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A Estratégia de Saúde da Família, a atenção primária e o desafio das metrópoles brasileiras

Resumo

O artigo tem por objetivo analisar o desenvolvimento da atenção primária à saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS) nas metrópoles brasileiras. A opção pela APS constituiu uma reforma incremental do sistema de saúde por meio da Estratégia de Saúde da Família. O desenho metodológico do artigo tem como base dados de corte transversal agrupados em dois pontos do tempo (2008 e 2012) para avaliar o desenvolvimento da APS nas metrópoles. O artigo demonstra que o financiamento do setor saúde foi expandido em todas as cidades brasileiras, independente do porte populacional desde 2000. O crescimento das despesas municipais com ações e serviços públicos de saúde elucida o elevado nível de provisão de equipes de saúde da família observado nas pequenas cidades no começo da década de 2000. A análise da provisão mostra também que a oferta de equipes de saúde da família permaneceu relativamente estável no período analisado na maioria municípios de médio e grande porte populacional e nas metrópoles. O desenvolvimento da atenção primária no período estudado revela que o risco da excessiva oferta de serviços de saúde associada à denominada municipalização autárquica não ocorreu. As grandes cidades e as metrópoles realizaram um esforço importante, porém desigual, de expansão da AP.

Atenção primária; Descentralização; Federalismo; Política de saúde; Brasil

Abstract

This article analyzes the development of primary care (PHC) within the Unified Health System (SUS) in large Brazilian cities. The decision to adopt a policy of PHC represented an incremental reform of the health system through the Family Health Strategy (FHS). The methodological approach of the article uses cross-sectional data grouped around two years (2008 and 2012) to evaluate the development of PHC in the cities. The article demonstrates that the funding of the health sector expanded in all Brazilian cities, regardless of population size, in the early 2000s. The growth of municipal health expenditure in terms of public health actions and services helps to explain the high level of provision of family health teams that was observed mainly in small cities in the early 2000s. The analysis of health provision also shows that the provision of family health teams remained relatively stable during the period that was analyzed in most municipalities of medium and large population size, and also in the metropolises. The development of PHC during the studied period reveals that the risk of the over-supply of health services associated with the decentralization of the health sector did not occur in Brazil. The large cities and metropolises underwent a significant, but unequal, expansion of PHC.

Primary Care; Decentralization; Federalism; Health policy; Brazil

Introdução

O Brasil é reconhecido internacionalmente por suas ações para o desenvolvimento da atenção primária à saúde (APS) no nível local11. Pinto RM, Wall M, Yu G, Penido C, Schmidt C. Primary Care and Public Health Services Integration in Brazil’s Unified Health System American. J Public Health 2012; 102(11):69-77., porém poucos estudos tratam da implantação da APS em escala nacional. Com o objetivo de contribuir para a compreensão da experiência nacional, este artigo analisa o desenvolvimento da APS no Sistema Único de Saúde (SUS) nas metrópoles brasileiras.

O desenvolvimento da condição de “saúde para todos”, prevista na Constituição Federal de 1988, esteve associado a grandes ciclos de políticas públicas orientadas às necessidades da população22. Draibe SM. A Reforma dos Programas Sociais Brasileiros: panorama e trajetórias. Trabalho apresentado no GT 12 – Política e Economia. XXIV Encontro Anual da ANPOCS; Agosto 2000.. Com esta preocupação, a agenda do SUS sofreu radical mudança ao adotar a política pública da APS como opção estratégica para ampliar a efetividade da assistência à saúde. Desde 1994, o incentivo econômico dado aos Municípios para a adoção do Programa de Saúde da Família (em 2006 rebatizado como Estratégia de Saúde da Família – ESF), no contexto da cooperação federativa, alterou a oferta municipal de serviços de saúde e converteu o modelo assistencial tradicionalmente pautado na assistência hospitalar33. Viana ALD, Dal Poz MR. A Reforma do Sistema de Saúde do Brasil e o Programa Saúde da Família. Physis 1998; 8(2):16.. A ESF contempla um modelo de assistência centrado nas equipes de saúde, compostas por médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde, e operacionalizado pelos governos municipais11. Pinto RM, Wall M, Yu G, Penido C, Schmidt C. Primary Care and Public Health Services Integration in Brazil’s Unified Health System American. J Public Health 2012; 102(11):69-77.,33. Viana ALD, Dal Poz MR. A Reforma do Sistema de Saúde do Brasil e o Programa Saúde da Família. Physis 1998; 8(2):16.. A ESF trouxe, ademais, como principais características estratégicas a mudanças nos mecanismos de remuneração das ações de saúde, nas formas de organização dos serviços e nas práticas assistenciais no plano local e, portanto, no processo de descentralização33. Viana ALD, Dal Poz MR. A Reforma do Sistema de Saúde do Brasil e o Programa Saúde da Família. Physis 1998; 8(2):16..

Viana e Dal Poz33. Viana ALD, Dal Poz MR. A Reforma do Sistema de Saúde do Brasil e o Programa Saúde da Família. Physis 1998; 8(2):16. concluíram que a opção pela APS constituiu uma reforma incremental do sistema de saúde no Brasil tendo em vista que o Programa [de Saúde da Família] aponta para mudanças importantes na forma de remuneração das ações de saúde (superação da exclusividade de pagamento por procedimento), nas formas de organização dos serviços e nas práticas assistenciais no plano local.

O federalismo cooperativo foi uma pré-condição para a efetividade da nova orientação da política governamental na saúde, ratificando as conclusões da literatura44. Trench A. Intergovernmental Relations: in search of a theory. Greer SL, editor. Territory, Democracy and Justice – Regionalism and Federalism in Western Democracies. New York: Palgrave MacMillan; 2006. p. 224-236.. A mudança no modelo assistencial na saúde buscou a superação das falhas do arranjo oriundo da Previdência Social, com o objetivo de promover justiça distributiva territorial e eficiência alocativa.

No início da década de 2000 constatou-se que a meta da ampliação da provisão de serviços e ações da APS foi alcançada na maioria das pequenas cidades, com destaque para os Municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano55. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) – Um Panorama da Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. Entretanto, os Municípios brasileiros de grande porte – cidades com mais de 100 mil habitantes – apresentavam baixa aderência à ESF. A insignificante implantação nas grandes cidades foi considerada como uma limitação da estratégia de ampliação da efetividade do SUS66. Mattos R. O Incentivo ao Programa de Saúde da Família e seu Impacto sobre as Grandes Cidades. Physis 2002; 12(1):77-108.. A ESF era considerada a porta preferencial de entrada ao SUS. As grandes cidades tornaram-se, naquela conjuntura, alvo de uma política específica de incentivo: o Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF), implantado em 200377. Camargo Júnior KR, Campos EMS, Bustamante-Teixeira MT, Mascarenhas MTM, Mauad NM, Franco TB, Ribeiro LC, Alves MJM. Avaliação da Atenção Básica pela Ótica Política, Institucional e da Organização da Atenção com Ênfase na Integralidade. Cad Saude Publica 2008; 24(Supl. 1):58-68.. O PROESF explicitava o desconforto associado ao fato de que apenas três grandes cidades apresentavam cobertura populacional de Saúde da Família expressiva em 200066. Mattos R. O Incentivo ao Programa de Saúde da Família e seu Impacto sobre as Grandes Cidades. Physis 2002; 12(1):77-108.. A baixa cobertura da ESF suscitou muitas perguntas sobre as barreiras à adesão das grandes cidades ao modelo proposto pela ESF.

A necessidade de melhorar a efetividade das políticas públicas permanece, portanto, na agenda pública. A apreciação do padrão de desenvolvimentos das políticas públicas oriundas da democratização é crucial para a efetividade das escolhas dos agentes públicos no longo prazo. O desenvolvimento de pesquisas independentes pode, efetivamente, subsidiar as decisões do Ministério da Saúde e a agenda de prioridades do SUS.

Desenho do estudo

Favorecido pela grande disponibilidade de dados secundários no DATASUS, este artigo analisa o perfil das despesas próprias com ações e serviços de saúde e o padrão de provisão da ESF com dados de corte transversal agrupados, que combina dados de séries temporais e de corte88. Wooldridge JF. Introdução a Econometria – uma abordagem moderna. São Paulo: Thompson; 2006.. O uso do indicador de provisão de serviços, calculados a partir dos dados secundários, permite descrever o quantitativo de estabelecimentos para a população-alvo de um serviço ou programa de saúde99. Habicht JP, Victoria CG, Vaughan JP. Evaluation Designs for Adequacy, Plausibility and Probability of Public Health Programs Performance and Impact. Int J Epidemiol 1999; 1(28):10-18..

Recorrendo ao desenho proposto por Wooldridge88. Wooldridge JF. Introdução a Econometria – uma abordagem moderna. São Paulo: Thompson; 2006., os dados de corte transversal agrupados são avaliados em dois pontos do tempo: 2008 e 2012. Em 2008, uma estratificação de municípios com base na densidade populacional é descrita e analisada a partir das variáveis despesas próprias com ações e serviços públicos de saúde e provisão de equipes de saúde da família. Em 2012, uma nova estratificação de municípios é analisada por meios das mesmas variáveis do corte transversal anteriores.

A escolha destes dois pontos no tempo deve-se à formação agenda da Rede de Atenção à Saúde (RAS), formalizada em 2010 pelo Executivo federal. Segundo esta proposta, “o modelo de atenção à saúde vigente fundamentado nas ações curativas, centrado no cuidado médico e estruturado com ações e serviços de saúde dimensionados a partir da oferta, tem se mostrado insuficiente para dar conta dos desafios sanitários atuais e insustentável para os enfrentamentos futuros”1010. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM nº 4279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez.. Diante do diagnóstico, a proposta da RAS propõe a formação de relações horizontais entre o que denominam, enigmaticamente, os pontos de atenção com o centro de comunicação na APS. As experiências no país demonstrariam que, tendo a APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede, a RAS poderia atuar como “um mecanismo de superação da fragmentação sistêmica tanto em termos de organização interna (alocação de recursos, coordenação clínica, etc.), quanto em sua capacidade de fazer face aos atuais desafios do cenário socioeconômico, demográfico, epidemiológico e sanitário”1010. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM nº 4279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez.. A relevância da APS, como condição necessária para a instituição da Rede de Saúde, é igualmente reiterada também no Decreto-Lei 7.508/2011 – que regulamenta a Lei 8.080 de 1990.

Diante deste contexto, o artigo recorre às informações longitudinais sobre despesas com saúde e provisão da ESF disponíveis no DATASUS, de acesso público. A partir destas informações, o artigo realizou o calculo do indicador de provisão da ESF por meio da equação [(eSF/pop_ano) * 10.000 habitantes]. O termo eSF representa o quantitativo de equipes de saúde da família em um município brasileiro nos anos 2008 e 2012. O termo pop_ano representa população residente projetada pelo IBGE, cujas estimativas também estão disponíveis no sítio do DATASUS.

A despesa municipal é descrita pelo indicador de despesas próprias municipais com ações e serviços públicos de saúde, segundo o cálculo disponibilizado pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS)1111. Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS. [acessado 2015 jul 12]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php
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Com base no desenho utilizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), os municípios são estratificados, segundo a densidade populacional, nas categorias pequenos (até 50 mil habitantes), médios (mais de 50 mil e abaixo dos 100 mil habitantes) e grandes (mais de 100 mil habitantes e menos de 900 mil habitantes). A categoria metrópole contempla os 17 Municípios brasileiros com igual ou mais de 900 mil habitantes em 2008 e 20121212. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). National Social Assistance Policy – PNAS/2004. Brasília: MDS; 2005. Basic Operational Standard – NOB/SUAS..

Nesta estratificação, o MDS ressalta a importância das grandes cidades e metrópoles na provisão e demanda de serviços públicos em contextos regionais. No caso particular das metrópoles, os desafios de provisão e oferta são agravados pelas fronteiras territoriais com cidades com déficit expressivo de serviços públicos1212. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). National Social Assistance Policy – PNAS/2004. Brasília: MDS; 2005. Basic Operational Standard – NOB/SUAS..

A relevância dos dois estratos – grandes cidade e metrópoles – na provisão de ações e serviços de saúde deve-se ao fato de concentrarem 56% da população em apenas 5% dos Municípios do país1111. Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS. [acessado 2015 jul 12]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php
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. A falha na implantação da APS no território das grandes cidades e das metrópoles tem um significado crucial no julgamento da efetividade e qualidade do SUS.

Os entraves ao desenvolvimento da Estratégia de Saúde da Família

As análises sobre as dificuldades de adesão à ESF nas grandes cidades e metrópoles se dividiram em três perspectivas. Uma primeira linha de argumento concluiu que nos municípios de grande porte que implantaram a ESF se privilegiou a focalização nos grupos populacionais vulneráveis e com maior risco social. A alta cobertura populacional da ESF estaria diretamente associada e condicionada à prevalência de pobreza nos Municípios. Nessa ótica, os grandes municípios com baixa proporção de pobres teriam menor interesse em ampliar a cobertura. Essa interpretação ratificava as teses sobre a natureza de focalização e simplificação da oferta do SUS por meio da ESF. Segundo esta leitura, a focalização respondeu à necessidade de ampliação da oferta de serviços de saúde aos pobres e à especialização da oferta pública em serviços de menor complexidade tecnológica para a estabilização das despesas com saúde1313. Almeida C, Travassos CMR, Porto S, Baptista T. A Reforma Sanitária Brasileira em Busca da Equidade. Washington: PAHO; 1999. Research in Public Health. Technical Papers 17.

14. Marques RM, Mendes A. A Política de Incentivo do Ministério da Saúde para a Atenção Básica: uma ameaça à autonomia das gestões municipais e ao princípio da integralidade. Cad Saude Publica 2002; 18(Supl.):163-171.
-1515. Pereira ATS, Campelo ACFS, Cunha FS, Noronha J, Cordeiro H, Dain S, Pereira TR. A Sustentabilidade Econômico-Financeira no PROESF em Municípios. Cien Saude Colet 2006; 11(3):607-620..

Uma segunda linha argumentativa concluiu que os incentivos federais anteriores a EC-29 ainda eram insuficientes e a necessidade de contrapartida financeira municipal para o custeio da ESF representou um fator de inibição da sua expansão nos grandes Municípios. O crescimento da cobertura populacional da ESF dependeria exclusivamente da capacidade econômica do Município. Na federação brasileira, considerou-se que a ESF geraria incentivos iguais a todos os Municípios para aderir às preferências do governo central brasileiro. Marques e Mendes1414. Marques RM, Mendes A. A Política de Incentivo do Ministério da Saúde para a Atenção Básica: uma ameaça à autonomia das gestões municipais e ao princípio da integralidade. Cad Saude Publica 2002; 18(Supl.):163-171. destacaram, nesse sentido, que a indução do governo federal e dos estados à implantação de grande número de equipes transferia o ônus financeiro principal ao Município. As transferências não seriam, portanto, suficientes para pagar os custos totais das equipes. Os incentivos lineares utilizados pelo Ministério da Saúde não seriam adequados aos Municípios, diferenciados financeiramente1515. Pereira ATS, Campelo ACFS, Cunha FS, Noronha J, Cordeiro H, Dain S, Pereira TR. A Sustentabilidade Econômico-Financeira no PROESF em Municípios. Cien Saude Colet 2006; 11(3):607-620..

Uma terceira linha explicativa considerou que cidades com alta despesa com ações e serviços de saúde tenderiam a limitar os gastos com a expansão da ESF por força das restrições legais que impediriam o crescimento das despesas do governo municipal como um todo. Foram identificadas as consequências negativas da expansão da ESF para a contabilidade do gasto com pessoal dos grandes Municípios1616. Rocha Filho FS, Silva MGCA. Análise de Custos com Pessoal e Produtividade de Equipes do Programa de Saúde da Família no Ceará. Cien Saude Colet 2009; 14(3):919-928.. Essas dificuldades teriam sido acentuadas pelas restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar no101/2000) para o gasto com pessoal, que confrontava as exigências da época de formalização das equipes da Saúde da Família com servidores públicos no regime estatutário e a obrigatoriedade dos médicos terem um contrato de trabalho de 40 horas semanais.

Descentralização e federalismo cooperativo: revisando a década de 1990

A despeito destas limitações do processo de implantação e consolidação da ESF, as análises sobre o processo de descentralização da provisão da saúde sublinharam a convergência de agenda entre os governos nacional e subnacionais1717. Arretche MTS. Toward a Unified and More Equitable System: Health Reform in Brazil. Kaufman RR, Nelson JM, editors. Crucial Needs, Weak Incentives. Washington: Woodrow Wilson Center Press; 2010. p. 155-188.. Esta convergência tornou-se possível, a partir dos anos 1990, em função da delegação de importante “espaço de decisão”, no sentido que atribui Bossert1818. Bossert T. Analyzing the Decentralization of Health Systems in Developing Countries: decision space, innovation and performance. Soc Sci Med 1998; 47(10):1513-1527., para os níveis de governo subnacionais (Estados e Municípios).

A emergência e o desenvolvimento da descentralização das políticas sociais no Brasil foram favorecidos pelo baixo custo de execução da gestão, pela transferência de recursos de forma atrativa e pelos atributos administrativos de estados e municípios. Na área de saúde, a descentralização foi especialmente bem sucedida na ampliação da APS em razão de o setor compartilhar uma agenda de reforma setorial adequada à capacidade local que oferecia instrumentos para a competição eleitoral nos municípios1919. Arretche MTS. Políticas Sociais no Brasil: descentralização em um Estado Federativo. Rev Brasileira de Ciências Sociais 1999; 14(40):23-42..

Borges chama apropriadamente atenção para o fato de que, na democracia brasileira contemporânea, as escolhas de política pública realizadas pelos governos subnacionais levam em conta a competição política horizontal (entre partidos políticos) e a competição vertical (entre esferas de governo), além dos condicionantes socioeconômicos e demográficos2020. Borges A. Já Não Se Fazem Mais Máquinas Políticas Como Antigamente: competição vertical e mudança eleitoral nos estados brasileiros. Rev Sociologia Política 2010; 18(35):167-188.. Este artigo defende a ideia de que a política de expansão da APS cumpriu um importante papel ao permitir que as elites políticas pudessem distribuir bens públicos locais segundo as diretrizes universalistas propostas pelo Executivo federal.

A redefinição de competências e atribuições na esfera social foi parte do processo de transformação de um modelo de federação centralizada para um tipo de federalismo fortemente cooperativo. A transformação das funções exercidas pelo governo federal no contexto da redemocratização favoreceu a criação de mecanismos específicos de governança, competências e atribuições aos entes subnacionais. Os estados e os municípios tornaram-se responsáveis pela execução e gestão de políticas e programas sociais definidos em nível federal2121. Almeida MHT. Recentralizando a Federação? Rev Sociologia Política 2005; 24:13-27..

Neste contexto, a provisão municipal de APS ocupou a centralidade da agenda de governo e instituiu mecanismos contínuos de transferências financeiras federais para os entes subnacionais. Um obstáculo à descentralização era a ausência de estabilidade das fontes de financiamento e de autonomia financeira dos governos locais2222. Viana ALD. Descentralização e Política de Saúde – Origens, Contexto e Alcance da Descentralização. São Paulo: Hucitec; 2013.. Em resposta a este limite, a agenda da descentralização da saúde contou com a decisiva intervenção do Executivo federal ao longo da década de 1990. O governo central foi extremamente indutivo ao instituir mecanismo de incentivo financeiro para a descentralização, delegando, ainda que parcialmente, a execução do orçamento federal da saúde aos governos subnacionais2323. Franca JRM, Costa NR. A Dinâmica da Vinculação de Recursos para Saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(1):241-257..

Esta delegação parcial de poder decisório foi feita por meio de mecanismos inovadores de transferência financeira entre os governos federativos: a introdução das “transferências fundo-a fundo” em lugar dos convênios e do pagamento direto pelo governo federal às Secretarias de Saúde de Estados (SES) e Municípios (SMS). O mecanismo dos convênios e o pagamento direto, por definição, determinavam que as SES e SMS fossem, na prática, reduzidas a uma condição assemelhada aos demais prestadores de serviço credenciados (contratados ou conveniados) pelo SUS (filantrópicos ou privados)2222. Viana ALD. Descentralização e Política de Saúde – Origens, Contexto e Alcance da Descentralização. São Paulo: Hucitec; 2013..

Nesta condição, a política publica de saúde assumiu características claramente compartilhadas, indicando, ademais, que todos os atores do pacto federativo poderiam reivindicar o reconhecimento pelo desenvolvimento da política no território regional e local. Isto significou que o governo federal reduzia a posição de dominância na condução das políticas, estratégias ou programas de saúde implantados e desenvolvidos no âmbito do SUS.

O significado desta quase abdicação do monopólio na titularidade da política de saúde na década de 1990 – atenuando a competição eleitoral vertical – foi obscurecido pela produção intelectual sobre o período, que elegeu como foco a identificação dos limites que o ajuste macroeconômico imporia ao federalismo brasileiro. Por esta perspectiva economicista, o modelo de federalismo estaria inexoravelmente inviabilizado por força da política de estabilização econômica e contenção de gastos em saúde, que teriam produzido apenas constrangimentos e desequilíbrios federativos.

É possível argumentar, alternativamente, que, no contexto da redemocratização das décadas de 1980 e 1990, a sociedade brasileira resistiu ao processo de difusão do ajuste macroeconômico. Sem dúvida, as decisões de ajuste macroeconômico respondiam também às condicionalidades em políticas definidas pela comunidade financeira internacional. No Brasil, entre 1979 e 1994, houve nove planos de estabilização, cinco moedas, cinco congelamentos de preços, vinte e duas propostas de renegociação da dívida externa e dezenove modificações nas regras de câmbio.

Com a instituição da estabilização proposta pelo Plano Real, em 1994, pode-se dizer que o conjunto de instrumentos de política econômica do Estado brasileiro sofreu uma centralização organizada com o objetivo de estabilizar os gastos públicos, com efeitos significativos sobre a inserção da economia brasileira no processo de globalização. Tentativas de planos anteriores esbarraram em impasses de ordem política interna, além de inconsistência técnica na confecção dos mesmos e na ausência de condições internacionais que viabilizassem o seu sucesso2424. Costa NR. Política Social e Ajuste Macroeconômico. Cad Saude Publica 2002; 18(Supl.):13-21..

Mesmo com o sucesso do Plano Real, não houve uma descontinuidade no crescimento da proteção social nos anos seguintes à sua implantação: foi expandido o gasto público ao serem acolhidos os critérios universalistas para definição de novos direitos sociais. Esse incremento na incorporação de novas clientelas ao sistema de proteção social foi possibilitado pela bem sucedida implantação da Constituição de 1988. Os efeitos da agenda do ajuste macroeconômico foram, assim, significativamente atenuados pela falta de unidade política das elites democratizantes nacionais sobre o alcance do ajuste macroeconômico e pela afirmação dos interesses federativos2525. Weyland K. How Much Political Power Do Economic Forces Have? Conflicts over Social Insurance Reform. Brazil Journal of Public Policy 1996; 16(1):59-84.. Este alerta metodológico permite, sobretudo, reabrir o debate sobre o efeito da agenda do ajuste macroeconômico sobre a proteção social brasileira da década de 1990, superestimado pela produção intelectual, especialmente do campo da saúde coletiva, ao enfatizar o papel dos “agentes externos, organismos multilaterais e interesses privados”2626. Lima LD. Federalismo Fiscal e Financiamento Descentralizado do SUS: balanço de uma década expandida. Trab. educ. Saúde 2008; 6(3):573-598..

É necessário considerar, alternativamente, que as circunstâncias políticas singulares da democratização do país podem explicar as propostas do Executivo federal, na década de 1990, que realizaram mudanças de elevado custo de transação para obter a estabilidade das fontes de financiamento para o setor saúde. A definição de uma fonte de recursos por meio da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF) e a reforma da Constituição de 1988 pela Emenda Constitucional 29 (EC-29) são os eventos marcantes do processo de construção da estabilidade institucional do financiamento à saúde.

Como resultado do ativismo do Executivo federal, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) foi criada pela Emenda Constitucional 12, de 15 de agosto de 1996, que incluiu o art. 74 nas disposições transitórias que instituem a criação pela União de contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira. A arrecadação obtida pela CPMF deveria ser destinada integralmente ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde. A regulamentação da CPMF ocorreu por meio da Lei ordinária 9.311 de 24 de outubro de 1996. Leis, medidas provisórias e Emendas Constitucionais – 21/1999, 37/2002 e 42/2003 – prorrogaram a duração ou modificaram a alíquota da nova contribuição financeira. Havia a promessa de que não se poderia cobrar a CPMF por prazo superior a dois anos2727. Gomes FBC. Impasses no Financiamento da Saúde no Brasil: da constituinte à regulamentação da emenda 29/00. Saúde em Debate 2014; 38(100):6-17..

A CPMF foi extinta pelo Senado Federal em dezembro de 2007, no começo do segundo mandato do governo Lula, apesar do enorme esforço da coalizão no governo federal em mantê-la. Cabe assinalar que a mesma coalizão tentou, sem sucesso, inviabilizar a CPMF em 1996, durante a tramitação legislativa2727. Gomes FBC. Impasses no Financiamento da Saúde no Brasil: da constituinte à regulamentação da emenda 29/00. Saúde em Debate 2014; 38(100):6-17..

A análise da trajetória da alocação da CPMF destaca que os recursos foram de uso exclusivo da saúde apenas nos dois primeiros anos da sua implantação (1997 e 1998). No ano seguinte, uma parcela dos recursos foi direcionada para financiamento da Previdência Social e, em 2001, outra parcela passou a formar o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Assim, um percentual expressivo da CPMF ficou no caixa do Tesouro para ser utilizado em outras áreas, de modo que a parcela efetivamente repassada para a saúde, nos últimos anos, foi de aproximadamente 40% do total arrecadado2222. Viana ALD. Descentralização e Política de Saúde – Origens, Contexto e Alcance da Descentralização. São Paulo: Hucitec; 2013..

Ainda assim, Viana chama atenção para o fato da não prorrogação da CPMF, em 2007, representar o fim de uma das principais fontes de recurso para o financiamento da saúde, comprometendo a capacidade de execução das políticas do governo federal por meio do Ministério da Saúde2222. Viana ALD. Descentralização e Política de Saúde – Origens, Contexto e Alcance da Descentralização. São Paulo: Hucitec; 2013..

A trajetória da Emenda Constitucional 29 (EC-29) foi menos conturbada. Aprovada em 2000, estabeleceu percentuais mínimos de vinculação de recursos a serem investidos anualmente para financiar as ações e os serviços públicos de saúde nos estados (12%) e nos municípios (15%), tomando por base a receita fiscal proveniente da arrecadação de impostos e das transferências governamentais2323. Franca JRM, Costa NR. A Dinâmica da Vinculação de Recursos para Saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(1):241-257..

Apesar do dissenso sobre critérios e compromissos federativos, a EC-29 teve um efeito relevante na dinâmica do financiamento da saúde pela construção do consenso sobre: 1) a definição do que deve ser considerado como ações e serviços públicos de saúde para efeitos da vinculação de recursos; 2) o volume mínimo de recursos necessários ao setor, considerando que o SUS preconiza a universalização; c) e os critérios de vinculação. Em relação ao último item, para estados e municípios, os recursos a serem aplicados na área de saúde foram vinculados a um percentual da receita corrente. Para o governo federal, a vinculação de recursos para a saúde ficou subordinada ao desempenho do Produto Interno Bruto (PIB)2323. Franca JRM, Costa NR. A Dinâmica da Vinculação de Recursos para Saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(1):241-257.,2424. Costa NR. Política Social e Ajuste Macroeconômico. Cad Saude Publica 2002; 18(Supl.):13-21..

A expansão do setor saúde e as metrópoles brasileiras

A partir da pactuação pela EC-29 em 2000, o financiamento do setor saúde foi expandido em todas as cidades brasileiras, independente do porte populacional. Chama atenção que em todos os estratos municipais as despesas realizadas com ações e serviços públicos de saúde foram muito superiores ao mínimo esperado pela pactuação proposta pela EC-29 (15% da receita líquida municipal), como mostra a Tabela 1.

Tabela 1
Participação Percentual Média das Despesas Próprias Municipais as Ações e Serviços Públicos de Saúde Segundo o Porte Populacional Municipal – 2002-2010.

A despeito da extinção da CPMF em 2007, a propensão em elevar os dispêndios com o setor saúde não foi afetada, especialmente porque os governos municipais foram favorecidos por uma conjuntura de expansão de receitas2626. Lima LD. Federalismo Fiscal e Financiamento Descentralizado do SUS: balanço de uma década expandida. Trab. educ. Saúde 2008; 6(3):573-598.. A Tabela 1 mostra que os pequenos, médios e grandes municípios realizaram um grande esforço alocativo de recursos na saúde. As metrópoles foram menos expansivas, porém elas expandiram de modo igualmente expressivo a alocação de recursos na saúde. O crescimento das despesas próprias municipais produziu uma inesperada ampliação na participação proporcional dos governos locais nas despesas públicas nacionais com ações e serviços públicos de saúde: em 1995 a participação percentual municipal era de 12,3%. Em 2012, alcançou 18% das despesas públicas totais, enquanto as despesas dos governos estaduais mantiveram-se estabilizados em torno de ¼ dos gastos públicos nacionais. Por outro lado, observa-se a notável desaceleração da participação proporcional da instância federal entre 1995 e 2012, que foi reduzida de 61,7% para 57%2727. Gomes FBC. Impasses no Financiamento da Saúde no Brasil: da constituinte à regulamentação da emenda 29/00. Saúde em Debate 2014; 38(100):6-17.. Como indica estudo recente, contrariando o inexplicável consenso da literatura do campo da saúde coletiva, o financiamento deixou de ser prioritário no Executivo federal nos últimos anos2525. Weyland K. How Much Political Power Do Economic Forces Have? Conflicts over Social Insurance Reform. Brazil Journal of Public Policy 1996; 16(1):59-84..

O crescimento das despesas municipais com ações e serviços públicos de saúde elucida o elevado nível de provisão de equipes de saúde da família alcançado pelas pequenas cidades no começo da década de 20002828. Mendes A, Marques RM. O Financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate 2014; 38(103):900-916.. Ademais, a taxa de provisão observada nos anos seguintes mostra que a disponibilidade de equipes de saúde da família não só foi sustentada como ampliada nas pequenas cidades2929. Silva T. A Estratégia de Saúde da Família e as Grandes Cidades [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2011.. Como mostra a Tabela 2, a taxa média de provisão das pequenas cidades (4712 municípios em 2008) era de três (3) equipes de saúde da família por 10 mil habitantes. Na mesma Tabela 2 pode ser observado que, em 2012, a taxa de provisão nas pequenas cidades alcançou a surpreendente oferta de 3,3 equipes de saúde da família por 10 mil habitantes. Este altíssimo padrão de provisão de 2012 indica que a totalidade da população das cidades com até 30 mil habitantes pode ter sido alcançada pela ESF, considerando-se que cada equipe de saúde da família seja responsável por no mínimo três mil e, no máximo, quatro mil pessoas1010. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM nº 4279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez..

Tabela 2
Taxa Média de Provisão de Equipes de Saúde da Família por 10.000 habitantes segundo o Porte Populacional dos Municípios 2008-2012.

Nas cidades de tamanho médio, a provisão foi de 1,8 equipes de saúde da família por 10.000 habitantes em 2012, indicando o esforço alocativo igualmente importante da expansão da APS. A Tabela 2 mostra, ainda assim, que o padrão de provisão às equipes de saúde da família é inversamente proporcional ao porte das cidades. Em 2008, a dificuldade de provisão de equipes de saúde da família estava claramente colocada para as grandes cidades (1,2 equipes de saúde da família por dez mil habitantes) e, especialmente, para as metrópoles (0,9 equipes de saúde da família por dez mil habitantes). A variação do padrão de provisão mostra que a oferta de equipes de saúde da família permaneceu relativamente estável para o conjunto dos médios e grandes municípios e para as metrópoles na transição entre as décadas de 2000 e 2010. Ainda assim, cabe uma análise desagregada das variáveis dos 16 Municípios e do DF, na condição de metrópole, nos dois pontos do tempo (Tabela 3).

Tabela 3
Frequência de Equipes de Saúde da Família (eSF) e Provisão eSF por 10.000 Habitantes nas Metrópoles Brasileiras - 2008 – 2012.

A Tabela 3 demonstra que nas metrópoles – em especial no Rio de Janeiro, São Paulo e mesmo Belo Horizonte – o escopo e a escala da implantação da ESF eram absolutamente monumentais no começo da atual década. As megacidades mantinham, respectivamente, um contingente de 734, 1088 e 502 equipes de saúde da família em 2012 (coluna 3 da Tabela 3). Ainda assim, chama a atenção o crescimento tardio da provisão de equipes de saúde da família nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo quando comparado ao alcance que a política da APS já alcançava em Belo Horizonte em fins da década de 2000.

No período estudado observam-se, segundo as colunas 5, 6 e 7 da Tabela 3, três situações distintas nas metrópoles: 1) megacidades com um padrão de provisão de equipes de saúde da família diferenciado e, sobretudo, sustentável em Recife, São Gonçalo e, notadamente, Belo Horizonte; 2) estabilização, redução ou residual variação na disponibilidade de equipes de saúde da família em Belém, Fortaleza, São Luís, Salvador, Campinas, Goiânia e Porto Alegre; 3) a significativa expansão, em termos absolutos e relativos, na provisão de equipes de saúde da família observada em Brasília e em duas cidades da Região Sudeste: Guarulhos e Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro foi, no período analisado (2008 versus 2012), a metrópole que apresentou o maior crescimento na taxa de provisão de equipes de saúde da família por 10.000 habitantes. O desempenho destas metrópoles é um convite aos estudos qualitativos que possam refletir sobre motivações dos atores locais para a expansão da política pública da APS.

Conclusão

O desenvolvimento da ESF no período estudado revela que o risco da excessiva oferta de serviços de saúde associada à denominada “municipalização autárquica”3030. Nogueira RP. A Progressão do Caráter Federativo das Relações Institucionais do SUS. Linhares PTF, Mendes CC, Lassance A. Federalismo à Brasileira: Questões para Discussão. Brasília: IPEA; 2012. p. 55-58. não ocorreu. As grandes cidades e as metrópoles realizaram um esforço importante de expansão da APS dentro de um padrão cooperativo face às diretrizes nacionais.

A expansão não alcançou os estratos mais pobres em todos os Municípios a despeito da elevação generalizada de despesas próprias com programas e serviços de saúde dos governos locais.

A experiência de descentralização não tem recebido a atenção adequada a julgar pela surpreendente proposta da recentralização do sistema público de saúde no governo federal3131. Miranda A. Entrevista. Revista Poli Saúde Educação Trabalho 2015; 7(41):11-13.. É sempre bom lembrar que, na experiência brasileira, a centralização das politicas públicas foi diretamente correlacionada à supressão da federação pela coerção3232. Martins LA. Liberalização do Regime Autoritário no Brasil. In: O’Donnel G, Schmitter PC, Whitehead L. Transições do Regime Autoritário. São Paulo: Vértice; 1988. p.108-139..

O desconforto com o ativismo dos governos municipais deve-se, sem dúvida, ao desafio de desenvolver a política de saúde em um contexto democrático. A expansão da APS produziu uma disputa imprevista sobre o modelo de governança da administração pública. Os Executivos municipais [e também estaduais] realizaram mudanças organizacionais singulares em busca de respostas na esfera da gestão pública função das exigências da implantação da ESF. Essas mudanças promoveram uma reforma de Estado desarticulada e fragmentada, como esperado em um ambiente federativo3333. Greer T. Territory, Democracy and Justice – Regionalism and Federalism in Western Democracies. Greer SL, editor. New York: Palgrave MacMillan; 2006..

Os gestores do SUS foram impelidos à adoção de um mosaico de modalidades organizacionais para contornar as regras da Lei no 8.666/1993 (licitação) e da Lei no 8.112/1990 (regime estatutário), a carga da previdência social pública e, principalmente, a restrição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar no101/2000) para as despesas com pessoal no setor público. Esta singular reforma resultou em um quadro de alto experimentalismo organizacional em contradição com a regra da administração pública direta verticalizada como norma para todo o país3434. Costa NR. Alternativas de Governança na Gestão Pública In: Modesto P, Cunha Júnior LAP, organizadores. Terceiro Setor e Parcerias na Área de Saúde. Belo Horizonte: Editora Fórum; 2011. p. 93-106..

Antes do veto às mudanças, é necessária a ampliação das pesquisas independentes sobre as inovações nos mecanismos de governança no campo da APS, abrindo o necessário diálogo com as administrações públicas legitimamente eleitas.

Os limites da expansão da APS nas grandes cidades e metrópoles, identificados neste trabalho, exigem igualmente a reflexão sobre o papel regressivo e ambíguo do Ministério da Saúde no desenvolvimento do SUS nos últimos anos. É importante exigir um projeto positivo e abrangente para a ação do Ministério da Saúde nos dias atuais, com o mesmo padrão de rigor metodológico adotado para a análise da ação do governo federal na década de 1990, especialmente em relação à promoção da igualdade e à redução do desequilíbrio regional. A retomada da perspectiva crítica seria útil para a compreensão dos entraves ao desenvolvimento da APS: se os indicadores de provisão mostram que nas pequenas e médias cidades a universalização foi considerável, nas grandes e nas metrópoles o baixo padrão de provisão de ESF é uma fonte legítima de preocupação diante da errática resposta da esfera pública para a crise da assistência à saúde.

Uma justificativa para a inquietação é a recente proposta do Ministério da Saúde para a qualificação da APS por meio da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB, lançada de 20113535. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Brasília: MS; 2011.. A PNAB estabelece uma agenda de política pública com medidas orientadas à diversificação do modelo de assistência à saúde (criação do NASF, do Consultório de Rua) e ao afrouxamento das regras para a contratação de médicos para as equipes de saúde da família.

A PNAB legitima pela primeira vez, em documento do governo federal, os vínculos parciais de trabalho, retirando a irreal obrigatoriedade dos contratos de 40 horas com dedicação exclusiva para médicos nas equipes de saúde da família. Em meados da década passada foi verificado, em estudo exploratório, que a regra para a contratação de médicos pelo regime de 40 horas com dedicação exclusiva era um nó crítico para a expansão da ESF3636. Mendonça MHM, Martins MIC, Giovanella L, Escorel S. Desafios para gestão do trabalho a partir de experiências exitosas de expansão da Estratégia de Saúde da Família. Cien Saude Colet 2010; 15(5):2355-2365..

Entretanto a PNAB silencia em relação aos grandes municípios e metrópoles ao indicar a opção por um formato de financiamento federal para a atenção básica que favorece os municípios mais pobres, menores, com maior percentual de população pobre e extremamente pobre e com as menores densidades demográficas3535. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Brasília: MS; 2011..

Qual a justificativa desta decisão crucial de privilegiar as cidades pequenas diante da evidente fragilidade na provisão de APS observada também nas grandes cidades e metrópoles? A política da APS teria sido subordinada à agenda de verticalização eleitoral do Executivo implícita na proposta do programa Brasil Sem Miséria, formulado na mesma conjuntura3737. Paes-Sousa R, Vaitsman J. The Zero Hunger and Brazil without Extreme Poverty programs: a step forward in Brazilian social protection policy. Cien Saude Colet 2014; 19(11):4351-4360.?

A relação ambivalente do Executivo federal em relação à APS nas grandes cidades e metrópoles ficou ainda mais complexa pela implantação do importante programa do Executivo Federal denominado “Mais Médicos” – também explicitamente vocacionado à competição eleitoral vertical3838. Valor Econômico. Programa Mais Médicos Agradou à População. 13 de Dezembro de 2014..

O que se pode esperar para os próximos anos? Os estudos em escala nacional mostram que a bem sucedida focalização da política da APS na população de baixa renda está diretamente correlacionada ao crescimento dos planos privados de assistência à saúde nos estratos populacionais de renda média e alta3939. Costa NR, Vaitsman J. Universalization and Privatization: How Policy Analysis Can Help Understand the Development of Brazil’s Health System, Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice 2014; 16(5):441-456.. Diante desta constatação, não há dúvida de que a APS sintetiza a falha generalizada de governo ao não atuar como efetiva porta de entrada ao sistema, assegurando o acesso à assistência especializada e hospitalar11. Pinto RM, Wall M, Yu G, Penido C, Schmidt C. Primary Care and Public Health Services Integration in Brazil’s Unified Health System American. J Public Health 2012; 102(11):69-77.. O cidadão brasileiro sempre que ascende economicamente, busca a condição de saída do sistema público de saúde3939. Costa NR, Vaitsman J. Universalization and Privatization: How Policy Analysis Can Help Understand the Development of Brazil’s Health System, Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice 2014; 16(5):441-456.. Assim não há dúvida que permanece o desafio de realizar o objetivo cívico de organização do sistema de saúde efetivamente público e universal no país.

Agradecimentos

O autor agradece as valiosas sugestões de Deborah Uhr, Elize Massard da Fonseca e do parecerista anônimo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2015
  • Revisado
    26 Jan 2016
  • Aceito
    28 Jan 2016
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