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O (não) lugar do homem jovem nas políticas de saúde sobre drogas no Brasil: aproximações genealógicas

Resumos

O estudo buscou problematizar as negociações e as condições de possibilidade para inclusão ou exclusão dos homens jovens no processo de formulação das políticas de saúde sobre drogas no Brasil. Inscrito no campo de estudos sobre gênero e propondo-se a discutir a relação entre masculinidades e uso de drogas, numa perspectiva interseccional, o marco referencial considera que: a maior vulnerabilidade de homens jovens a problemas no uso de drogas e as dificuldades de acesso e/ou vinculação aos serviços também precisam ser compreendidos a luz das leituras sobre gênero e saúde; e a forma como as discussões de gênero se fazem presentes nas políticas, seja nos documentos oficiais, seja na compreensão das pessoas ligadas à elaboração e/ou implementação destas, influencia, direta ou indiretamente, na forma como esses homens são reconhecidos, acessam e são acolhidos pelos serviços do Sistema Único de Saúde. A partir de três entrevistas episódicas e semiestruturadas com gestores que participaram da elaboração das políticas de saúde sobre drogas, nas esferas municipal, estadual e federal, e do estudo dos documentos citados durante as entrevistas, elaboramos um texto genealógico que procura recontar a história das políticas de drogas no Brasil, a partir dos acontecimentos destacados pelos interlocutores.

Gênero; Masculinidades; Drogas; Juventude; Políticas de saúde


The study seeks to problematize the negotiations and conditions of possibility for the inclusion or exclusion of young men in the process of health policy formulation regarding drugs in Brazil. Situated in the field of gender studies and proposing to discuss the relationship between masculinities and the use of drugs from an intersectional perspective, the framework considers that: the increased vulnerability of young males to problems with drug use and the difficulties in access and/or links to services also need to be understood in light of the literature about gender and health; and that the form in which debates about gender are manifested in health policies – whether in official documents, or in the understanding of persons linked to the elaboration and/or implementation of such policy– directly or indirectly influence the way in which these men are recognized by, access, and are accepted by the services of the Unified Health System (SUS). Drawing upon three episodic and semi-structured interviews with managers who participated in the elaboration of health policy about drugs at the municipal, state, and federal levels, and through the study of the documents cited during the interviews, we develop a genealogical text that seeks to retell the history of drug policy in Brazil, guided by the events emphasized by the interlocutors.

Gender; Masculinities; Drugs; Youth; Health policy


Introdução

Homens, jovens, negros e pobres. Como são reconhecidos estes atores nas políticas públicas de saúde voltadas para os contextos de uso de drogas no Brasil? Quais lugares foram e ainda estão sendo definidos para esta população, na medida em que correspondem àquela que, segundo estudos epidemiológicos11. Bastos FI, Bertoni N, organizadores. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack – Quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/Fiocruz; 2014., apresenta maiores índices de morbidade e mortalidade pelo uso nocivo de drogas, em nosso país? O exercício genealógico aqui realizado buscou desenhar os fios e tecer as teias que compõem a história de elaboração das políticas sobre drogas brasileiras, evidenciando dobras e sobras, com o intuito de problematizar as negociações e condições de possibilidade para inclusão ou exclusão dos homens jovens no processo de formulação dessas políticas.

Entre as políticas, elegemos como ponto de partida para este estudo aPolítica Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003., elaborada pela Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde. Trata-se de um documento amplo, que tem início com a definição de um marco teórico-político, passa pela Contextualização do uso de drogas como problema de saúde, apresentando dados epidemiológicos, para chegar àsDiretrizes da Política. Escolhemos este documento, mesmo tendo conhecimento de outras normativas posteriores, entendendo que esse é o mais contundente e que, de fato, dispara o olhar das políticas públicas de saúde para as questões relacionadas aos usos de drogas.

Quando lançou a referida Política, no próprio documento, o Ministério da Saúde reconheceu que houve um atraso histórico do Sistema Único de Saúde (SUS) na proposição de ações diante dos problemas relacionados aos usos de drogas no Brasil. Machado e Miranda33. Machado AR, Miranda PSC. Fragmentos da história de atenção à saúde para usuário de álcool e outras drogas no Brasil: da Justiça à Saúde Pública.Hist. cienc. saude-Manguinhos 2007; 14(3):801-821. ressaltam que a história das intervenções dos governantes brasileiros na área de álcool e drogas aponta, desde o início, para abordagens e iniciativas originadas e consolidadas, sobretudo, no campo da justiça e da segurança pública. Segundo os autores, há uma dificuldade clara de incorporação destes problemas na agenda da saúde pública.

A imprescindível leitura de gênero e geração

Inscrito no campo de estudos sobre gênero e propondo-se a discutir a relação entre masculinidades e uso de drogas, numa perspectiva interseccional, este estudo focaliza as políticas públicas de saúde, considerando que : 1) a maior vulnerabilidade de homens jovens a problemas no uso de drogas e as dificuldades de acesso e/ou vinculação aos serviços também precisam ser compreendidos à luz das leituras sobre gênero e saúde; e 2) a forma como as discussões de gênero se fazem presentes nas políticas, seja nos documentos oficiais, seja na compreensão das pessoas ligadas à elaboração e/ou implementação dessas, influencia, direta ou indiretamente, na forma como esses homens são reconhecidos, acessam e são acolhidos pelos serviços da rede do SUS.

Gênero é aqui compreendido como um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças produzidas entre os sexos e também como uma forma primária de dar significado a estas relações; significados estes marcados por exercícios de poder44. Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.Educ. Real. 1995; 20(2):71-99.. Referimo-nos ao poder como algo que circula, funciona em cadeia e, ao invés de se localizar ali ou aqui, é exercido em rede, em múltiplas direções55. Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal; 1993..

A produção de um corpo, gestos, discursos e desejos, que demarcam o reconhecimento de uma pessoa, a partir de sua localização no sistema sexo-gênero, é considerada assim um dos primeiros efeitos do poder. A pessoa é simultaneamente o efeito do poder e o seu centro de transmissão, uma vez que circula e dialogicamente produz, exerce e sofre ações de poder55. Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal; 1993..

Nenhuma masculinidade pode ser concebida fora de um sistema de relações de gênero e, portanto, fora das construções dos regimes de verdade que são efeitos e ao mesmo tempo (re)produzem as referidas relações de poder. As masculinidades são produzidas no arcabouço das práticas nas quais homens e mulheres se comprometem com posições de gênero e vivenciam os efeitos dessas na experiência corporal, personalidade e cultura. Dessa forma, é preciso levar em conta também outras estruturas sociais que dialogam com gênero66. Lyra J. Paternidade adolescente: uma proposta de intervenção [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1997.

7. Medrado B. O masculino na mídia: repertórios sobre masculinidade na Propaganda Televisiva Brasileira [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1997.

8. Azevedo M. Homens feministas: a emergência de um sujeito político entre fronteiras contingentes [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2012.
-99. Connel R. La organización social de la masculinidad. In: Valdés T, Olavarria J, organizadores. Masculinidades: Poder y Crisis. Santiago: Ediciones De Las Mujeres; 1997. p. 31-48..

Mesmo considerando que o fenômeno das drogas é amplo e envolve a população, de forma geral, quando olhamos para as pessoas que fazem uso e têm problemas em função disse, encontramos os homens. Estes são também majoritariamente negros e pobres11. Bastos FI, Bertoni N, organizadores. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack – Quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/Fiocruz; 2014.. O estudo realizado, embora tenha escolhido gênero como categoria prioritária de análise, também considera estes atravessamentos e como eles são estruturantes da organização social e, por conseguinte, deveriam compor as discussões que subsidiam a construção de práticas e proposição de políticas públicas em saúde.

Os estudos do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) mostram a necessidade de atentarmos para os lugares sociaisinterseccionalizados, quando abordam e produzem informações sobre as pessoas que usam drogas. Em um dos inquéritos de base populacional de abrangência nacional, realizado em 2005, por exemplo, as conclusões destacam o fato de características sociodemográficas – como faixa etária, sexo e cor – estarem associadas ao padrão de consumo regular de álcool. Ser do sexo feminino e da cor branca, por exemplo, é apontado como um fator de proteção ao uso regular de álcool. O mesmo inquérito, ao discutir os relatos de uso de drogas ilícitas durante a vida – neste caso, desconsiderando álcool e cigarro – aponta uma diferença significativa entre homens e mulheres – 13,2 % dos homens e 5% das mulheres entrevistadas relataram ter feito o referido uso. Este consumo parece ser maior nas faixas etárias mais jovens, 16 a 24 anos e 25 a 36 anos – 11,7% e 12,1%, respectivamente –, se comparados às pessoas de faixas etárias mais velhas – 8,8%, de 34 a 46 anos, e 3,1%, de 47 a 65 anos1010. Bastos FI, Bertoni N, Hacker MA. Consumo de álcool e drogas: principais achados de pesquisa de âmbito nacional, Brasil 2005. Rev Saude Publica 2008; 42(Supl. 1):109-117..

Esta informação nos alerta para a necessidade de incorporarmos no debate sobre elaboração e implementação das políticas de saúde, no contexto das drogas, leituras mais complexas sobre geração e sobre juventude, uma vez que demanda a construção de estratégias terapêuticas específicas e amplas, que abranjam tanto à prevenção quanto à assistência desta população, cujos dados acima apresentados evidenciam condições de vulnerabilidade1111. Silva, Costa MCO, Carvalho RC, Amaral MTR, Cruz NLA, Silva MR. Iniciação e consumo de substâncias psicoativas entre adolescentes e adultos jovens de Centro de Atenção Psicossocial Antidrogas/CAPS-AD. Cien Saude Colet 2014; 19(3):737-745..

Tomamos aqui juventude, a partir das leituras de Raymond Montemayor1212. Montemayor R. Boys as fathers: coping with the dilemmas of adolescence. In: Lamb ME, Elster A, organizadores. Adolescent fatherhood. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates; 1986. p. 1-18., que a define como categoria etária, cujos sentidos são polissêmicos. Ele elege, assim, cinco componentes que nos permitem uma definição mais abrangente da adolescência: 1) a idade cronológica, 2) o desenvolvimento biológico, 3) o desenvolvimento cognitivo e psicológico (que inclui a construção de uma identidade e o desenvolvimento interpessoal), 4) a mudança de status legal e 5) a possibilidade de participação em eventos da vida adulta. Trata-se, assim, conceito complexo, tacitamente utilizado em pesquisas nas quais a condição de transitoriedade – da dependência infantil para a plena autonomia adulta – é um dos objetos fundamentais em discussão.

É preciso reconhecer também que a perspectiva de gênero pode trazer importantes contribuições para a vivência dessas que são consideradas etapas da vida, bem como para as mortes, adoecimentos e riscos anteriormente referidos. A defesa da incorporação da dimensão sexo/gênero nas discussões sobre saúde vem acompanhada da reafirmação de que é preciso reconhecer as singularidades de gênero, isto é, reconhecer como as vivências de problemas específicos podem ser diferentes e problematizar o impacto que os comportamentos normativos da masculinidade e feminilidade têm sobre homens e mulheres1313. Schraiber LB, Gomes R, Couto MT. Homens e saúde na pauta da Saúde Coletiva. Cien Saude Colet 2005; 10(1):7-17.,1414. Nogueira CA. teoria da interseccionalidade nos estudos de género e sexualidades: condições de produção de “novaspossibilidades” no projeto de uma psicologia feminista crítica. In: ABRAPSO Nacional, organizador. Coleção Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos. Florianópolis: ABRAPSO; 2013. p. 227-248..

A produção de conhecimento científico pode ter um lugar importante na consolidação desta crítica. Todavia, segundo Aquino1515. Aquino EML. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Rev Saude Publica 2006; 40(nº esp.):121-132., a incorporação de gênero como categoria analítica no campo da saúde parece ser lenta. A maior parte dos trabalhos que utilizam a abordagem de gênero como construção social são pesquisas qualitativas produzidas pelas ciências sociais em saúde. Em uma análise mais minuciosa, percebe-se que os trabalhos sobre gênero e saúde estão focados primeiramente nas discussões sobre reprodução e contracepção. Em seguida, estariam os estudos sobre Sexualidade e saúde; eTrabalho e saúde, respectivamente. Por último, na categoriaOutros, inscritos junto a temas como envelhecimento, estariam os estudos que focam saúde mental e, dentro destes, os que abordam uso de drogas1515. Aquino EML. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Rev Saude Publica 2006; 40(nº esp.):121-132..

A articulação entre os campos de discussão sobre gênero, masculinidades e drogas não é comum e nem parece simples. É possível que a incorporação restrita do conceito de gênero, limitando-se à diferenciação dos sexos e, portanto, deixando de explorá-lo como marcador da organização social esteja na base desta dificuldade1616. Moraes M. Gênero e usos de drogas: porque é importante articular esses temas? In: Moraes M, Castro R, Petuco D, organizadores. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI; 2010. p. 15-20..

Rastros de uma genealogia

Este estudo é parte de uma tese de doutoramento que traz como objetivo mais amplo compreender os sentidos de masculinidades e os lugares que estão sendo definidos para os homens jovens nas políticas de saúde sobre drogas no Brasil. A partir de aproximações com a abordagem genealógica, propusemos dois recortes de tempo importantes: 1) o contexto de elaboração das políticas de saúde sobre drogas no Brasil, considerando como referência desse a publicação do documento marco das políticas22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003.; e 2) o atual contexto de implementação, no qual se espera que as compreensões construídas no período de elaboração das políticas são atualizadas – fortalecidas ou ressignificadas.

O estudo do qual resultou este artigo, considerando os recortes de tempo, está focado no contexto de elaboração das políticas e parte de entrevistas com pessoas que eram gestores, na ocasião. Entrevistamos três pessoas das diferentes esferas de gestão: municipal, estadual e federal. Elegemos como município e estado de referência Recife e Pernambuco, respectivamente.

A escolha destes três entrevistados foi decorrente da aproximação do campo e do diálogo com interlocutores-chaves, que as identificaram como pessoas estratégicas para compreensão da história de constituição deste campo. Assim chegamos a Antônio (nome fictício assim como os demais nomes citados), que é psicólogo e foi convidado para atuar no Ministério da Saúde, em 2003 – ano em que foi publicado o documento marco das políticas sobre drogas – e, portanto, acompanhou a elaboração e o início da implementação dessas políticas na esfera federal. Na ocasião, tinha concluído recentemente a graduação e trabalhava na gestão da política de saúde mental de São Paulo. Suzana é médica, psiquiatra e trabalhava em um hospital psiquiátrico no estado de Pernambuco, quando foi chamada para compor a equipe e estruturar um dos primeiros centros de saúde voltados para pessoas que tinham problemas com uso de drogas no Estado, em 1998. Mateus também é médico e psiquiatra. Após contribuição com a estruturação dos serviços estaduais de atenção a essa população, foi convidado para coordenar a implementação da rede municipal de atenção a usuários de drogas.

As entrevistas foram guiadas por um roteiro, cuja elaboração baseou-se nas reflexões acerca do referencial de entrevista episódica1717. Flick U. Entrevista Episódica. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2008. p. 114-136.. Esta tem como objetivo analisar o conhecimento cotidiano de um entrevistado sobre um campo ou tema específico. As três entrevistas tiveram início com a construção do terreno, momento no qual, além de familiarizar o entrevistado com o tema e o formato da entrevista, eram realizados os procedimentos éticos, como a leitura e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em consonância com o que está previsto na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e com os compromissos assumidos na aprovação desta pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz-RJ/MS).

A pergunta inicial das entrevistas era disparadora.Solicitávamos que o interlocutor recontasse a história da política de drogas, inscrevendo-se nela, na esfera da qual fazia parte. A construção doterreno trouxe o efeito de as falas dos entrevistados, ao tecerem estas teias, já localizarem ou fazerem considerações a aspectos relacionados a gênero ou a homens jovens. Em seguida, fazíamos perguntas mais direcionadas, a fim de dar visibilidade a tais aspectos. São estas falas, teias e as tramas tecidas por elas, junto aos documentos citados e à literatura atual sobre o tema, que vão compor o que chamamos de um exercício genealógico sobre as políticas de drogas no Brasil.

Percorrer os fios, curvas, sombras e (re)tecer as teias que compõem a história de elaboração das políticas de drogas no Brasil, a partir de interlocutores que participaram de seu processo de elaboração, consistiu em um exercício genealógico com vistas a identificar controvérsias, demarcar singularidades e, ao mesmo tempo, questionarmo-nos sobre os regimes de verdade instituídos que demarcam locais igualmente singulares para os homens jovens, seja no cotidiano das políticas, seja no cotidiano das práticas de saúde. Genealogia é aqui compreendida como um olhar epistemológico que se opõe a ideia de que há uma única narrativa da história, uma origem inequívoca para os acontecimentos55. Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal; 1993..

Assim, como forma de sistematizar o exercício genealógico, as entrevistas realizadas foram transcritas e iniciamos a construção de linhas episódicas ou linhas narrativas. Estas são utilizadas para esquematizar conteúdos das histórias utilizadas como ilustrações e/ou posicionamentos identitários no decorrer de uma entrevista1818. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In: Spink MJ, organizador. Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. São Paulo: Cortez; 2004. p. 93-122.. Utilizamos a ideia deepisódica com o intuito de quebrar a linearidade que pode estar implícita no conceito de linhas narrativas, uma vez que experiências de pesquisas que trabalham com o mesmo mostram um compromisso com uma perspectiva temporal linear, que nem sempre é condizente com a fluidez das construções argumentativas.

Construímos uma linha episódica para cada entrevista e nos caminhos da análise procuramos, a partir destas linhas e da consequente identificação dos acontecimentos, construir teias e, em alguns momentos, redes.

As falas de Antônio, Suzana e Mateus são fios condutores da nossa genealogia, junto aos documentos por eles citados, que se remetem às políticas sobre drogas no Brasil, e à produção científica sobre o tema abordado. Quais foram as condições de possibilidades do surgimento das políticas sobre drogas em Recife, em Pernambuco e no Brasil? A quem ela servia, ou a quem ela produzia na proposição das políticas e também no cotidiano das práticas de saúde geradas? E, assim, chegamos ao nosso foco: qual é o lugar definido para os homens jovens neste processo?

O (não) lugar do homem jovem

O primeiro fio desta teia nos leva à Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Pernambuco, ao final da década de 1980, e ao movimento de implementação de dois serviços voltados para as pessoas que tinham problemas com drogas. Mateus inscreve as primeiras movimentações estaduais no contexto de discussões sobre a humanização de um dos maiores hospitais psiquiátricos de Pernambuco. Nacionalmente, é possível dizer que as condições de possibilidade eram dadas pelo que, historicamente, tornou-se conhecido como Reforma Psiquiátrica.

Esta, colocou em discussão a eficiência dos hospitais psiquiátricos e o efeito dos mesmos na vida das pessoas em sofrimentos psíquico. Consequentemente, trouxe para o centro do debate da saúde mental as ideias de norma social e loucura, buscando reposicionar esta última no lugar de uma condição que é produzida socialmente. O hospital psiquiátrico passou a ser visto como uma instituição que devia ser problematizada. Há uma crítica contundente, segundo a qual esse seria um lugar de segregação, violação de direitos humanos e adoecimento. Ao propor a humanização na atenção e discutir a singularidade do cuidado, a Reforma Psiquiátrica evidencia a importância de ofertar uma atenção diferenciada às pessoas que têm problemas com drogas. Antes, todas estavam sob a mesma égide da loucura1919. Amarante P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.,2020. Costa NR, Siqueira SV, Uhr D, Silva PF, Molinaro AA. Reforma psiquiátrica, federalismo e descentralização da saúde pública no Brasil.Cien Saude Colet 2011; 16(12):4603-4614..

Com base nessas críticas, chamado a coordenar o processo de reestruturação de um dos grandes hospitais psiquiátricos pernambucanos, Mateus tomou como uma das suas primeiras medidas a divisão do hospital em pequenas Unidades. Uma das dez Unidades estruturadas voltou-se para acolher as pessoas que tinham problemas com drogas, especificamente, o álcool. Suzana, que também compunha esta equipe, conta que esta Unidade, inicialmente, foi criada lá no fundo do hospital, em um lugar meio deserto, meio separado. Referiu-se a esse processo de implementação de serviços como uma luta. Segundo ela, com articulação política e com a institucionalização de espaços de formação no cotidiano dos serviços recém implementados, tais desafios foram enfrentados.

Inicialmente, eram 30 leitos, voltados para alcoolistas. Todos ocupados por homens e a maior parte deles adultos. Posteriormente, a Unidade ganhou espaço e ocupou a antiga enfermaria do Hospital Psiquiátrico, passando a se configurar como um Centro de Prevenção, Tratamento e Reabilitação de Alcoolismo (CPTRA). Na mesma época, era também implementado outro serviço, o Centro Eulâmpio Cordeiro (CEC), que tinha como público prioritário as pessoas que utilizavamoutras drogas, sobretudo, maconha e cocaína.

A fala de Suzana se encontra com a de Antônio, quando faz considerações gerais sobre quem eram as pessoas que chegavam aos serviços de saúde, em função de uso de drogas, até a década de 1980. Antônio se refere à mesma população de homens e alcoolistas, já em idades mais avançadas – muitas vezes, a partir dos 40 anos. Ele inscreve a chegada da população de jovens, também em sua maioria homens, já no final da década de 1990, sobretudo, a partir dos problemas causados por uso de drogas ilícitas e problematiza o efeito dessa chegada no cotidiano dos serviços e práticas de saúde: Então, de um lado, tínhamos os alcoolistas mais velhos, quietos, na deles e tal; e, do outro lado, aqueles meninos agitando o serviço, fazendo uma correria, mexendo com todo mundo.

Segundo Antônio, esta chegada gera um questionamento sobre o que fazer com esses meninos jovens. Que tipo de dispositivo funcionaria melhor? Porém, diz que naquela época não existia um documento com diretrizes ou orientações específicas e conclui que até hoje essa é umaquestão para as políticas de saúde.

Mais uma vez, é importante marcar as condições de possibilidades políticas do momento histórico. Falar na década de 1990 é remeter-se a um período de efervescência na saúde pública brasileira, no qual se normatizava e se implementava o Sistema Único de Saúde. Entre as discussões, a polissemia implicada no princípio do SUS, da integralidade, se tornava estratégica para garantia do cuidado universal2121. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores.Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ; 2001. p. 39-64..

O conceito de integralidade e, a partir dele, ferramentas como o acolhimento e o vínculo conduzem-nos a olhar para as singularidades nas práticas de saúde2222. Franco TB, Bueno WS, Merhy EE. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: Betim, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 1999; 2(15):345-353.,2323. Pinheiro R. Práticas de saúde e integralidade: as experiências inovadoras na incorporação e desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de atenção aos usuários no SUS. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Experiências Inovadoras no SUS: relatos de experiências. Brasília: MS; 2002.. Partimos assim para buscar, entre nossos fios e teias, onde e em quais condições as singularidades referentes à categoria gênero são percebidas e consideradas nos cotidianos das tais práticas. É no CPTRA que localizamos as primeiras experiências cujos aspectos relacionados a gênero são mencionados. Nomeado como um programa de gênero por Mateus, foi instituído no CPTRA um grupo de mulheres alcoolistas, coordenado por Suzana, por aproximadamente dois anos. O grupo surgiu por demanda das mulheres atendidas no serviço, que relatavam se sentirem mais à vontade para trabalhar algumas questões, ditas femininas: As mulheres têm muita vergonha de buscar ajuda e elas são também muito discriminadas, quando pedem ajuda. No próprio serviço, lá no CPTRA, na época, quando chegava uma mulher... a gente do serviço tinha que lutar contra os nossos próprios preconceitos. Suzana afirmou que o funcionamento do grupo, quando só com mulheres, era muito diferente, era mais rico. Citou entre os assuntos trabalhados no grupo sentimentos, autoimagem, exposição à violência, cuidados pessoais, papel de mãe, papel de mulher... e concluiu: todas essas coisas saem muito num grupo de mulheres. Num grupo de homens isso não é tão importante.

A fala de Suzana, ao listar temas que seriam mais importantes para mulheres do que para homens, remete-nos às discussões sobre a normatividade, no que se refere a ser homem e ser mulher na nossa sociedade e, portanto, ao que dever ser interessante discutir entre homens e entre mulheres. Consequentemente, chegamos à problematização dos regimes de verdade que instituem a referida normatividade. Entre os fios e teias da nossa genealogia é possível encontrar pontos de conexão que, em uma perspectiva foucaultiana, poderiam ser nomeados comoarquivos2424. Foucault M. Politics and the study of fidcourse. In: Urschell G, Gordon C, Miller P, organizadores. The Foucault’s effect: studies in governamentality. London: Harvester; 1991. p. 51-72.. Compreendemos arquivo como um ou mais conjuntos de regras, inscritos em um determinado período histórico e em uma dada sociedade. Tais regras são compostas por um arranjo de discursos, sancionado e legitimado socialmente, diante do status de verdade que lhe é atribuído. São estes arquivos que, distribuídos no tecido social, marcam o pensamento de uma época e, por conseguinte, a construção de subjetividades, o que nos aproxima da discussão sobre masculinidade hegemônica2525. Connel R. Gender and power: Society, the person and sexual politics. Cambridge: Polity Press; 1987.,2626. Vale de Almeida M. Senhores de si. Uma interpretação antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim do Século; 1995..

Semelhante à compreensão de arquivo, nesta conceituação, há o reconhecimento de um padrão de práticas esperadas e não esperadas por um homem, que dialogam com os sentidos implicados na indicação que Suzana fez sobre temas e assuntos que não seriam bem-vindos em um grupo de homens. A masculinidade hegemônica é normativa, uma vez que dita a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens2727. Connel RW, Messerschmidt JW. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev. Estud. Fem. 2013; 21(1):241-282.. Apesar da maior parte dos homens não seguirem à risca o modelo normativo e hegemônico de masculinidade, a maioria deles sente os efeitos do mesmo2525. Connel R. Gender and power: Society, the person and sexual politics. Cambridge: Polity Press; 1987..

Se considerarmos este modelo normativo como um dos fatores importantes de legitimação das desigualdades entre homens e mulheres, compreendemos que é necessário estranhar o conceito de masculinidade hegemônica. Falamos de um exercício de estranhamento semelhante ao que propõe Miguel Vale de Almeida2626. Vale de Almeida M. Senhores de si. Uma interpretação antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim do Século; 1995., ao discutir a construção da identidade masculina em estudo antropológico, na comunidade de Pardais – região do Alentejo, em Portugal. O autor propõe um exercício de desnaturalização da masculinidade hegemônica e problematiza a existência de outras masculinidades – só há hegemonia de um modelo porque há outros modelos.

Entendemos que práticas de saúde comprometidas com a minimização de desigualdades sociais – incluindo, entre estas, as desigualdades de gênero – poderiam também se dispor a estranhar conceitos como o de masculinidade hegemônica e no cotidiano do exercício terapêutico oferecer possibilidades de desnaturalização da mesma e, portanto, de ressignificação e construção de outras formas de se vivenciar as masculinidades. Sobretudo, se lembrarmos que o lugar aparentemente privilegiado, atribuído ao homem, quando constatada a subordinação das mulheres, não só traz benefícios. Porém, em momentos distintos de suas entrevistas, Antônio, Suzana e Mateus reconhecem que discussões como esta, neste primeiro momento, ainda eram secundárias. Argumentam que a preocupação inicial era construir a rede, implementar equipamentos e formar equipes.

Um salto é dado no relato sobre a história das políticas de drogas em Pernambuco. Mateus sinaliza um hiato entre o tempo de implementação dos dois primeiros serviços, no final da década de 1980, e o início da gestão municipal, em 2004. Nesta, houve uma preocupação em implementar uma rede municipal de atenção aos usuários de álcool, fumo e outras drogas, marcada pela municipalização dos dois serviços estaduais já existentes, em consonância com as diretrizes do SUS, e pela implementação de outros serviços. É importante notar que isso acontece no ano posterior à publicação do documento da Política do Ministério da Saúde para atenção ao usuário de álcool e outras drogas.

Tal documento é considerado um marco nas políticas de saúde sobre drogas. Trata-se de um texto amplo, que tem início com a definição do marco teórico-político da Política, no qual a redução de danos já é apontada como estratégica para o reconhecimento de singularidades das pessoas que fazem uso de drogas e dos usos que cada uma está disposta a fazer na proposição de práticas de saúde. O texto segue com aContextualização do uso de drogas como problema de saúde, apresentando dados epidemiológicos que apontam para uma tendência mundial: o uso de substâncias psicoativas, incluindo o álcool, acontece cada vez mais cedo e de forma mais intensa. Neste tópico, são trazidas ainda algumas considerações sobre populações vulneráveis. Entre estas, inscreve-se o homem jovem, no que se refere à vulnerabilidade à violência. O documento chega assim à proposição deDiretrizes. Nestas, ao discutir o que seria necessário para reformular a política de drogas no Brasil, o documento refere-se ao reconhecimento das singularidades e, neste sentido, aos jovens: o aumento no início precoce em uso de drogas legais entre os jovens e utilização cada vez mais frequente de uso de drogas de design e crack, e o seu impacto nas condições de saúde física e psíquica dos jovens, notadamente pela infecção ao HIV e hepatites virais22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003..

Ao se remeter ao documento, Antônio, que acabara de chegar ao Ministério da Saúde, no momento de sua publicação diz: ele já fala de algumas questões relacionadas à população jovem, não necessariamente masculina, nesse recorte que você faz bem especifico, mas já faz referências à necessidade de trabalhar com essa população jovem, jovem adulta. Estaria, assim, implicado o reconhecimento de um perfil epidemiológico considerado vulnerável, porém não havia ainda o reconhecimento do gênero como uma condição também de vulnerabilidade e nem de raça e classe.

Mateus inscreveu o início da estruturação da rede municipal em 2004, com o Programa + VIDA, que já nasce como um programa de redução de danos. Os anos seguintes foram de implementação de serviços. Centros de Atenção Psicossocial, voltado para usuários de álcool, fumo e outras drogas; Unidades de Desintoxicação; Casas do meio do Caminho (albergues terapêuticos); equipes de redução de danos no território. A rede de Recife constituiu-se, procurando diversificar a atenção e as suas ofertas de cuidado. Entre os equipamentos criados, Mateus destaca um albergue voltado para mulheres. Mais uma vez, a compreensão de que as mulheres precisam de um olhar singularizado e que a manutenção de um espaço reservado só para elas garantiria uma maior eficácia no tratamento fazia-se presente.

Quando questionado sobre os demais aspectos de gênero considerados nas discussões acerca da implementação da rede, Mateus disse: Houve esta discussão muito mais na caracterização do perfil epidemiológico… você caracterizava o adulto jovem como sendo a faixa etária de maior consumo e, portanto, de maior necessidade de proteção. E discutia-se sobre o gênero feminino. Tinha a preocupação da questão da mulher e de criar espaços específicos para mulher, específicos para a proteção da mulher, como foi o Jandira (albergue terapêutico voltado para mulheres). Ao identificar o perfil do homem jovem como mais vulnerável, a fala de Mateus encontra-se com a de Antônio, que se refere a esta população também como a maior parte das pessoas atendidas pelos serviços. Logo, Antônio complementa que, apesar de não haver diretrizes ou orientações específicas sobre gênero, os efeitos das ações chegam a estes homens.

Suzana, ao discutir a organização dos serviços, reconhece a inscrição cultural dos homens e, ao mesmo tempo, afirma que a rede de serviços voltados para pessoas que usam drogas é composta por serviços que são destinados aos homens:Os homens de fato usam mais (drogas). É a nossa própria cultura, né? A nossa sociedade. E também a maioria dos serviços é criada para a população masculina, visando a população masculina. Entendemos que é essa constatação que parece dar margem ao movimento de implementação de serviços específicos para as mulheres. Trata-se de uma estratégia de acolhimento de uma população – neste caso, de mulheres – que tem dificuldade de chegar e se vincular à rede de cuidado.

Na contramão do que argumenta Suzana, ao referir-se que os serviços são criados e visam à população masculina, os estudos sobre masculinidades, no campo da saúde pública, destacam a ausência dos homens na maior parte dos serviços de atenção à saúde. Ressalta-se, mais uma vez, que modelos hegemônicos de masculinidades, socialmente construídos, nos quais o cuidado não é visto como um exercício de e para homens, podem criar obstáculos no acesso da população masculina aos serviços2828. Gomes R, Nascimento EF, Araújo FC. Por que os homens buscam menos os serviços de saúde do que as mulheres? As explicações de homens com baixa escolaridade e homens com ensino superior. Cad Saude Publica2003; 23(3):565-574..

Mais uma vez, ressaltamos a importância de se conhecer as particularidades de gênero para problematizar estas dificuldades de acesso, de vínculo e de atenção à saúde. Seriam os serviços voltados para drogas construídos para homens e os outros serviços, como os da atenção básica, voltados para mulheres? Ou as formas como estes serviços são construídos dialogam com as formas de ser homem e de ser mulher específicas e, por conseguinte, restritas?

A interdição da mulher nos espaços de saúde voltados para as pessoas que têm problemas com drogas, somada à dificuldade de incorporação de gênero como uma categoria analítica, dá margem a compreensão de que criar serviços específicos, considerando os diferentes sexos, seria uma alternativa para garantir o acesso e diminuir as iniquidades de gênero. Antônio, contudo, questiona e, ao mesmo tempo, tenta elaborar o que poderia ser uma estratégia para dar conta dessa questão: Talvez não fizesse muito sentido serviços separados, né? Serviços específicos para homens e serviços para mulheres, entendeu? Eu não tenho muito claro isso. [...] os serviços sempre foram pensados de uma maneira mista, né? Talvez, o que eu consiga encontrar como sendo uma saída ou pelo menos uma intervenção que seria interessante, seria criação de dispositivos de gênero específicos, dentro de cada serviço.A partir desta argumentação, cita experiências de grupo voltados para mulheres e cogita a possibilidade de também se construir grupos voltados para homens. E, assim, mantém o foco na especificidade do sexo como uma estratégia para discussão de gênero, não mais com serviços específicos; dessa vez, com grupos.

Atribuir a discussão de gênero a serviços ou grupos específicos parece semelhante a entender que o acolhimento se efetiva apenas garantindo uma porta de entrada amigável nos serviços. Se, por um lado, os grupos ou serviços voltados para sexos específicos podem ser estratégicos para dar visibilidade a temas que não tiveram espaço nas discussões que subsidiaram a estruturação das políticas sobre drogas, por outro, convém ressaltar que estes artifícios não são garantia do reconhecimento de gênero como uma categoria estruturante que produz efeitos e demarca inequidades no cotidiano dos serviços, nas práticas de saúde e na vida, de forma geral. É certo que, como dito por nossos entrevistados, os homens já estão nos serviços. Heilborn e Carrara2929. Heliborn ML, Carrara S. Em cena, os homens... Rev. Estud. Fem. 1998; 6(2):370-375. apontam que os homens eram considerados referentes implícitos nos discursos, uma vez que estavam posicionados como representantes universais da espécie humana. Porém, o que este estudo reivindica é que as políticas de drogas também possam ser instrumento na generificação do olhar para as populações; neste caso específico, para os homens jovens.

Considerações Finais

Embora o documento oficial da Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003. não faça menção direta, em suas diretrizes, à discussão de gênero, embora os profissionais entrevistados entendam que incorporar esta discussão é uma tarefa posterior ao presente movimento de implementar redes de serviços, e restrinjam suas intervenções à criação de serviços e/ou grupos a partir da referência de sexo, insistimos na generificação do olhar para homens e mulheres, nas práticas e políticas de saúde, como um caminho importante para a consolidação do cuidado integral. Lilia Schraiber3030. Schraiber LB. Necessidades de saúde, políticas públicas e gênero: a perspectiva das práticas profissionais. Cien Saude Colet 2012; 17(10):2635-2644., ao se referir às práticas em saúde, indica que os profissionais estranham o cuidado integral e define este estranhamento como uma alienação das marcas sociais de suas práticas.

O cotidiano dos serviços de saúde, voltados para pessoas que têm problemas com drogas, muitas vezes, produzem esta alienação. A repetição de práticas que têm a droga como foco e o dito usuário como um corpo esvaziado de cultura, somada à construção de estratégias terapêuticas que giram, quase exclusivamente, em torno da diminuição ou da eliminação do uso de drogas, é um exemplo disso. O centramento na substância e o paradigma da abstinência ofuscam a socialidade dos supostos adoecimentos, reduzindo-os à esfera biomédica, apagando a vida social da pessoa.

Que o exercício genealógico aqui produzido possa ajudar a romper com esta alienação, contribuindo para a politização das discussões no campo da saúde. Que as reflexões produzidas possam ser saber com vontade de verdade55. Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal; 1993.. E que assim possamos construir, nas políticas e no cotidiano das práticas de saúde, outros regimes que acolham integralmente as pessoas que usam e/ou têm problemas com drogas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2014
  • Aceito
    13 Dez 2014
  • Revisado
    15 Dez 2014
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