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Debatendo alguns desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira

Discussing some challenges facing Brazilian Psychiatric Reform

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Ana Marta Lobosque

Residência Multiprofissional em Saúde Mental, Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. anamarta.lo@oi.com.br

Já no resumo de seu texto Ana Pitta interroga: estaria ameaçada ou não a vitalidade da Reforma brasileira? Para avançar em tal indagação seria preciso, a meu ver, caracterizar de onde vem e em que consiste essa vitalidade. Ela se relaciona, considero, com o tipo de questões com as quais lidamos e com a maneira ousada pela qual as formulamos: as relativas à experiência da loucura.

Tal experiência, não consideramos apenas, ou essencialmente, como perturbações cerebrais ou psicológicas daqueles que a vivenciam, mas como um risco da condição humana: um certo impasse da dimensão ficcional que necessariamente constitui nossa forma de pensar e de conhecer. Inventamos o pensamento, a linguagem... e eis que, de repente, essa invenção deixa de ser socialmente partilhada para assumir o caráter solitário e intransmissível daquilo que a psicopatologia denomina como neologismo, delírio, estereotipia. Ou, num outro exemplo, consumimos as chamadas substâncias psicoativas, muitas vezes como forma agradável de laço social, e eis que o seu uso, sobretudo daquelas mais nocivas, torna-se para alguns uma ruptura dos laços que nos ligam às pessoas e à vida, isolados como restos nas ruas.

Participar do movimento antimanicomial significa compreender que para lidar com essas situações-limite são inúteis as estratégias autoritárias ou coercitivas. Por mais danosas que sejam, por mais que revelem nossa exposição a algo que nos ultrapassa e nos domina, revelam algo em nós que não obedece, que não se dobra a nenhuma ordem ou imperativo, alguma coisa que nos retira da condição de "corpos dóceis e úteis" (para usar a expressão de Foucault), apontando alguma coisa de incurável que nos habita. Desde as instituições totais até a guerra às drogas, passando pelas várias abordagens tecnicistas, nada disso oferece saída, nem cria possibilidades de laços e de vida. Há que provocar desejos, endereçar convites, tecer redes - e a este fim se destinam -, assim compreendo os princípios, as ações e os equipamentos que compõem a Reforma Psiquiátrica.

Feitas estas considerações iniciais, inicio o diálogo com o texto de Ana Pitta abordando os três pontos que me parecem essenciais para a vitalidade da Reforma. São eles: a concepção das redes de cuidado; as questões relativas à formação; a relação da Reforma com os movimentos sociais.

A concepção das redes de cuidado

A clareza conceitual na concepção das redes parece-me essencial ao êxito na sua implantação. Para cuidar em liberdade é preciso que essas redes sejam descentralizadas, ou seja: por um lado, não devem organizar-se em torno de um dispositivo centralizador, qualquer que seja; por outro, devem estender-se na tessitura do espaço social, tornando-se cada vez menos técnicas e menos sanitarizadas.

Elenco a seguir alguns dos principais desafios para uma rede assim concebida.

Um deles é o desafio da atenção à crise. Ana Pitta observa, com pertinência: não podemos acolher os usuários em situação de urgência, se os nossos serviços fecham às 17 horas. Contudo, há que declarar em alto e bom som o nosso propósito efetivo de extinção dos hospitais psiquiátricos e instituições afins. Eles não fazem parte da rede tal como a concebemos: não vale encaminhar-lhes, de forma implícita ou não, aqueles casos que "não damos conta". Tal constatação nos leva, por um lado, à importante questão da implantação dos CAPS III (Centros de Atenção Psicossocial), cuja escassez em território brasileiro é um dos pontos fracos da nossa Reforma. Leva-nos, por outro lado, a pensar que a crise, dependendo de sua gravidade, do contexto sócio-familiar, do vínculo entre usuário e equipe, pode também ser acolhida em diferentes pontos da rede: não só nos CAPS, mas na atenção básica, nos centros de convivência, e assim por diante. Seja como for, importa sustentar o que se segue: não há Reforma Psiquiátrica efetiva sem garantia de atendimento à crise.

Outro desafio fundamental é a inclusão da atenção básica em nossa rede de cuidados. Ela representa o espaço mais próximo do usuário no âmbito do território. Cumpre assegurar o direito de todo cidadão - sem excluir, é claro, o portador de sofrimento mental - ao acolhimento, ao vínculo e à responsabilização do cuidado com sua equipe da unidade básica. Aqui, a parceria com os colegas do PSF (Programa de Saúde na Família) é fundamental, só se faz pela oferta de formação elementar na área, de matriciamento pelas equipes de Saúde Mental, de retaguarda pelos CAPS quando se requerem cuidados intensivos, e assim por diante. Um índice expressivo da presença real da Reforma num território dado se expressa quando o portador de sofrimento mental é, como qualquer outro usuário, acolhido e escutado pela equipe do PSF ao chegar à unidade básica, e encaminhado devidamente, se necessário, à equipe de Saúde Mental. E, vice-e-versa, quando o seu acompanhamento pela Saúde Mental, seja na própria unidade básica seja no CAPS, não desresponsabiliza o PSF dos cuidados que lhe cabe oferecer.

Enfim, cito mais um desafio: aquele dos passos "além da saúde", para usar uma expressão da Linha-Guia de Saúde Mental de Minas Gerais. Trata-se daquelas ações e equipamentos que não são, sensu strictu, sanitários, mostrando-se, todavia, essenciais à saúde. Incluem-se aqui as moradias - concebidas não como serviços de Saúde, mas sim como casas onde vivem pessoas, precisando ou não de algum grau de proteção, mas jamais de tutela. Mais ainda, porém, são de importância decisiva os Centros de Convivência, os Grupos de Produção Solidária, que desenham na cidade novos recortes e aberturas para o trânsito do portador de sofrimento mental entre nós. A geração de renda, aliás, embora possível e necessária, não pode ser o objetivo primeiro: as trocas em jogo não são primordialmente aquelas de compra e venda do mercado. Trata-se, sim, de produzir objetos e coisas - mas objetos e coisas cuja função precípua é a de tecer laços: laços afetivos, amorosos, políticos, sociais, em contínuo entrelace com aqueles da cidade. Finalmente, incluem-se nos passos "além da saúde" as propaladas, porém pouco executadas, parcerias intersetoriais, com a educação, a justiça, os direitos humanos e a assistência social.

Um breve comentário, de passagem: para o enfrentamento desses e de outros desafios, não se pode atribuir ao CAPS o papel de organizador do território. O CAPS, por motivos diversos, tem certa tendência de fechar-se em si mesmo, que só se pode combater quando o convocamos desde fora para o âmbito mais amplo da rede. A organização do território não lhe pode ser delegada pelo gestor sob pena de colocá-lo num lugar centralizador que o captura: cumpre convidar os diferentes pontos da rede como atores da territorialização que buscamos.

A formação

A questão da formação, também mencionada no texto de Ana Pitta, parece-me requerer um importante acento. Sabemos da profunda distância ainda existente entre a Reforma Psiquiátrica e a universidade. A formação permanente é indispensável aos gestores, aos trabalhadores e aos usuários: na sua ausência, permanecem impossibilitados de problematizar as questões advindas das inusitadas práticas que exercem. As lacunas não preenchidas pelas formações básica e permanente acabam por ser mal e mal supridas no âmbito da pós-graduação, impedindo que se constitua um nível realmente avançado de formação.

Ora, convém examinar estes problemas da formação, dentre outros aspectos, à luz do estado de produção teórica no âmbito do saber que se pretende central na Saúde Mental: o saber psiquiátrico. Pode-se dizer que a psiquiatria se debate num impasse: por um lado, sofre as exigências de cientificidade que lhe são feitas enquanto especialidade médica; por outro, sem jamais conseguir atendê-las, procura persuadir-se de que o faz. Leia-se, por exemplo, um capítulo sobre a transmissão genética dos distúrbios psíquicos em qualquer moderno manual: de fato, são escrupulosamente científicas as exigências para explicar a hereditariedade de determinado distúrbio. Ora, essas exigências requerem uma definição rigorosa do distúrbio que se pretende pesquisar - e a classificação dos distúrbios - quanto mais se esforça para favorecer a clara e inequívoca identificação de cada um deles, tanto mais lineariza e falsifica os critérios que a deveriam propiciar.

Essa condição atual da disciplina psiquiátrica tem um elemento muito perigoso para a Reforma, se nos deixarmos embalar por seu ideal de cientificidade. Mas tem também, paradoxalmente, um elemento positivo: ao percebemos quão infecundo é o impasse em questão, afirma-se a necessidade de prosseguir a formação em Saúde Mental numa direção bem diversa. Aquilo que aprendemos nos serviços abertos, os múltiplos saberes que neles se produzem, tem uma realidade clínica e uma pertinência política indubitáveis, reconhecida pelos atores envolvidos: trata-se de ajudá-los a sustentar a dimensão de verdade que aí encontram, articulando marcos conceituais e campos de prática.

Reforma Psiquiátrica e movimento social

Seria muito difícil para qualquer pessoa vinculada à Reforma negar a importância do movimento social em sua construção. O texto de Ana Pitta aponta, ao longo das últimas décadas, vários eventos, encontros, manifestações, produzidas por tal movimento ou a ele vinculadas. Não creio, entretanto, que reine entre nós o mesmo consenso a respeito do que seja um movimento social.

Em primeiro lugar, um movimento social, que se expressa em manifestações da mais viva espontaneidade, exige todavia, para produzi-las, uma militância rigorosa, que envolve trabalho, disciplina e organização. Convenhamos, afinal não nasce ex-nihilo a marcha dos usuários em Brasília ocorrida em 2009, assegurando a IV Conferência Nacional de Saúde Mental.

Essa militância requer um espaço de atuação singular, com a lógica que lhe é própria, que difere da política, por melhor que seja, feita no âmbito das instituições. No movimento social, a relação entre os técnicos, os usuários e os familiares, exterior ao espaço dos serviços e independente das condições ditadas por eles, não é apenas a do cuidado, nem a do afeto: trata-se de um laço propriamente político, cuja construção democrática é um desafio tão grande quanto inesquecível é o seu aprendizado.

Um movimento social, mesmo quando parceiro do poder público e de suas instituições, deve sustentar a independência arduamente construída fora deles. Ora, tal independência é facilmente confundida com radicalismos ou implicâncias, quando não compreendemos a sua necessidade. E qual é tal necessidade, afinal? Consiste justamente em preservar uma radicalidade, entendida como aquilo que está na raiz, na razão de ser de uma luta; de não poder perder de vista princípios, posições, e até mesmo certas palavras, que sustentam a nossa concepção da loucura como experiência humana e a defesa de uma outra forma de convívio com ela. Por exemplo, afastamo-nos do movimento social quando aceitamos, embora veladamente, a presença do hospital psiquiátrico, seja na clínica, seja no ensino; ou quando preferimos não usar o termo "antimanicomial", sob a alegação de que estaria ultrapassado; ou quando não escutamos como se torna muito maior o relevo da fala de um usuário ou familiar quando parte do diálogo construído cotidianamente com seus pares.

Seria ridículo exigir que todos aqueles que defendem a Reforma Psiquiátrica sejam militantes de movimentos sociais organizados, ou que não possam criticar erros eventuais desses movimentos. Contudo, seríamos ignorantes ao menosprezá-los. Cumpre reconhecer, levando em conta as dificuldades que enfrentam, e valorizando as conquistas que promovem, sua importância fundamental. Afinal, não nasce de outra fonte senão esta - a dos movimentos sociais - a poderosa vitalidade da Reforma Psiquiátrica brasileira!

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    Discussing some challenges facing Brazilian Psychiatric Reform
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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