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Sobre a morte e o morrer

RESENHAS BOOK REVIEWS

Selene Beviláqua Chaves Afonso

Serviço de Psicologia Médica, Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz

Kubler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes; 1985.

O livro descreve como a autora, através de entrevistas com pacientes gravemente doentes e desenganados de um hospital de Chicago, chegou aos cinco estágios emocionais pelos quais eles passam durante o processo de morrer. Além disso, descreve as dificuldades encontradas pela equipe multiprofissional ao lidar com o paciente, as notícias difíceis e os familiares.

Em linguagem simples e clara, ao longo das 278 páginas divididas em doze sessões, encontram-se as discussões sobre o assunto, fartamente ilustradas por entrevistas ocorridas nesses seminários.

Na primeira sessão, a autora aponta como as inovações tecnológicas afetavam o manejo com esses pacientes. Embora o medo da morte continuasse universalmente presente, a forma de lidar com ela e com os moribundos tornou-se impessoal e solitária. A urgência em tratar e restaurar a vida restringiu a autonomia dos pacientes.

Na segunda sessão, analisa as atitudes diante da morte e do morrer afirmando que nossa sociedade é propensa a evitar a morte, mas, sobretudo a ignorá-la. Constata que os estudantes de medicina têm a seu alcance farto material científico, mas não recebem qualquer treinamento sobre a relação médico-paciente. Sugere que os profissionais reflitam sobre sua própria morte como aspecto componente e central da vida, auxiliando assim a transmissão de valores humanos aos alunos e facilitando a lida com os pacientes e seus familiares.

Na terceira sessão são exemplificadas as dificuldades dos profissionais, especialmente médicos, sobre a falar a verdade ao paciente. A questão não é falar, mas como fazê-lo. Para Ross a negação dos pacientes está intimamente ligada à do médico. Afirma que a reação do doente diante da condição ameaçadora não depende apenas da transmissão da notícia difícil, mas que a comunicação deveria receber especial atenção na formação médica e na supervisão dos residentes.

As próximas cinco sessões do livro descrevem os estágios por que passa o paciente moribundo. No primeiro, de negação e isolamento, que geralmente vem com o diagnóstico, o paciente procura provar de todas as formas que houve um engano, necessitando de tempo para absorção da ideia.

No segundo estágio, confirmado o diagnóstico, a raiva por interromper seus planos e a própria vida se mescla ao ressentimento e à inveja daqueles que estão saudáveis. A equipe precisa, por meio da empatia, entender esse período e contornar situações que fazem parte do choque pela nova condição e do processo em curso. É comum que as equipes evitem os pacientes.

No terceiro estágio, o da barganha, há uma tentativa de adiar a morte como um prêmio por bom comportamento. Há promessas de novas atitudes e de mudanças de estilo de vida, na esperança de prolongar um pouco mais a sobrevivência.

Arrependimentos por situações concretas ou fantasiosas vividas como pecados fazem que o adoecimento seja sentido como castigo pelo doente.

A depressão no quarto estágio decorre não somente do impacto da doença sobre o indivíduo, mas sobre a família e as alterações sofridas por ela. Há o enfraquecimento financeiro, a necessidade de o outro cônjuge trabalhar e o afastamento dos filhos, que por vezes precisam ficar aos cuidados de parentes. A autora encontrou dois tipos de depressão: a reativa e a preparatória. Na primeira sugere uma abordagem multidisciplinar com apoio e orientação, especialmente na área social. O segundo tipo é o que ocorre quando o doente se dá conta de que perderá, em breve, tudo que ama.

O último estágio, de aceitação, coincide com o período de maior desgaste físico. Nele, parece ser mais difícil viver do que morrer e os sentimentos desvanecem. É um período em que o paciente pode querer falar sobre seus sentimentos, mas precisa que haja pessoas disponíveis e preparadas internamente para esse contato.

Pode haver uma sobreposição desses estágios e a autora afirma que em todos eles, mesmo para os pacientes mais realistas, há sempre uma ponta de esperança que não deve ser retirada com verdades cruéis ditas de forma direta.

Na sessão dedicada aos familiares ela cita alguns dos aspectos afetados na dinâmica familiar, reforçando sempre a importância de os profissionais conhecerem o contexto em que vivem seus pacientes. Faz referência à preservação da saúde física e mental dos cuidadores principais, e das vicissitudes que enfrentam, especialmente na fase terminal.

Dá ênfase à comunicação entre os atores; à flexibilidade de algumas normas hospitalares nas situações especiais em favor do doente e sua família; dos prejuízos causados pela fragmentação do cuidado e da necessidade que as equipes reflitam continuamente suas práticas e relações.

Há uma sessão inteira dedicada à entrevista com os pacientes, transcritas de alguns seminários, que colorem vivamente as argumentações da autora ao longo do livro.

Uma sessão sobre as reações aos seminários sobre a morte e o morrer descreve a resistência, por vezes violenta, das equipes profissionais. À despeito do posterior sucesso dessa prática, que foi integrada ao currículo da faculdade de medicina, a morte era vivida pelos médicos como um insucesso. A enfermagem estava dividida, mas gradativamente juntou-se ao seminário, participando ativamente.

Não fosse pela surpreendente adesão imediata dos pacientes a autora confessa que teria desistido. Eles perceberam mudanças positivas das equipes após o início dos seminários. A autora afirma que a maioria sabia da gravidade da doença, mesmo que não tivessem sido comunicados formalmente. E ficavam gratos pela abordagem das notícias difíceis. Mas ressentiam-se quando elas eram transmitidas cruamente, fora do setting adequado, sem preparação prévia e sem o acompanhamento posterior dos ouvintes.

O texto claro e acessível mostra que, já em 1965, as consequências da transição epidemiológica requeriam visão mais intergral do paciente. Ela incentiva o tratamento interdisciplinar evitando a fragmentação do cuidado, mais valorizado que o tratamento curativo, especialmente quando este é fútil. Enfatiza aspectos estreitamente ligados à humanização1 em saúde como o respeito à autonomia do paciente e sua família, a coparticipação e a construção de projetos terapêuticos consensuais que visem dar mais vida aos anos, que anos à vida.

A comunicação entre os atores, inclusive os profissionais de saúde, prenunciam fundamentos de atuais protocolos de comunicação de notícias difíceis2 que chamam a atenção para a forma como são transmitidas essas informações, o setting, a preparação do paciente para recebê-las e o compromisso de posterior acompanhamento clínico e psicológico de pacientes e familiares.

O livro de leitura fácil, mas densa, é indicado para todos profissionais de saúde, voluntários, cuidadores, familiares e religiosos que acompanham casos de pacientes adultos ou infantis, em estado terminal ou mesmo em condições crônicas que ameaçam a vida.

  • 1. Ayres JRC. Cuidado e humanização das práticas de saúde. In: Deslandes SF, organizadora. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. p. 49-83.
  • 2. Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Baele A, Kudelka AP. Spikes. A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist 2000; 5(4):302-311.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013
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