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Monteiro S, Villela W, organizadores. Estigma e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013.

Monteiro, S; Villela, W. Estigma e Saúde. 2013. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro

Em junho de 2011, diversos pesquisadores se reuniram no Rio de Janeiro para participar do Encontro Estigma e Discriminação com o objetivo de provocar discussões e mapear avanços e lacunas no conhecimento sobre o tema disposto já no título do evento. Dois anos depois, em 2013, Simone Monteiro e Wilza Villela publicaram o livro Estigma e Saúde pela Editora Fiocruz, reunindo contribuições dos investigadores que participaram do encontro do Rio ou envolvidos diretamente com o assunto. O livro buscava incentivar as discussões sobre o tema, focalizar as relações entre saúde, preconceito e estigma, sistematizar os debates, clarear as relações entre os conceitos, ou seja, almejava dar mais consistência à utilização dos termos estigma, preconceito e discriminação. Os capítulos apresentavam, assim, os desafios na produção do conhecimento sobre essa temática no campo da saúde, expondo contribuições teórico-metodológicas que pudessem nortear pesquisas e políticas dirigidas ao combate de processos de estigmatização.

A leitura do conjunto de textos que compõem Estigma e Saúde vai revelando as íntimas relações entre estigma e adoecimento, em suas dimensões sociais e públicas. Logo no início as organizadoras salientam que a abordagem político-cultural do estigma e da discriminação nas práticas de saúde nos conduz ao cerne das mudanças político-culturais reclamadas pela construção de uma saúde pública. O estigma aparece então como um dos processos sociais que podem reduzir o acesso à saúde dos indivíduos e grupos afetados. Os capítulos demonstram, cada um a seu modo, como estigma está relacionado aos processos de adoecimento, às políticas públicas, aos meios de enfrentamento dos agravos em saúde. No que se refere à epidemia HIV/Aids, por exemplo, alguns dos autores assinalam como o estigma não é algo externo ou suplementar, mas consubstancial aos processos de adoecimento.

Dadas essas conotações, a conclusão é de que as expressivas relações entre os processos de estigma, os agravos à saúde, as dimensões da vida cotidiana e a produção de subjetividades exoram aprofundamento teórico-conceitual que contribua para programas de luta contra os processos de estigmatização. Não obstante, Estigma e Sociedade indica igualmente que no Brasil as pesquisas sobre as consequências do estigma e da discriminação à saúde ainda são escassas. Além do mais, as investigações sobre as inequidades em saúde vêm privilegiando fatores socioeconômicos em detrimento de "marcadores sociais da diferença", tais como gênero, raça, diversidade sexual. Ao mesmo tempo, mas talvez não com a celeridade necessária, nota-se que a incorporação da categoria gênero, as discussões sobre raça nos pesquisadores da área de saúde coletiva e as pesquisas sobre diversidade sexual realizadas a partir da epidemia HIV/Aids vêm somando esforços no sentido de complexificar as análises, incorporando os conceitos estigma, discriminação e preconceito. O livro evidencia que ainda há variações no uso e na falta de rigor no manejo desses conceitos no campo da saúde, e não raro o estigma relacionado a um ou outro agravo aparece naturalizado e não como um fenômeno social a ser analisado.

O livro contém prefácio de José Ricardo Ayres, uma apresentação das organizadoras e onze capítulos que lidam com esses desafios, problemas e dificuldades. Numa discussão mais direcionada à produção internacional, Richard Parker fornece um panorama das tendências históricas sobre as intersecções entre estigma, preconceito e discriminação e saúde; e Jo Phelan, Bruce Link e John Dovidio avaliam os encontros e desencontros entre os conceitos de estigma e preconceito. Pensando na realidade brasileira, Simone Monteiro, Wilza Villela, Carla Pereira e Priscila Soares analisam a produção acadêmica recente sobre aids, saúde estigma e discriminação, salientando, entre outros achados, a já mencionada escassa produção sobre o tema no país; Daniela Knauth procura entender os motivos dessa escassez.

Três dos capítulos relacionam a temática a pesquisas mais direcionadas. Dialogando francamente com o capítulo de Richard Parker, Octávio Bonnet estabelece a relação entre estigma e violência estrutural, e examina o processo de reprodução do estigma no cotidiano das práticas dos programas de Atenção Primária em Saúde. Valendo-se de pesquisa etnográfica, Luciana Ouriques Ferreira pondera sobre o significado da prática de mulheres e crianças mbyá-guarani de "esperar-troquinho". Sérgio Carrara focaliza sua abordagem no processo de afirmação dos chamados direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT).

Refletindo sobre as metáforas e suas afecções, Francisco Inácio Bastos aborda a persistência de metáforas fatalistas associadas a determinadas doenças, e Ivan França Júnior e Eliana Miura Zuchi discutem a persistência da metáfora da aids como enfermidade letal. Os aspectos conceituais e metodológicos das relações entre discriminação interpessoal e agravos em saúde foram analisados por João Luiz Bastos e Eduardo Faerstein. E Kenneth Rochel de Camargo Jr., pensando na temática em pauta, discute a relação entre as ciências sociais e humanas e a epidemiologia.

Com essas contribuições, o livro organizado por Monteiro & Villela constitui-se em significativo estímulo à produção acadêmica a considerar as relações entre os múltiplos elementos no processo de produção do estigma relacionado a doenças. E colabora também para que as intervenções dirigidas à superação dos processos de estigma e de discriminação associados à saúde considerem que suas manifestações decorrem de um conjunto de situações de desigualdades.

Parece evidente, depois do exposto, que Estigma e Saúde é um marco na discussão do tema no Brasil, tanto por organizar e sistematizar a produção sobre o assunto, quanto pela já aludida busca de rigor conceitual. Mas também pelo caráter interdisciplinar e pela busca insistente em fazer os campos de saberes dialogarem - já manifestos na organização dos capítulos do livro que conversam entre si. No entanto, talvez um dos seus maiores avanços repouse na sua tentativa de superar certas dicotomias muito presentes no campo da saúde: entre cultura e natureza, ciências sociais e epidemiologia, indivíduo e sociedade.Sobre esta última dicotomia, o livro sustenta que para se compreender as relações entre estigma, discriminação e preconceito, faz-se necessário ir além da descrição das experiências individuais e levar em conta os "marcadores sociais da diferença" que produzem desigualdades de gênero, classe social, cor, raça, etnia, diversidade sexual.

É claro também que, com uma contribuição de tal monta, o livro provoque indagações e incite os leitores a buscarem algo mais ou a prosseguirem nas perguntas que os capítulos vão ensejando, emarando-se nas trilhas que vão se abrindo. E foi esse estímulo que me levou a indagar sobre outro conceito, geralmente associado ao termo estigma, e que está surgindo nas produções recentes, sobretudo nas abordagens de gênero e sexualidade, mas igualmente nos trabalhos sobre violência urbana, migração, etc. Refiro-me ao conceito de abjeção.

Estigma, preconceito e discriminação são formas de lidar com a diferença - formas associada às vivências de desigualdades e injustiças que caracterizam grupos e sujeitos estigmatizados, socialmente marcados como inferiores ou anormais. Estigma e Saúde mostra com clareza esses processos de estigmatização e suas vinculações com a saúde. Todavia, não há menção em nenhum dos capítulos sobre abjeção, categoria também vinculada a esse campo semântico e presente nas diversas maneiras de vivenciar a diferença.

Já na Apresentação, Monteiro & Villela expõem o conceito de estigma de Erving Goffman, segundo o qual a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e as características consideradas comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Surgem nesse processo as determinações e as marcas que sinalizam um desvio e uma diferença de identidade social. Estabelecendo as demarcações entre os "normais" e os outros, o termo estigma será usado em referência a um atributo depreciativo - numa linguagem de relações e não de características em si. Estigma é, pois, como identidade deteriorada. O abjeto, por sua vez, perturba ficções de identidade, sistema e ordem, justamente porque determinados corpos e subjetividades não respeitam fronteiras, posições e regras - são corpos e almas ambíguos. O abjeto torna-se aquele cuja vida não é considerada legítima. E por perturbar ficções de identidade e ser ambíguo, o campo da abjeção é onde a linguagem falha. O abjeto surge como uma potencialização de desigualdades e injustiças que caracterizam grupos socialmente marcados como inferiores ou anormais. Assim, embora estigma e abjeção estejam estreitamente atrelados, não podem ser considerados como o mesmo processo e a mesma forma a agir. Estigma e abjeção são formas de lidar com a diferença, mas enquanto o primeiro parece agir na demarcação de identidades deterioradas, o segundo se localiza no campo nebuloso da ambiguidade. Naturalmente, essas reflexões sobre as relações entre abjeto e estigma são bem iniciais e questionáveis, elaboradas sob o estímulo da leitura de Estigma e Saúde.

E provavelmente esta seja a mais importante característica do livro: incitar questionamentos por expor abertamente os avanços, os problemas e as lacunas, numa aposta generosa no diálogo. Quiçá por isso terminemos a sua leitura afetados, com um conjunto de indagações e com desejo de prosseguir debatendo o tema. Diz-se mesmo que um livro é tão melhor quanto maior o número questões provoque e quanto mais afete seus leitores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015
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