paciente permanece no ambiente hospitalar somente se concordar em se comprometer com a proposta terapêutica. Nas oficinas terapêuticas, o ambiente é relaxado e descontraído. Na cantina, inteiramente organizada e servida por internos, o serviço parece perfeitamente adequado. Com relação a eventos sociais, são frequentemente organizados bailes e campeonatos esportivos, envolvendo pacientes, funcionários da instituição e membros da comunidade.

O Sistema colegiado de consulta e a equipe interdisciplinar

Um aspecto fundamental de organização do serviço terapêutico do Cândido refere-se à perspectiva interdisciplinar do cuidado. Todos os entrevistados reconheceram que, no atual momento da política de saúde pública, para se fazer a prevenção das doenças e a promoção de qualidade de vida, o trabalho em equipe interdisciplinar é a melhor forma possível. Este achado foi surpreendente, uma vez que esperávamos encontrar mais dissidências e conflitos, principalmente entre médicos que, neste modelo de tratamento, tiveram que abdicar de sua dominância tradicional e se conformar em ser apenas a expressão de uma especialidade entre outras.

O núcleo central do trabalho em equipe interdisciplinar, envolvendo diagnóstico, tratamento e alta do paciente, é constituído pelo médico, enfermeiro, psicólogo e terapeuta ocupacional. Esta equipe reúne-se pelo menos uma vez por semana, para decidir democraticamente sobre cada caso em tratamento. Esta forma de decisão é considerada melhor do que uma proveniente de um único profissional, uma vez que permite a ampliação da visão da realidade de cada indivíduo tratado.

Os profissionais que permaneceram no Cândido sentem que alcançaram um grau alto na escala de maturidade democrática, o que não significa dizer que não haja divergências. Quando elas ocorrem, o que é considerado normal, a decisão fica estabelecida pelo voto.

Nossos dados revelam relatos de dificuldades que a equipe interdisciplinar encontrou em relação a médicos e, em menor proporção, a enfermeiros que não foram capazes de se adaptar ao trabalho colegiado, em equipe, principalmente por conta de uma atitude autoritária, reforçada, no caso dos médicos, pelo processo de formação nas faculdades de medicina. Na maioria dos casos, as tentativas de converter o profissional dissidente para o novo paradigma fracassou, sendo que o resultado foi geralmente a sua remoção do serviço. Mesmo com a precaução de evitar a contratação de profissionais sem um perfil adequado para o serviço, ainda persiste uma alta rotatividade de médicos.

Se o poder de decisão de cada membro da equipe interdisciplinar é equivalente, o contrato de trabalho revela uma diferença fundamental. Por uma questão mercadológica, a carga horária do médico corresponde à metade em relação a dos demais profissionais. Isso significa que, pelo mesmo tempo de trabalho, o médico recebe o dobro dos demais profissionais da equipe interdisciplinar. Embora esse fato gere desconforto, a reivindicação por isonomia salarial não é considerada uma prioridade para os demais profissionais. Há um consenso entre estes de que o momento exige consolidação de conquistas importantes antes de se abordar este assunto.

Depois do médico, o profissional enfermeiro apareceu em segundo lugar como o mais despreparado em assuntos de saúde mental e em trabalho interdisciplinar. A formação clássica deste profissional tende para o positivismo mecanicista e para uma perspectiva autoritária do serviço hospitalar. No entanto, encontramos entre eles maior flexibilidade e capacidade de adaptação do que a encontrada entre médicos. Enquanto, entre estes últimos, a resistência às novas formas de tratamento e cura levava ao pedido de demissão, os enfermeiros que não puderam se adaptar de início, após algum tempo, começaram a incorporar a linguagem e as atitudes próprias da área de saúde mental.

Entre os psicólogos, encontramos um pro-fissional profundamente engajado no sistema de trabalho interdisciplinar, com pleno domínio dos conceitos e do jargão da perspectiva antimanicomial, de crítica à psiquiatria tradicional. É importante destacar que a formação destes profissionais inclui, nas melhores faculdades, uma postura fenomenológica aberta, com viés crítico ao positivismo. Algumas faculdades já incluem disciplinas de saúde pública, centrada na rede básica de serviços de saúde.

O terapeuta ocupacional é o mais novo pro-fissional da equipe interdisciplinar em saúde mental. A equipe reconhece em sua função uma contribuição significativa para a conquista da dignidade e auto-estima do paciente através de um ofício que lhe gere renda. O Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT) do Cândido abriga 12 unidades, com 280 oficineiros, que produzem produtos para venda no mercado formal, como móveis, alimentos, produtos agrícolas como hortaliças e ervas medicinais, peças e objetos de arte em madeira, papel, plástico e vidro. Todos os oficineiros recebem pelo seu trabalho de acordo com a produção e a venda. Atualmente, há uma fila de espera de pelo menos 2 anos para o ingresso neste serviço.

A Internação antimanicomial

A internação de pacientes no Cândido só ocorre em duas instâncias, a que envolve a crise psicótica aguda e a que envolve a crise por dependência de álcool ou drogas. Os primeiros são internados no Núcleo de Atenção à Crise (NAC), enquanto os segundos são internados no Núcleo de Atenção à Dependência Química (NADEQ). No município, existe, ainda, a internação para pacientes em crise psicóticas no CAPS 3, localizado na área urbana de Campinas, além do recur-so aos hospitais universitários da Unicamp e da Puc, que fazem parte da rede de cuidados em saúde mental e atuam com o mesmo princípio antimanicomial.

Nestas duas instâncias, o paciente deve idealmente permanecer internado o menor tempo possível, não mais do que 3 ou 4 dias. A prática revela, no entanto, um tempo maior em algumas situações. O NAC está organizado de acordo com dois tipos de situações: o NAC 1, quando o surto psicótico pode levar o paciente a colocar a si mesmo e aos outros em situação de perigo, e o NAC 2, um sistema aberto, no qual o paciente usufrui de total liberdade de ir e vir.

Diante da internação, toda a preocupação da equipe é no sentido liberar o paciente para, assim que ele sair do surto, promover o seu projeto terapêutico personalizado. Antes de dar alta, a equipe do NAC entra em contato com a equipe da unidade de referência do paciente, no bairro de sua residência. Nem sempre, no entanto, a realidade permite uma passagem tranquila, sem perda de comunicação, uma vez que a unidade de referência pode não ter condições de promover um cuidado efetivo em saúde mental.

Além do NADEC, os dependentes de drogas no município de Campinas podem também ser tratados no CAPS -AD, destinados a dependentes de álcool e drogas. Só o primeiro, no entanto, oferece a possibilidade de internação, com 10 leitos-noites.

Os profissionais do NADEQ consideram que a questão da dependência química e alcoólica assume proporções que transcendem em muito a capacidade do Cândido de lidar com a situação. O sistema de internação, dirigido apenas às pessoas adultas, que por vontade própria solicitam ajuda para poder parar com o uso de álcool e drogas, acaba recebendo indivíduos, de uma forma não espontânea, como, por exemplo, pacientes que chegam sedados, trazidos pelo Samu. Como Campinas não conta com outra unidade de internação própria para usuário de drogas, então a Central de Vagas recorre ao NADEQ. Na maioria das vezes, tais pacientes necessitam de monitoramento, com cuidados intensivos, durante 24 horas e o NADEQ se vê totalmente despreparado para lidar com a situação.

Outra situação considerada extremamente difícil para a equipe do NADEQ é a admissão de pessoas sob mandado judicial, ou seja, usuários de drogas envolvidos em atividades criminosas. Tais casos ameaçam ainda mais a organização do serviço, principalmente porque eles não envolvem comprometimento do paciente com o tratamento. A admissão dessas pessoas cria um clima de suspense, tanto para a equipe, quanto para os demais pacientes, para quem o serviço foi criado. Quando pacientes deste tipo são adolescentes, o estresse causado na equipe do Cândido é ainda maior.

Outro aspecto importante da organização do sistema de internação no Cândido, em oposição ao modelo manicomial anterior, está na completa separação entre o doente mental e o usuário de álcool ou droga. A equipe do Cândido considera que esta separação é importante uma vez que se trata de pacientes com características distintas.

As residências terapêuticas

O Cândido e a Coordenadoria da Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde concretizaram um projeto de desospitalização radical, que iniciou a montagem de residências terapêuticas, com início em 2005. Em 2009, os últimos dos 166 doentes mentais internados no Cândido foram transferidos para uma dessas 31 repúblicas, que recebem constante supervisão e assistência das equipes do Cândido. Permaneceram internados no Cândido oito pacientes idosos, que, embora não tenham problemas específicos de doença mental, possuem total dependência de cuidados médicos e de enfermagem, sem condições de viver em uma moradia.

Dessas 31 residências, 6 delas estão sob o cuidado direto do Núcleo Clínico do Cândido, ou seja, abrigam pacientes que necessitam de cuidados clínicos especiais devido à idade avançada e a limitações para caminhar, tomar banho e se alimentar. Tais moradias estão localizadas nas proximidades do serviço para facilitar a assistência, enquanto as 25 restantes estão localizadas em distintos bairros da cidade.

Os dados do Cândido revelam vários casos de sucesso terapêutico relacionado com o fato de o paciente estar morando em uma residência e não mais internado em hospital. Um dos casos refere-se a uma senhora que, devido à dificuldade de andar, recebia suas refeições na cama diariamente. Na residência, ela recusou esse tipo de atenção e pediu ajuda para sair do leito, porque queria se sentar à mesa junto com os demais.

Outro caso, de uma senhora idosa que, enquanto internada no Cândido, fazia suas necessidades fisiológicas onde estivesse, fora do vaso sanitário. Quando ela foi morar na residência, para surpresa de todos, ela não só passou a usar o vaso sanitário como vigiava o movimento de entrada e saída do banheiro, fiscalizando a limpeza e a ordem.

O sucesso do projeto dependeu, em grande medida, da acolhida por parte da vizinhança da residência De um modo geral, a equipe percebeu que, quanto mais elevado o nível social da comunidade, maior era a resistência a estabelecer um convívio positivo com os habitantes da residência terapêutica. Os bairros que melhor acolheram foram aqueles de nível social médio-baixo e baixo. Nos bairros de nível médio para cima, a reação da vizinhança foi no sentido de total rejeição à república.

Os profissionais realizaram um longo trabalho de informação e de orientação sobre o manejo do doente mental antes de estabelecer a república no bairro. Eles explicaram para a vizinhança que é perfeitamente possível conviver com o doente mental, pois ele faz tratamento e tem o acompanhamento constante da equipe do Cândido. A população foi tranquilizada, ao se expor que os pacientes eram pessoas de bom caráter e não fariam mal a ninguém. Explicaram também que eles sofreram muitos anos de preconceito e segregação, mas que agora o Brasil inteiro estava libertando esses doentes.

No distrito de Sousas, onde está o Cândido, os vizinhos foram informados sobre os tipos de doenças e como lidar com elas. Hoje, eles conhecem os pacientes pelos nomes e sabem um pouco da doença de cada um. Se eles percebem que um paciente surtou ou qualquer outro movimento estranho narepública, eles telefonam para o Cândido a qualquer hora e o atendimento é sempre imediato.

Após montar as moradias no distrito de Sousas, a equipe decidiu montar outras residências, assim como outros CAPS, em outros bairros da área urbana de Campinas, em uma tentativa de evitar a criação de uma mini-comunidade de doentes mentais em um só bairro. Um dos CAPS foi montado no bairro Nova Campinas, de classe média-alta. Entretanto, a rejeição foi muito grande neste local, a tal ponto de haver um processo judicial para impedir a permanência desse serviço.

A equipe do Cândido também vem identificando atitudes preconceituosas de profissionais de serviços de saúde em geral, sejam eles de unidades básicas, prontos socorros ou hospitais gerais. Este problema insere-se em outro ainda maior que é a integração do doente mental na comunidade. Em tal contexto, o doente mental é percebido como alguém que perturba e desafia a ordem das instituições6. Nesse sentido, como muito bem lembrou Douglas7, ele representa um perigo natural, que confronta a moral e os bons costumes.

O Candido Escola: a residência médica em psiquiatria

Em 2005, o Cândido obteve a aprovação pelo Ministério de Educação do projeto de especialização em psiquiatria, junto à Comissão Nacional e Estadual de residência médica, evoluindo de campo de estágio para o de escola. Trata-se de um nível de formação que prevê 3 anos de atividade para residentes.

Em 2008, o Cândido ofereceu 12 vagas para residência: 4 para R1, 4 para R2 e 4 para R3. O processo de formação desses profissionais prevê, inicialmente, estágio obrigatório no Núcleo de Atenção à crise (NAC), que permite o contato com o paciente grave; e com o CAPS AD e NA-DEC, que permitem um contato mais prolongado com o doente.

A trajetória do residente segue, no segundo ano, com uma passagem pelo Centro de Saúde Orozimbo Maia, da Rede, que permite, através do matriciamento, a função de apoiar as Unidades que não têm profissionais de saúde mental. No terceiro ano, como R3, o profissional entra em contato com o NASF - Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o que inclui um processo de interconsultoria entre o nível ambulatorial e o hospitalar. Neste estágio, o residente adquire especialização em geriatria, dependência química entre adolescentes ou adultos e psiquiatria forense, tudo no contexto do CAPS.

Nossos entrevistados consideram que a formação de médicos residentes em Psiquiatria é bem abrangente, permitindo-lhes a oportunidade de se especializarem no modelo de assistência psiquiátrica, que é guiado pelos ideais da Reforma, com passagem obrigatória pela Atenção Básica. No sentido contrário ao que ainda ocorre em outros Programas hospitalares, como o do Juqueri, que constituiu o modelo de internação manicomial anterior, ainda resistente a uma implantação total da formação destinada ao trabalho em rede, com saúde mental pública.

Conclusão

Em aspectos importantes do processo de trabalho, o Cândido antecipou a política do SUS e vem contribuindo para a implementação desta, com experiências importantes na dinâmica do trabalho interdisciplinar. Vimos, nesse sentido, que a tomada de decisão da equipe de profissionais está se afastando do sistema de poder e dominância da medicina psiquiátrica tradicional para aproximar-se de um sistema colegiado, que inclui, basicamente, além do médico, profissionais da psicologia, da enfermagem e da terapia ocupacional. Trata-se de um sistema aberto que, teoricamente, exige a participação de todos estes profissionais, em condição de igualdade, no processo de tomada de decisão, envolvendo aspectos administrativos, clínicos e terapêuticos.

Nossos dados mostram, nesse sentido, que o sistema colegiado de consulta entre os profissionais do Cândido vem operando de um modo eficiente. As reuniões da equipe são semanais e, nelas, tanto as questões administrativas como as relacionadas com o cuidado terapêutico são decididas de um modo democrático e aberto. Participamos de algumas dessas reuniões e constatamos que há um consenso inquestionável sobre as regras democráticas, que regem a organização de cada um desses eventos.

A maior dificuldade encontrada no andamento do sistema colegiado de consulta entre profissionais do Cândido está na atitude conservadora do médico e, em menor escala, do enfermeiro novato que, muitas vezes, não conseguem abdicar de uma postura dominante e centralizadora de poder, adquirida nos anos de formação nas faculdades de medicina e de enfermagem. De um modo geral, os médicos e os enfermeiros que permaneceram no serviço foram aqueles que aceitaram as novas regras, razão pela qual eles se consideram integrados na equipe.

Os profissionais entrevistados reconhecem que o serviço do Cândido oferece um suporte imprescindível para a rede pública, que é percebida como um sistema que vem evoluindo satisfatoriamente, embora se reconheça a sua notória insuficiência de recursos humanos, principalmente na área de saúde mental. Além disso, muitas unidades ainda não receberam equipes de saúde mental, ou estão dissociadas do circuito de matriciamento, que permite lidar com esta questão. Esta limitação fica evidente quando a equipe do Cândido, após a alta do paciente, tenta passar o projeto terapêutico individual para a sua unidade de referência. O apoio financeiro insuficiente do governo federal é considerado o principal obstáculo para o aprimoramento do sistema.

A internação de pacientes é um aspecto que ainda permanece nebuloso na reforma psiquiátrica. O movimento de desospitalização levou a uma aversão radical ao antigo processo de confinamento e às técnicas repressivas, sem deixar uma proposta clara em seu lugar. No Cândido, a posição que contempla a possibilidade de internação em casos especiais e por tempo limitado vem prevalecendo diante de outras posições mais radicalmente contrárias a qualquer tipo de internação. Pelo fato de não haver qualquer outra instância de internação no SUS, o Cândido sofre grande pressão da sociedade para que interne pacientes intoxicados com álcool e drogas químicas por um tempo maior do que o previsto, principalmente aqueles que chegam à instituição sob mandado judicial. Vimos que esse tipo de situação tem produzido considerável estresse nos profissionais envolvidos, uma vez que o serviço não conta com qualquer preparo para lidar com este tipo de situação, principalmente quando envolve adolescentes.

Os profissionais do Cândido avaliam que o processo de internação, neste novo paradigma da saúde mental pública, é um fenômeno completamente diferente da antiga internação manicomial. A principal diferença encontra-se no fato de que a preocupação constante no primeiro caso é no sentido de promover a alta do paciente, sendo que o envolvimento e o consentimento do paciente em seu projeto terapêutico são considerados aspectos fundamentais.

No antigo equipamento de saúde mental pública, o indivíduo dependente de drogas era internado no hospital psiquiátrico e tratado sob os mesmos moldes do doente mental. Porém, os profissionais do Cândido defendem uma abordagem diferenciada para a dependência química, que con-temple a especificidade desta situação em relação à internação de paciente em crise psicótica.

Nossos entrevistados consideram que o aprimoramento dos serviços oferecidos pelo Cândidodepende de um processo de circulação comunicativa voltada muito mais para fora, em direção à rede de serviços do SUS do que para dentro da instituição. Em sintonia com esta representação, o desenvolvimento da saúde mental no SUS passa inevitavelmente pelo aprimoramento do processo comunicativo entre os serviços, que se distinguem por abrigar tecnologias terapêuticas com graus diferenciados de complexidade. Desse modo, o sistema compreende uma diferenciação hierárquica, abrangendo estruturas com maior ou me-nor grau de complexidade tecnológica de cuidado. Nesse sentido, os entrevistados percebem que, cada caso requer um determinado tipo de atenção, envolvendo uma variedade de estruturas.

Esta representação exclui a possibilidade do Cândido crescer desproporcionalmente em relação à rede de serviços em que se insere. Neste sentido, a expectativa dos profissionais entrevistados encontra-se muito mais na melhoria do serviço em saúde mental externo ao Cândido do que dentro dele.

É importante destacar aqui o fato de que a reforma psiquiátrica e o processo de desospitalização foram projetados principalmente tendo em vista o quadro psicótico. No entanto, a saúde mental requer uma ampliação deste foco, no sentido de abranger situações menos agudas como, por exemplo, a depressão e a neurose. Recentemente, tem havido um crescente reconhecimento entre especialistas em saúde mental de que Centros de Convivência e Oficinas de Trabalho são absolutamente necessários para promover saúde mental. Os primeiros, para promover socialização, e os segundos, para permitir alguma renda aos indivíduos. Os nossos entrevistados foram unânimes em reconhecer tal condição.

Muito poucos municípios têm desenvolvido Centros de Convivência integrados à rede de cuidados em saúde mental. Este processo está apenas começando e, mesmo Campinas ainda não conta com profissionais plenamente integrados neste tipo de serviço. Um aspecto interessante na concepção desses espaços, nas representações dos profissionais do Cândido, é que, neles, a fronteira entre indivíduos normais e doentes encontrase completamente diluído. Trata-se de um espaço que oferece entretenimento, lazer, esporte, excursões, bailes e outras atividades dirigidas a toda a comunidade do bairro, envolvendo inclusive o doente mental. Ainda que esta perspectiva seja, até certo ponto, implementada no Cândido, a sua integração com o SUS, em Campinas, no entanto, andou pouco mais do que do plano da ideia.

Além dos programas de tratamento, apoio e internação em saúde mental, o Cândido desenvolve três programas considerados da maior importância, por serem os únicos disponíveis na região de Campinas e um dos únicos em desenvolvimento no Brasil: as Oficinas de Trabalho, as Residências Terapêuticas e a Residência em Psiquiatria.

Os nossos dados mostraram que o Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT), não obstante a sua importância terapêutica, enfrenta barreiras consideráveis no dia-a-dia, relacionadas com a insuficiência de recursos humanos e financeiros, o que resulta em uma fila de espera de aproximadamente dois anos. Além disso, nem todos os pacientes apresentam capacidade mínima para poder se integrar a uma oficina, que depende em grande medida do mercado para vender seus produtos e gerar renda. Alguns pacientes não conseguem dar determinado acabamento em uma peça; outros, não apresentam aparência ou padrão de higiene que permitam, por exemplo, cozinhar e preparar alimentos. Em tal contexto, o doente mental, excluído pela família e pela comunidade pode se ver excluído também pelas oficinas terapêuticas do Cândido, o que poderia reforçar ainda mais o estigma, dificultando ou até mesmo impossibilitando a sua reabilitação.

Vimos que o Serviço de Residências Terapêuticas implementado pelo Cândido, em parceria com a Prefeitura, assiste os moradores em todas as suas necessidades de saúde. De um modo geral, os membros da equipe interdisciplinar relataram vários casos de sucesso terapêutico relacionado com o fato do paciente estar morando em uma residência e não mais internado em hospital. Outro aspecto que, não sem dificuldade, encontrou algum sucesso foi o trabalho desenvol-vido junto às comunidades onde as "repúblicas" foram instaladas, para que elas pudessem aceitar o convívio com pacientes de doença mental.

O Programa de Residência em Psiquiatria desenvolvido pelo Cândido foi aprovado pela CAPES em 2005. Este serviço foi considerado por nossos entrevistados como uma base para a construção de um novo padrão de medicina psiquiátrica, qual seja, um profissional preparado para a saúde mental pública. Nesse sentido, o programa pretende corrigir as falhas na formação acadêmica do médico, excessivamente centrado em tecnologias complexas especializadas em uma dimensão unicamente biológica. O objetivo principal da residência é consolidar uma visão ampliada de saúde e doença, para a qual converge uma perspectiva terapêutica, necessariamente interdisciplinar, com passagem obrigatória pela Atenção Básica. Neste contexto, o paciente é percebido como um ser integral, a doença como necessariamente proveniente de múltiplas causas e o tratamento como um processo de negociação entre a equipe interdisciplinar e o paciente.

Os nossos dados mostraram que a residência em psiquiatria do Cândido é pioneira no Brasil e vem despertando interesse em médicos de várias partes do País, fato este que está exigindo um processo seletivo cada vez mais rigoroso, com uma proporção crescente de candidatos em relação ao número de vagas.

Ao finalizar este artigo, é interessante lembrar que, devido ao fato da reforma psiquiátrica fazer parte de um processo aberto, em construção, a avaliação de serviços públicos específicos, envolvendo a sua conexão com a rede de cuidados em nível municipal e com o SUS, é fundamental para o desenvolvimento do sistema de saúde, assim como de seu controle pela sociedade. Este estudo é uma contribuição reflexiva para que este processo, necessariamente aberto e experimental, possa fluir com mais segurança e competência.

Colaboradores

MS Queiroz e LA Delamuta participaram igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo.

Artigo apresentado em 01/03/20101

Aprovado em 13/04/2010

Versão final apresentada em 19/04/2010

  • 1. Onocko-Campos R, Furtado JP. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2006; 22(5):1053-1062.
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  • 5. Onocko-Campos R, Furtado JP. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2006; 22(5):1053-1062.
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  • 7. Douglas M.Purity and Danger Harmondsworth: Penguin Books; 1966.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011

Histórico

  • Revisado
    13 Abr 2010
  • Recebido
    01 Mar 2001
  • Aceito
    19 Abr 2010
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