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Uma contribuição antropológica sobre o apoio social

An anthropological contribution to social support

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Uma contribuição antropológica sobre o apoio social

An anthropological contribution to social support

Denise Martin

Programa de Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade Católica de Santos. demartin@unisantos.br

O texto de Canesqui e Barsaglini é estimulante e provocador. Inicialmente, porque se propôs a investigar o tema do apoio social na saúde, na doença e no cuidado, não só no seu uso e relações ao longo de um período extenso (1993 a 2005), mas principalmente nas conexões teóricas relacionadas ao seu uso em pesquisas nas Ciências Sociais e Humanas.

Ao analisar o apoio social em relação a teorias e autores, várias questões emergem, pela pertinência e complexidade do objeto de estudo.

Embora os estudos etnográficos estejam pouco presentes nesta revisão, destacarei dois pontos nos quais a Antropologia pode contribuir para o debate: a noção de apoio social e os estudos que destacam o individualismo como característica das sociedades contemporâneas.

Como mostraram as autoras, o conceito de apoio social ainda é mal definido e pouco elaborado teoricamente.

Embora pareça ao senso comum um conceito aceito, uma vez que se associa à idéia de auxilio e proteção, não é neutro, como se pudesse se encaixar em qualquer situação. Muito pelo contrário, seu uso está relacionado a questões políticas, econômicas, decisões e estratégias, principalmente no campo da saúde coletiva.

A Antropologia se fundou no reconhecimento do outro e a relativização é um de seus exercícios mais freqüentes. É necessário deslocar a associação generosa do conceito de apoio social e buscar um certo distanciamento, no qual a naturalidade do conceito revela-se como uma construção histórica. As autoras mostraram com clareza na introdução esta questão.

Falar sobre apoio social implica em explorar a sua complexidade.

Inicialmente, porque a palavra social traz consigo, embora não explicitamente, uma concepção de sociedade. Assim, uma abordagem sociológica, antropológica ou da psicologia social, centrada em um determinado autor, tem consequentemente uma teoria social, o que pode ser desconsiderado por pesquisadores que utilizam o termo somente como uma variável a ser mensurada. Além disso, a abordagem teórica escolhida direciona o olhar para um determinado plano da realidade, como citado pela literatura nacional, onde se observa a politização do apoio social. Desta forma, tratar o apoio social como algo genérico revela uma visão ingênua de sociedade, sem considerar o contexto político, econômico e cultural no qual está inserido. A falta de consenso sobre o conceito pode ser expressão da falta de elaboração teórica.

Um outro ponto que merece destaque é a presença, no texto, de palavras e referências a valores individualistas, tais como: defesa individual, racionalidade individualista, fragmentação do tecido social... Em contraposição, há também referências a termos como solidariedade, integração social, reciprocidade e comunidade. Embora utilizados em diferentes partes do texto e referindo-se a diversos autores e teorias, é possível realizar um exercício de reflexão sobre o significado desta oposição implícita no texto: por um lado, uma concepção individualista, e por outro, uma societária (no sentido de coletividade). Os estudos oscilam entre uma e outra tendência, muitas vezes criticando o individualismo como impeditivo ou dificultador do apoio social, e estratégias coletivas como promotoras de saúde e cuidado.

Estas concepções trazem consigo também idéias sobre a sociedade, algumas vezes estereotipadas ou mal formuladas. As análises sobre o individualismo nas sociedades contemporâneas, teorizadas por inúmeros autores, são importantes para uma compreensão global das dinâmicas sociais. Segundo Ehremberg1, as transformações do século 20 resultaram num individualismo no qual não há garantias para o sujeito além dele mesmo. A defesa da autonomia e da liberdade tiveram muitas conseqüências, entre elas, um individuo fragilizado e, consequentemente, deprimido. O autor defende que, no caso da sociedade francesa, o individualismo também pode levar as pessoas ao sofrimento psíquico.

A Antropologia pode contribuir para este debate retomando um tema clássico que é a tensão entre indivíduo e sociedade. Pensar o apoio social nesta perspectiva implica em considerar o quanto uma sociedade ou grupo valoriza o indivíduo ou a coletividade.

Segundo Seeger et al.2, existem sociedades que constroem sistematicamente uma noção de indivíduo onde a vertente interna é exaltada (caso do Ocidente) e outras onde a ênfase recai na noção social de indivíduo, quando ele é tomado pelo seu lado coletivo: como instrumento de uma relação complementar com a realidade social caso das sociedades tribais.

Não podemos tomar o individualismo acima descrito como uma característica de todas as sociedades ocidentais e nem como se todas fossem homogêneas. As sociedades contemporâneas urbanas também não se mostram idênticas ou monolíticas no desenvolvimento do individualismo, como mostrou Velho3. É preciso ter muito cuidado ao transportar idéias e conceitos que são válidos para um determinado contexto sociocultural para outro. O dialogo entre teorias em contextos diferentes precisa considerar o quanto elas se aproximam ou não dos locais onde se realizam pesquisas. O conceito de apoio social, ao servir para todo tipo de objeto de pesquisa, revela uma plasticidade que pode significar o esvaziamento conceitual, identificado pelas autoras.

Além desta divisão em sociedades que privilegiam mais ou menos o indivíduo de diferentes formas, há ainda uma outra questão que merece destaque e que os estudos etnográficos têm muito a contribuir: a dimensão físico moral do sofrimento humano, tratada por Duarte4.

As autoras criticaram estudos em que o apoio se resume a experiências subjetivas e também a ausência da contribuição da cultura no debate.

Como ressaltaram, não se pode considerar o apoio social como algo dado, como se pelo simples ato de existir já significasse um efeito positivo em quem o recebe. É necessário problematizá-lo, verificar contradições, limites e possibilidades.

Em estudo etnográfico realizado com mulheres com diagnóstico de depressão em tratamento no município de Embu, grande São Paulo, observou-se comportamentos distintos em relação a este sofrimento5. Familiares próximos, parentes e vizinhos também elaboravam suas justificativas para a experiência das mulheres com depressão. O termo "mulher deprimida" neste local tinha dois significados.

"Depressão verdadeira": quando a mulher sofreu uma perda (de um filho por assassinato, por exemplo). Este sofrimento era reconhecido como verdadeiro pela comunidade. A doença era compreendida e justificada. Estas mulheres eram consideradas vítimas de uma sociedade violenta e desigual e a doença era uma consequência do sofrimento que passaram. Assim, recebiam o apoio de amigos, parentes e vizinhos.

Havia também situações em que o apoio era parcial, onde somente algumas pessoas compreendiam o sofrimento destas mulheres. Para outras, estar com depressão dependia da vontade e, portanto, era moralmente condenável, como nos casos de brigas conjugais e traições. Embora essas mulheres tenham revelado experiências de vida notavelmente difíceis, como os problemas de relacionamento com o companheiro, esperadamente violento no trato, ou como os problemas com a distribuição local de drogas, igualmente pautada pela extrema violência e crueldade, o seu sofrimento não era habitualmente reconhecido como uma doença pela vizinhança. Sua condição ora era descrita como preguiça, ora como loucura, ora como fingimento. Elas não obtinham apoio entre parentes e conhecidos e frequentemente sofriam solitariamente. Neste caso, a depressão era considerada como questão moral, não como doença. Era a "falsa depressão".

A depressão era tratada como um termo empregado como divisor de comportamentos aceitáveis e criticáveis, havendo um deslocamento de significações. Havia a depressão legítima e a falsa, esta servindo para mascarar eventos e comportamentos pessoais imperfeitos ou localmente indesejáveis. Este estudo revelou percepções de depressão, das mulheres e da comunidade, fortemente ancoradas na cultura em que estavam inseridas: pobre, violenta e desigual.

Estas duas situações, identificadas pela etnografia, contribuem para pensar o apoio social. Ter família e vizinhança por perto não significa, necessariamente, ter apoio social, como foi mostrado. As relações sociais, quando tratadas considerando a cultura, mostram que há um sistema simbólico no qual se elaboram os significados, incluindo o que é considerado aceitável e inaceitável, moral e imoral, entre outros. Neste nível, a profundidade e o detalhe da etnografia permite perceber nuances de comportamentos, ora favoráveis, ora desfavoráveis, problematizando o apoio social.

Desta forma, é importante destacar, num primeiro momento, em que plano ele se encontra. Se é institucionalizado ou não, o grau de participação da família e da vizinhança e o envolvimento do indivíduo que recebe este apoio.

Num segundo momento, é preciso ter cuidado para não descontextualizar nenhum destes planos. Associações simplificadoras, nas quais se descaracteriza qualquer um destes níveis, tendem a trazer resultados estereotipados da realidade pesquisada. As ciências sociais e humanas, com seu arcabouço teórico, tem toda a condição de elevar o patamar da discussão sobre o apoio social em suas diferentes abordagens. O trabalho das autoras é um exemplo.

  • 1. Ehremberg A. O culto da performance Da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida (SP): Idéias e Letras; 2010.
  • 2. Seeger A, da Matta R, Viveiros de Castro E. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional (Antropologia) 1979; 32:1-37.
  • 3. Velho G. Relações entre a Antropologia e a Psiquiatria. In: Velho G.Individualismo e cultura Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. 8a Ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2008. p. 97-106.
  • 4. Duarte LFD. A outra saúde: mental, psicossocial, físico-moral? In: Alves PC, Minayo MCS, organizadores.Saúde e doença Um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 83-90.
  • 5. Martin D, Mari J, Quirino J. Views on depression among patients diagnosed as depressed in a poor town in the outskirts of São Paulo, Brazil. Transcultural Psychiatry 2007; 44(4):637-658.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Maio 2012
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