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A Universidade no século XXI: para uma universidade nova

RESENHAS BOOK REVIEWS

Carmen Fontes de Souza Teixeira

Bacharelado Interdisciplinar em Saúde , Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia

Santos BS, Almeida Filho N. A Universidade no século XXI: para uma universidade nova. Coimbra: Almedina; 2008.


Antessala do gabinete do Reitor da Universidade Federal da Bahia em uma manhã ensolarada de verão em Salvador (Bahia), março de 2004. Boaventura de Souza Santos conversa animadamente com um grupo de alunos do Diretório central dos estudantes, escuta suas inquietações e perplexidades e defende, apaixonadamente, a necessidade e oportunidade de se fazer uma ampla reforma no ensino superior no alvorecer do século XXI. Confia na capacidade empreendedora do recém-eleito Reitor da UFBA, Naomar de Almeida Filho, anfitrião que o tinha convidado a ministrar a Aula inaugural do semestre letivo. Das conversas preliminares ficou sabendo da admiração e respeito que Naomar nutria por seu pensamento, desde que tinha introduzido seus textos sobre a crise das ciências1,2 no curso de Epistemologia e Metodologia que ministrava há anos no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do ISC-UFBA.

Acompanhando o curso da reflexão desenvolvida por Boaventura Santos no fim do século3, Naomar, ao chegar à Reitoria da UFBA, embrenhou-se nos estudos sobre o processo de Bologna e acompanhou uma palestra proferida por Boaventura no Ministério da Educação, em 2004, quando Ministro Tarso Genro. Segundo o próprio Boaventura, "já nos conhecíamos, mas só então nos demos conta da convergência entre as nossas ideias a respeito da reforma da universidade. A partir daí nosso diálogo intensificou-se"4. Naomar conta a história deste (re) encontro, recordando que "após ter lido Pela mão de Alice5 como um manual para reitores, estava ansioso para conversar menos com o epistemólogo e mais com o sociólogo do conhecimento. Foi amizade à primeira vista". Pois bem, dessa amizade cultivada através da correspondência facilitada pela internet, nasceu a inspiração para a elaboração do projeto que ficou conhecido como "Universidade Nova", apresentado por Naomar à comunidade universitária por ocasião do debate em torno da implantação do REUNI. No calor desses debates, Naomar registrou seus "pensamentos, sentimentos, críticas e esperanças", no livro publicado pela EDUFBA em 2007, "Universidade Nova: textos críticos e esperançosos"6, discutindo a possibilidade de mudança nos mecanismos de ingresso, a política de cotas, a mudança da arquitetura acadêmica do ensino universitário sob a égide da inter e da transdisiplinaridade, no contexto da análise histórica sobre os modelos de universidade no mundo e no Brasil.

Nesse ínterim, Boaventura havia coligido suas ideias e as apresentou em conferência intitulada "A Universidade no século XXI", logo publicada em livro7 no Brasil, Argentina (2005), México (2005), Peru (2006), Bolívia, (2007), Venezuela, (2008) e como capítulo de livro nos EUA (2006). Enviado ainda manuscrito a Naomar em 2004, esse texto, revisado e ampliado, compõe a primeira parte de "Universidade no século XXI: para uma universidade nova", sob a forma de um capítulo intitulado "Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade". Neste texto, Boaventura retoma a reflexão que apresentou em "Pela mão de Alice" em torno das três crises com que se defronta a universidade contemporânea: a crise de hegemonia, "resultante das contradições entre as funções tradicionais da universidade e as que, ao longo do século XX lhe tinham sido atribuídas"; a crise de legitimidade, "provocada pelo fato de a universidade ter deixado de ser uma instituição consensual em face da contradição entre a hierarquização dos saberes especializados através das restrições do acesso e da credenciação das competências, por um lado, e as exigências sociais e políticas da democratização da universidade e da reivindicação da igualdade de oportunidades para os filhos das classes populares, por outro"; e a crise institucional, resultante da "contradição entre a reivindicação da autonomia na definição dos valores e objetivos da universidade e a pressão crescente para submeter esta última a critérios de eficácia e de produtividade de natureza empresarial ou de responsabilidade social".

Partindo desse patamar, Boaventura trata de analisar em detalhe como cada uma dessas crises vem sendo enfrentada ou administrada pela universidade nos países centrais. Assim, pergunta sobre o que aconteceu nos últimos quinze anos, analisando as transformações recentes no sistema de ensino superior, e seu impacto, sobretudo na universidade pública. Em seguida, trata de identificar e justificar os princípios básicos de uma "reforma democrática e emancipatória da universidade pública", argumentando por uma "globalização contra-hegemônica da universidade como bem público" projeto político que "tem que ser sustentado por forças sociais disponíveis e interessadas em protagonizá-lo", quais sejam "grupos sociais e profissionais, sindicatos, movimentos sociais, organizações não governamentais e suas redes, governos locais progressistas, interessados em fomentar articulações cooperativas entre a universidade e os interesses sociais que representam", e a própria universidade pública, cujo protagonismo é problemático, na medida em que se apresenta hoje como um "campo social muito fraturado, em cujo seio digladiam-se setores e interesses contraditórios".

Certamente que Naomar concorda com essa observação, visto que, enquanto Reitor por oito anos (2002-2009), lhe coube administrar, cotidianamente, os conflitos políticos que atravessam o ambiente acadêmico e enfrentou o desafio de mobilizar a contribuição de vários docentes e pesquisadores que se envolveram na elaboração das propostas das quais ele se tornou o porta-voz e principal defensor. Disso trata a segunda parte do livro, que contém a contribuição de Naomar. Partindo da revisão histórica do processo de constituição e reforma dos modelos de educação superior norte-americano e europeu, o autor analisa o modelo brasileiro, chamando a atenção para que "a atual estrutura curricular da educação universitária brasileira tem sua origem nas universidades europeias do século XIX, principalmente nas escolas francesas e nas instituições lusitanas, herdeiras tardias da universidade escolástica". Segundo ele, tais estruturas sofreram com a reforma universitária imposta pelo governo militar no final dos anos 60 (...) e depois, nos anos 1990, "vivemos um período de quase total desregulamentação da educação superior e abertura de mercado ao setor privado de ensino". Com isso, "a universidade brasileira terminou dominada por um poderoso viés profissionalizante, com uma concepção curricular simplista, fragmentadora e distanciada dos saberes e das práticas de transformação da sociedade".

Considerando que o momento político é propício à implementação de mudanças coerentes com as necessidades e demandas da sociedade contemporânea, Naomar apresenta a proposta "Universidade Nova", centrada na transformação da arquitetura acadêmica, tendo como aspecto central a introdução do regime de ciclos, através da implantação dos Bacharelados Interdisciplinares (BI) nas áreas de Artes, Ciência e Tecnologia, Humanidades e Saúde, curso de formação geral com 2400 horas, aos quais os estudantes estão ingressando com base na pontuação obtida pelo candidato no ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Descreve detalhadamente o desenho curricular proposto para os cursos de BI e discute sua articulação com os cursos de formação profissional e de pós-graduação, chamando a atenção para a importância do curso como preparação para o ingresso nos cursos de "progressão linear", profissionalizantes, antevendo, inclusive, a substituição do exame vestibular pelo ingresso através do BI.

Cabe registrar aqui que, aprovada pelo Conselho Universitário da UFBA em 2008, tal proposta vem sendo implantada desde 2009, com a abertura de vagas nos quatro cursos de Bacharelado Interdisciplinar, sob responsabilidade de uma nova unidade acadêmica, o Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, que conta atualmente com mais de dois mil alunos matriculados. É interessante, portanto, revisitar a proposta apresentada por Naomar, em 2008, à luz da experiência em curso, não só na UFBA, senão que em várias outras universidades públicas brasileiras que estão implantando o regime de ciclos, algumas delas, inclusive, já adotando os cursos de Bacharelado como forma exclusiva de ingresso aos cursos profissionalizantes.

Afinal, o autor sem dúvida compartilha o entusiasmo que levou Boaventura Santos a conclamar "Não disparem contra o utopista"8 e assume corajosamente a responsabilidade de defender essa proposta de mudança, elencando, ao final do livro, uma série de benefícios que podem advir de sua implantação, para os alunos, para a universidade e para a sociedade brasileira. Provoca, ademais, a nossa reflexão, sinalizando que tal proposta não é utópica, no sentido do "não lugar", do impossível, mas sim constitui uma "protopia", realista, viável, realizável.

Coerentemente com a análise efetuada por Boaventura Santos acerca das crises que atravessam a Universidade pública, espero que dirigentes universitários, lideranças políticas, professores e alunos, ex-alunos e candidatos ao ensino superior, se inspirem nas ideias e propostas apresentadas neste livro, contribuam para qualificar o debate em torno das políticas e estratégias de mudança na Educação e comprometam-se com a construção de um novo lugar na Universidade brasileira.

  • 1. Santos BS. Um discurso sobre as ciências [1985/86]. 7ª Edição. Porto: Afrontamento; 1995.
  • 2. Santos BS. Introdução a uma ciência pós-moderna Rio de Janeiro: Graal; 1989.
  • 3. Santos BS. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: Heller A, Santos BS, Chesnais F, Altvater E, Anderson B, Light M, Mushakoji K, Applab KA, Segrera FL. A crise dos paradigmas em Ciências Sociais e os desafios para o século XXI Rio de Janeiro: Contraponto; 1999. p. 33-75.
  • 4. Santos BS. Prefácio. In: Santos BS, Almeida Filho N, organizadores. A Universidade no sec. XXI: por uma universidade nova. Coimbra: Almedina; 2008. p. 7.
  • 5. Santos BS. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 4ª Edição. São Paulo: Cortez Editora; 1997.
  • 6. Almeida Filho N. Universidade Nova: textos críticos e esperançosos. Brasília, Salvador: Editora UNB, EDUFBA; 2007.
  • 7. Santos BS. A Universidade no século XXI São Paulo: Cortez Editora; 2004.
  • 8. Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3ª Edição. São Paulo: Cortez Editora; 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013
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