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Urbanização, globalização e segurança viária: um diálogo possível em busca da equidade?

Urbanization, globalization and road safety: a potential dialogue in search of equity?

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Urbanização, globalização e segurança viária: um diálogo possível em busca da equidade?

Urbanization, globalization and road safety: a potential dialogue in search of equity?

Waleska Teixeira CaiaffaI; Amélia Augusta de Lima FricheII

IDepartamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG. wcaiaffa@medicina.ufmg.br

IIDepartamento de Fonoaudiologia, Faculdade de Medicina, UFMG

São Paulo, noite chuvosa de domingo, meados de julho. SNF, divorciado, voltava da festa de aniversário da filha de 5 anos, Maya. De motocicleta, seu meio de transporte e instrumento de trabalho, e que acabara de adquirir, aproveitando a facilidade de linha de crédito vigente para o financiamento. Afinal, gastava quase 4 horas durante a semana para ir e vir do trabalho e nos finais de semana em que ia visitar a filha, que residia com a mãe do outro lado da cidade. Beijou sua filha na despedida e prometeu ligar quando chegasse em casa. Não ligou. No meio do caminho, foi atropelado por um carro que havia cruzado o sinal vermelho. SNF foi arremessado a 7 metros de distância, "e flutuou no ar como se fosse um pássaro, e se acabou no chão feito um pacote flácido"*, no outro lado da pista. Aos 29 anos, vítima de traumatismo craniano e hemorragia interna, "morreu na contramão atrapalhando o tráfego"*. [Adaptado da reportagem da Revista Veja, 9 de maio de 20121, os nomes são fictícios; *Chico Buarque, Construção]

Viver nas cidades tem representado um desafio para a sociedade contemporânea, e a segurança viária é uma das suas principais preocupações. As cidades, fontes de criatividade e tecnologia, funcionam como os motores do crescimento econômico originando um novo fenótipo urbano, evocado por McMichel2 em sua célebre frase livremente traduzida, como "o modo de viver urbano é a pedra angular da moderna ecologia humana".

Este modo de viver urbano gera pressões ecológicas e sociais criando grandes mudanças demográficas, psicossociais, materiais e nos padrões de consumos. A maioria das cidades estão pouco preparadas para avaliar como os fatores de risco ou de proteção da saúde interagem em diferentes grupos populacionais afetando a mobilidade urbana, as incapacidades funcionais e os padrões de mortalidade.

As mudanças demográficas ocorridas nos últimos séculos resultam de um fenômeno que data do século dezenove. Em 1800, apenas duas cidades - Londres e Pequim - tinham mais de um milhão de habitantes; cem anos depois, existiam dez com esse porte. Até 1950 esse número triplicou e não parou de aumentar. Atualmente existem cerca de 400 cidades com mais de 1 milhão de habitantes3,4, entretanto, mais de 50% das pessoas vivem em cidades com 500 mil a 1 milhão de habitantes. No Brasil, a proporção da população urbana passou de 31,3% em 19405 para 84% em 20106.

As cidades, complexas e contraditórias, são influenciadas pela (ou consequências da) globalização, que trouxe altos níveis de riqueza para as metrópoles, mas ao mesmo tempo, também a exclusão social e as desigualdades em saúde em grandes segmentos da população7.

Contrário ao perfil de países industrializados, que vêm administrando através de uma gestão coletiva o ambiente urbano frente ao período inicial de industrialização, do crescimento desordenado e do laissez-faire da atividade econômica nas cidades, em países de baixa renda esse processo está sendo retardado pelas pressões e prioridades da globalização econômica. Além dos riscos tradicionais de doenças diarreicas e infecções respiratórias na população urbana pobre, o ambiente urbano representa exposição à outros agentes físicos-químicos, tais como a poluição do ar, a ilha de calor urbana e, não menos importante, foco de nosso debate, os riscos relacionados ao tráfego2.

Os residentes urbanos, como consequência da influência global de corporações transnacionais favorecidas, como no caso do Brasil, de um ambiente econômico estimulador, e pressionados pela necessidade de mobilidade, desejo de conforto e de status, são estimulados a possuir meios de transporte representados pela posse de carros e, particularmente mais acessível, de motocicletas1,2. Assim, a frota de veículos continua a aumentar de forma espetacular. No Brasil, entre 2000 e 2010, houve um aumento de 119% na frota de veículos atingindo 65 milhões. Este rápido crescimento reflete a influência da publicidade, o poder do lobby das construtoras de estradas e o incentivo econômico representado pela diminuição dos preços e facilitação do crédito financeiro aos consumidores1,8.

De particular importância, cidades com transporte público precário, marcador também de outras iniquidades, assistem à onda endêmica de congestionamentos9 e seus danos diretos e indiretos para a saúde pública. Ademais das emissões de gases, responsáveis diretos pela poluição atmosférica urbana, mais de 1 milhão de pessoas morrem de acidentes de transporte terretre (ATT) anualmente, representados pelos ocupantes de carros, pedestres e motociclistas. Adiciona-se o papel ambiental do tráfego no desenvolvimento de doenças crônicas e suas manifestações agudas e as mortes prematuras relacionadas a tais efeitos; os adversos resultantes da fragmentação dos bairros e do ruído excessivo, bem como da privação dos habitantes aos modos fisicamente ativos de transporte. Impressionante é a constatação de que todos os efeitos ocorrem, particularmente, entre cidades de países de baixa renda10 e, dentro das cidades, entre as populações mais vulneráveis, ampliados pelo crescimento das desigualdades sociais e territoriais em saúde.

Os ATT resultam, segundo o referencial teórico proposto por Haddon11, da interação entre pessoas e os fatores a elas relacionados; energia, intrinsecamente associada aos agentes e/ou veículos; e contexto, representado pelo ambiente viário. Essa matriz permite classificar as intervenções de segurança viária segundo os fatores que pretende modificar (o indivíduo, o veículo, e o entorno físico e social)11. Modificações no comportamento do condutor, nos veiculos e nos ambientes viários estão entre as mais bem sucedidas estratégias para reduzir os ATT12. Entretanto, a urbanização tem potenciado mudanças no comportamento humano que afetam o risco das doenças, dificultando o sucesso das intervenções. Desta forma, modificações em um dos três pilares do modelo feitas de forma não integradas podem gerar consequências paradoxais. Por exemplo, a melhoria viária associada à expansão urbana, aumenta o tempo de exposição e o tempo de viagem e quilômetros percorridos, aumentando assim, o risco de ATT, caso não haja uma mudança concomitante de comportamentos13.

Os resultados do estudo ecológico brasileiro realizado por Morais Neto et al.14 mostram uma redução do risco de morte por ATT de pedestres, mas um crescimento relacionado aos ocupantes de veículos e de motocicletas, concomitante à observação de maior risco de morte nos municípios com até 100 mil habitantes. O estudo também mostra que a presença de aglomerados de risco para ATT, notadamente para ocupantes de motocicletas seguida de ampliação das áreas com maior risco na região Nordeste, representa uma peça adicional de evidência da necessidade de uma profunda reflexão de que a combinação de fatores demográficos, sociais, políticos, econômicos e espaciais não são uma simples expressão espacial da desigualdade social, mas um indicador das disparidades.

A iniquidade, componente essencial das desigualdades em saúde, necessariamente se estende para além das abordagens individuais de fatores de risco, levando em consideração a questão do papel da organização territorial e combinações locais da saúde com aspectos sociais, econômicos, políticos, bem como individual no sentido do entendimento de como a dinâmica territorial e a dinâmica de saúde interagem15,16.

Os estados de saúde, os padrões locais de formação e de manutenção da saúde, os métodos de gestão e a organização do cuidado podem contribuir para a construção do território social16, ajudando a impulsionar as políticas públicas nas três esferas de governo, junto com a sociedade civil e os cidadãos, para prevenir e reduzir as desigualdades sociais e regionais em saúde desse devastante agravo à saude para a população brasileira.

Em detrimento da maior limitação dos estudos ecológicos impedindo inferências causais em relação a indivíduos, tendo como base observações de grupos (como no caso fictício apresentado), felizmente, hoje, os estudos ecológicos representam importantes ferramentas analíticas para entender melhor a interdependência entre os eventos em saúde e as características socioterritoriais e ambientais, permitindo avançar em modelos conceituais relacionados à saúde urbana, caracterizada por multidimensões, multiescalas, multiatores e multidesfechos em saúde7. Neste contexto, o artigo de Morais Neto et al.14 é uma grande contribuição ao conhecimento integral da saúde dos brasileiros e muito bem-vindo.

Finalmente, quais são as implicações dessas descobertas? Juntamente com inúmeras recomendações, este artigo reforça: (1) a necessidade de prosseguir em uma abordagem agressiva global sobre redução de danos relacionados ao transporte terrestre nos territórios urbanos, dado que elas representam uma estratégia de investimento sábio global; (2) subsidiar o investimento em recursos humanos e financeiros na saúde pública com foco em populações vulneráveis que vão além do campo restrito da saúde individual; (3) a busca e o desenvolvimento de indicadores intramunicipais de saúde - apropriados para analisar a saúde e a avaliação do desempenho dos programas de saúde pública com foco na equidade no âmbito das ATT - como o próximo passo para preencher mais especificamente as lacunas dos determinantes intraurbanos da saúde; (4) o desenvolvimento de ações multisetoriais, envolvendo governo, sociedade e cidadãos, atuando em estratégias socioterritoriais determinantes do estado de saúde em busca de uma vida urbana segura e saudável.

Assim, o artigo contribui para a redução da lacuna existente entre os atores que produzem o conhecimento acadêmico e aqueles que são capazes de o gerir adequadamente, reduzindo a segregação entre o mundo da investigação e da ação pública, permitindo a elaboração de políticas públicas efetivas em todo o amplo espectro do desenvolvimento socioterritorial dos determinantes da saúde. Rompendo, graças a uma abordagem de saúde urbana, transversal e multidimensional, que envolve economia, emprego, educação, habitação, transporte, cultura, família, lazer e acesso à saúde, o modelo tradicional da área biomédica.

  • 1. Lopes AD. A morte pede passagem. Revista Veja 2012; 9 maio. p. 136.
  • 2. McMichael AJ. The urban environment and health in a world of increasing globalization: issues for developing countries. Bull World Health Organ 2000; 78(9):1117-1126.
  • 3. Satterthwaite D. Will most people live in cities? BMI 2000; 321(7269):1143-1145.
  • 4. Satterthwaite D. Coping with rapid urban growth. London: Royal Institution of Chartered Surveyors; 2002.
  • 5
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Departamento de População e Indicadores Sociais. Tendências demográficas: uma análise dos resultados da sinopse preliminar do censo demográfico 2000. Rio de Janeiro: IBGE; 2001.
  • 6. Instituto Brasileiro de Geograûa e Estatística (IBGE), Centro de Documentação e Disseminação de Informações. Vou te contar: a revista do censo 2010; 14 jan. [acessado 2011 abr 11]. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/download/revista/vtc14_web.pdf
  • 7. Caiaffa WT, Ferreira FR, Ferreira AD, Oliveira CL, Camargos VP, Proietti FA. Saúde urbana: "a cidade é uma estranha senhora, que hoje sorri e amanhã te devora". Cien Saude Colet 2008; 13(6):1785-1796.
  • 8. Moreira A. Frota de veículos cresce 119% em dez anos no Brasil, aponta Denatran. O Globo 2011; fev 13. [acessado 2012 jul 7]. Disponível em: http://g1.globo.com/carros/noticia/2011/02/frota-de-veiculos-cresce-119-em-dez-anos-no-brasil-aponta-denatran.html
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  • 10. McMichael AJ. Transport and health: assessing the risks. In: Fletcher T, McMichael AJ, editors. Health at the crossroads: transport policy and urban health. Chichester: John Wiley & Sons; 1996. p. 9-26.
  • 11. Haddon W. On the escape of tigers: an ecologic note. Am J Public Health 1970; 60(12):2229-2234.
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  • 14. Morais Neto OL, Montenegro MMS, Monteiro RA, Siqueira Júnior JB, Silva MMA, Lima CM, Maciel LO, Malta DC, Silva Júnior JB. Mortalidade por Acidentes de Transporte Terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2223-2236.
  • 15. Salem G, Rican S, Kurzinger ML. Atlas de la santé en France V. 2: Comportements et maladies. Paris: John Libbey Eurotext; 2006.
  • 16. Wilkinson R, Pickett K. The spirit level: why Equality is Better for Everyone. London: Penguin Ed.; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2012
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