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Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea

RESENHAS BOOK REVIEWS

Raphael Millet Camarda Correa

Departamento de Sociologia, Colégio Pedro II

Minayo Gomez C, Machado JMH, Pena PGL, organizadores. Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011.


A saúde do trabalhador está em disputa. Essa é uma das primeiras impressões que se tem ao ler as mais de quinhentas páginas que compõem Saúde do Trabalhador na Sociedade Contemporânea, uma publicação do Grupo Temático em Saúde do Trabalhador da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva que tem por objetivo desenvolver uma discussão crítica a respeito dos processos de saúde e adoecimento no universo das ocupações existentes nos diferentes sistemas produtivos da atualidade. Em termos gerais confrontam-se teoria e prática, uma disputa que articula dois universos em busca de uma comunicação mais orgânica a fim de definir conceitos capazes de unificar a saúde do trabalhador como um campo de estudo mais homogêneo. Homogêneo, mas não isento de diferenças que, no entanto, não ocultam um objetivo comum: construir um campo referido a uma prática de intervenção capaz de sustentar na esfera pública uma política que resulte de um processo de construção do conhecimento holístico e integrador, reflexo do processo de modernização das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, o livro organizado por Minayo Gomez, Machado e Pena é um esforço para situar o atual estado da arte desse empreendimento, reconhecer seus avanços, identificar suas lacunas e diagnosticar seus obstáculos. Quanto à diversidade das produções e seriedade dos pesquisadores, não há dúvidas que o livro cumpre seu objetivo. Ao transitar pelos vinte e quatro artigos que compõe esta coletânea o leitor encontra uma descrição vívida das questões abordadas capaz de superar uma narrativa de fragmentos para indicar que na última década se consolidou, através de seus principais sujeitos (pesquisadores, gestores, executores), um campo com características próprias, conhecedor de seus limites e impasses, diferenças e divergências, e, por isso mesmo, revelador de uma disposição e capacidade de encontrar os meios de superá-los. Assim, as quatro partes que agrupam os textos são igualmente reveladoras dos objetivos gerais da obra: "políticas e estratégias de vigilância e prevenção", "acidentes e agravos", "subjetividade e trabalho" e "trabalho em serviços e questões de gênero".

Devido ao grande número de autores e artigos não será aqui o espaço para tratar de cada um deles isoladamente. O conjunto da obra traduz não apenas os anseios futuros do campo da saúde do trabalhador, mas principalmente as conquistas que foram obtidas nos últimos anos. Assim, fica claro que apesar de existirem lacunas e falhas a serem superadas na construção dos conceitos, nos métodos de pesquisa e nos fundamentos das políticas públicas, um olhar retrospectivo revela que parte significativa desse caminho já foi trilhado, o que aumenta o otimismo em seguir adiante. Preocupações e referências comuns permeiam os capítulos do livro. A preocupação sistemática com a saúde do trabalhador que tem início com a modernidade industrial e com as peculiaridades da organização taylorista-fordista da produção tem na sociologia do trabalho uma matriz na qual é avaliada historicamente, os processos de saúde, os riscos e o adoecimento nas atividades reconhecidas como trabalho (ainda que existam pequenas diferenças de concepção em torno do caráter universal do trabalho nas sociedades capitalistas e sua caracterização apenas como processo produtor de mercadorias, posição que traz importantes consequências para se pensar o trabalho doméstico e outras atividades que não são voltadas para o mercado e que estão na base de diversas atividades que constituem hoje o setor de serviços, em especial o da área da saúde). As transformações nos processos produtivos, a difusão do trabalho imaterial, o predomínio no setor de serviços, a precarização do trabalho amplificada pelas perdas de direitos trabalhistas, as diferentes lógicas de contratação que levam ao trabalho informal e demais mudanças percebidas hoje levam os autores a assumirem duas posições sociológicas principais: um reconhecimento que essas mudanças ainda ocorrem no modo de produção capitalista e que representam um exacerbamento da lógica de produção de valor nos processos de produção fabris, tal como teorizados por Marx. Nesse sentido a matriz de análise ainda é valida e deve ser ampliada a fim de dar conta dos avanços tecnológicas da atualidade através de pesquisas e renovação conceitual que não neguem a matriz lógica da compreensão da organização da economia capitalista. Uma segunda posição entende como superado o modelo fabril, substituído como referência de organização da produção e, mais do que isso, do próprio sentido do trabalho na compreensão dos processos sociais atuais (o que inclui como se pensa os processos de saúde, acidentes, adoecimento) referidos em torno não de uma epistemologia econômica ou sociológica, mas amparados no debate filosófico sobre outra ontologia social do trabalho.

Como consequência da concepção sobre o trabalho e a saúde (e, por sua vez, o adoecimento), quer pela via da filosofia, quer pela sociologia (e são essas duas disciplinas que dominam esse ponto de partida, que vai encontrar outras disciplinas, em especial a psicologia e a psicanálise quando a problemática levantada procurar compreender a subjetividade do trabalhador) se desdobra o universo conceitual próprio ao campo e faz pensar se não seria útil construir, a partir dessa obra, um dicionário da saúde do trabalhador. Outro aspecto comum resulta da leitura do livro, a quebra das fronteiras disciplinares. Como articular realidades e conceitos, já tão controversos entre si, como processo produtivo, adoecimento, agravos à saúde, vigilância ambiental, direitos civis, direitos sociais, subjetividade, mobilização social e humanização da saúde? Isso só é possível através de uma perspectiva inter/transdisciplinar. A transdisciplinaridade do campo (e interdisciplinaridade dos processos de pesquisa) é uma necessidade que se impõe e acaba por caracterizá-lo. A amplitude das possibilidades de abordagens de pesquisa no campo da saúde do trabalhador enriquece as especialidades disciplinares mesmo quando essa transversalidade se faz na passagem de um artigo para outro e é, assim, compreendida pelo leitor, ainda que não fosse esse o objetivo (declarado) dos autores. É difícil imaginar um campo que permita que após uma discussão sobre os meios legais institucionais de se promover a saúde do trabalhador a partir de políticas de governo e políticas públicas (de Estado) se passe para uma discussão específica sobre a conceituação do trabalho como atividade criadora e, por isso mesmo, produtora de subjetividades que, quando interrogadas, revelam em uma "clínica do trabalho" a associação entre dor-desprazer-trabalho, para depois ser apresentado aos dilemas que enfrentam os trabalhadores de atividades tão diferentes como atendentes de supermercado, teleatendimento, indústria de calçados, de abate e processamento de carnes e construção civil, no que diz respeito aos aspectos ergonômicos de suas atividades e ao papel das delegacias do trabalho na promoção da segurança e redução de danos relacionados ao trabalho. Os aspectos conceituais, teóricos, temáticos e práticos são inseparáveis, ainda que nem sempre explicitamente trabalhados em uma pesquisa específica, mesmo que essa pareça estritamente "técnica" e descritiva a princípio.

A discussão específica sobre saúde mental e trabalho, devido ao próprio dissenso conceitual e político referente a essa área exemplifica bem o argumento acima. Quando se trata de articular o tema trabalho e saúde mental, é interessante perceber que grande parte das pesquisas realizadas no país não apresenta uma fundamentação conceitual consistente capaz de deixar claro o significado de saúde mental e, por consequência, seus nexos com o mundo do trabalho. Quando se lê sobre o caráter constitutivo que o sofrimento tem na subjetividade (outro termo largamente utilizado sem uma adesão conceitual clara, e, por isso, fonte de algumas confusões) fica clara uma denúncia sobre os riscos de reprodução de um senso comum acadêmico que acaba por manter vivos instrumentos e metodologias comprometidas com antigas práticas de "higienização mental" e "disciplinarização dos corpos" dos trabalhadores com a finalidade de atender melhor aos interesses de empregadores e setores do Estado, mesmo que essa não seja a adesão política declarada dos pesquisadores. Como lição é possível afirmar que não se procura consolidar um campo através da reprodução cega de métodos e instrumentos (e, por que não, conceitos) consagrados, mas produzir um debate contínuo a partir de posições críticas com o objetivo de afastar pressupostos que naturalizam categorias que se referem a práticas, comportamentos e relações socialmente construídas. A naturalização do social é um desvio perigoso no campo das ciências sociais e posturas que a priori vitimizam determinados grupos, como trabalhadores e mulheres, ignorando sua potência de ação e transformação, podem contribuir para reproduzir exatamente as formas de desigualdade e injustiça que se procura combater. Explicitar a importância do trabalho conceitual rigoroso, parece uma demanda comum que se torna clara a partir da publicação desse trabalho. Essa importância não se limita apenas à construção do conhecimento no campo da saúde do trabalhador, mas também nos horizontes políticos de ação e intervenção que lhe são inseparáveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013
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