Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) apontou que os acidentes de trânsito (AT) causaram a perda de 1,3 milhões de vidas no ano de 2010 (2,2% do total de mortes no mundo), situando-os entre as dez maiores causas de morte. Soma-se a isso que, no mesmo ano, outras 20-50 milhões de pessoas foram feridas por conta dos AT1.
Em particular, esse número elevado de mortes e lesões deve-se ao aumento de AT em países de renda baixa e média. Nesse sentido, esses países têm concentrado 80% das mortes por AT do mundo, apesar de contarem com apenas 52% da frota mundial de veículos automotores1.
De fato, a falta de ações efetivas promoverá os AT à quinta posição entre as maiores causas de morte no mundo no ano de 20302. Assim, com o objetivo de salvar cinco milhões de vidas, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou o período de 2011 a 2020 como a “Década de Ação pela Segurança no Trânsito”1.
No Brasil, a estimativa da taxa de mortalidade por AT, para o ano de 2010, foi de 22,5 mortes/100 mil habitantes, superior à taxa correspondente de países de renda média e das Américas3. Nesse cenário, de 1980 a 2011, foi registrado um total de 980.838 mortes por AT no país, um número que vem aumentando em ritmo acelerado4. Ainda nesse sentido, mais recentemente, no ano de 2012, o Sistema Único de Saúde (SUS), através do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), registrou o acontecimento de 44.812 mortes no país em decorrência de algum AT, assim como 159.152 internações hospitalares foram registradas para o atendimento de vítimas de AT5. Em conjunto, isso tem resultado na perda de 1.230.944 anos de vida útil por morte prematura ou por lesões entre os brasileiros, por conta do acontecimento de AT, especialmente entre os homens6.
Também recentemente, no ano de 2011, o relatório sobre “Estatísticas de Acidentes” do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) apontou que um total de 331.652 AT ocorreu nas rodovias federais, distribuído, de acordo com o tipo de veículo, da seguinte forma: (a) 179.206 envolveram veículos de passeio, (b) 93.066 veículos de carga e (c) 34.635 motocicletas. Assim, de acordo com essas informações, os caminhões compuseram a segunda categoria de veículos mais envolvida em AT, o que também equivale a dizer que três a cada dez AT no país envolveram veículos de carga7. Mais uma vez, esse dado é preocupante ao se considerar que pouco mais de 3% da frota nacional é constituída por caminhões8.
A isso se soma que o número de óbitos e a taxa de mortalidade de ocupantes de caminhão aumentaram em 103,2% e 66%, respectivamente, no período de 1996 a 2011 no país4. Além disso, os motoristas de caminhão compõem a segunda categoria de trabalhadores mais envolvida em afastamentos do trabalho por incapacidade temporária (32,5%), invalidez (27,9%) e óbito (33,2%)9.
O Ministério da Saúde (MS) classifica os AT como causas evitáveis ou reduzíveis de mortes10. Por outro lado, como bem ilustrado por Waiselfisz4, os AT não poderiam ser compreendidos como causas fortuitas de morte, de tal forma que identificar os fatores relacionados conduziria a uma melhor compreensão desse fenômeno, possibilitando então o desenvolvimento de políticas de saúde e segurança específicas. Nesse cenário, afora levantamentos sobre a estatística de acidentes ocorridos em nosso país4,7,11, poucas publicações têm focado o tema dos AT no Brasil12, raramente entre os motoristas de caminhão. Os poucos estudos disponíveis a respeito têm sugerido que a organização da atividade ocupacional desses profissionais seja um fator que os torne vulneráveis a acidentes e doenças13-15. Nesse sentido, a privação de sono, a sonolência diurna excessiva, os transtornos psiquiátricos e o uso de substâncias psicoativas já foram mencionados como fatores associados à ocorrência de AT nesse segmento social16-19, entretanto, tais condições de saúde foram levantadas isoladamente de outros possíveis fatores de risco.
O engajamento em violações de trânsito também tem sido mencionado como fator interferente sobre a ocorrência de AT20, entretanto ainda não se conhece sua prevalência e tampouco sua associação a AT em amostras de motoristas de caminhão. Considerando que essa lacuna do conhecimento dificulta uma ampla compreensão dos AT em nosso país, o presente estudo avaliou a prevalência de ocorrência destes em uma amostra de motoristas de caminhão e seus fatores relacionados através do desenvolvimento de um modelo de regressão logística, controlando os efeitos decorrentes da interferência de informações sociodemográficas, ocupacionais, do uso de substâncias psicoativas, estresse emocional, privação e má qualidade de sono, transtornos psiquiátricos e engajamento em violações de trânsito. Assim, neste estudo, propusemos a avaliação desses fatores de forma integrada, levantando hipóteses sobre as condições que pudessem interferir sobre a habilidade da categoria dos motoristas profissionais de caminhão de conduzir de forma segura pelas vias públicas de nosso país.
Métodos
Uma amostra não probabilística de 684 motoristas de caminhão que circulavam por três rodovias do Estado de São Paulo (Presidente Dutra, Fernão Dias e Cônego Domênico Rangoni) foi recrutada em postos de atendimento das entidades civis Serviço Social do Transporte (SEST) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT).
Como a pesquisa que originou este estudo pretendeu avaliar os efeitos do uso de substâncias psicoativas sobre o funcionamento de atenção de motoristas de caminhão, os sujeitos que apresentassem pelo menos uma condição de saúde que interferisse nessa avaliação foram excluídos da amostra, a citar: (a) ter dificuldade para a visualização de cores; (b) estar sob o uso terapêutico de medicamentos psicoativos; (c) relatar o acontecimento de traumatismo crânio-encefálico (TCE) na vida; (d) ter sofrido algum episódio com perda de consciência na vida; (e) ter histórico de doenças neurológicas, assim como (f) soropositividade para HIV.
Os motoristas de caminhão foram abordados por um recrutador da equipe nos postos de atendimento do SEST-SENAT, nas rodovias supracitadas, e informados sobre a realização da pesquisa. Ao consentirem participar, os motoristas foram encaminhados a entrevistadores que explicaram os objetivos do estudo, o tempo necessário para responder os instrumentos de pesquisa, sempre ressaltando os princípios de voluntariedade e confidencialidade das informações. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi lido pelos entrevistadores e, quando de acordo, assinado pelos participantes. Todos os participantes foram avaliados individualmente, em ambientes fechados, seguros e silenciosos cujo uso havia sido destinado exclusivamente à realização das atividades deste estudo.
Os motoristas de caminhão que efetivamente participaram do estudo foram então solicitados a responder um instrumento de pesquisa, já usado com esses profissionais, no Brasil, por Leyton et al.21, para o registro de informações demográficas e ocupacionais. Como parte desse instrumento, os participantes foram questionados sobre a experiência pessoal com o uso de álcool e outras drogas, bem como sobre o engajamento em violações de trânsito e AT. A identificação dessas três variáveis foi feita conforme três indicadores: envolvimento na vida (“pelo menos uma vez na vida”), no ano (“pelo menos uma vez nos doze meses que antecederam a entrevista”) e no mês.
O envolvimento em violações de trânsito incluiu: (a) dirigir sem cinto de segurança; (b) dirigir em velocidade superior à máxima permitida na via pública; (c) ter discussões ou brigas no trânsito; (d) ter recebido alguma multa por qualquer motivo e (e) dirigir sob o efeito de álcool.
O envolvimento em AT foi considerado apenas durante a execução da atividade profissional de motorista de caminhão através da pergunta “o senhor já se envolveu em algum AT?”. A definição de AT explicada aos participantes foi a utilizada pela OMS22, ou seja, considerou-se que um AT era um dano fatal ou não fatal que teria acontecido como resultado de uma colisão envolvendo pelo menos um veículo em movimento, em via pública.
Os participantes foram também solicitados a responder instrumentos de pesquisa para a avaliação de outras variáveis de saúde mental, cujo efeito foi controlado no modelo de regressão logística detalhado adiante, a citar: (a) estresse emocional (Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp; ISSL), (b) transtornos psiquiátricos (“Mini International Neuropsychiatric Interview”; M.I.N.I; utilizou-se as seções referentes à depressão maior, mania, hipomania, ansiedade generalizada, transtorno de pânico, agorafobia e transtorno de estresse pós-traumático); (c) privação e qualidade de sono (Índice de Qualidade de Sono de Pittsburgh, PSQI) e (d) sonolência excessiva (Escala de Sonolência de Epworth; ESE).
Posteriormente, todos os instrumentos de pesquisa foram corrigidos e submetidos à digitação dupla no software Epi-Info v.6.0. Checagens de consistência das informações e correções pertinentes foram realizadas. Depois, os dados foram transferidos e analisados no software R, versão 2.15.1. As variáveis categóricas foram expressas em porcentagens (%) e as numéricas (inicialmente expressas em média ± desvio padrão) foram categorizadas conforme o valor da mediana, à exceção da variável “jornada diária de trabalho” cujo ponto de corte (igual a 12 horas diárias) seguiu o proposto pela Lei N° 12.619/2012 que regulamenta a profissão do motorista de caminhão de nosso país. A variável-desfecho deste estudo foi o envolvimento em AT no ano, possibilitando o agrupamento dos participantes em: ATsim; ATnão.
As análises bivariadas foram conduzidas através do emprego dos testes χ2 de Pearson e Teste Exato de Fisher. As variáveis que atingiram p < 0,25 foram incluídas em um modelo de regressão logística e selecionadas através do método de “backward elimination”. A razão de chances (RC; IC95%) foi calculada como medida de associação. A hipótese nula foi refutada quando p < 0,05. O ajuste do modelo foi avaliado por meio da análise do resíduo componente do desvio e da distância de Cook. O diagnóstico de multicolinearidade foi avaliado pelo impacto nas estimativas dos parâmetros e por meio do VIF (“Variance Inflation Factor”).
Este estudo está em conformidade com a Declaração de Helsinki, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo, FMUSP.
Resultados
Dos 684 motoristas de caminhão que aceitaram participar do estudo, 149 (22,0%) foram excluídos por ter preenchido pelo menos um dos critérios de exclusão da pesquisa original, de tal forma que foram consideradas as informações referentes a 535 indivíduos. O número de sujeitos incluídos e excluídos da pesquisa que originou este estudo, distribuídos de acordo com a rodovia em que foram recrutados, é mostrado na Figura 1.

Figura 1 Diagrama ilustrativo sobre a distribuição da amostra de motoristas de caminhão que trafegavam pelas rodovias do Estado de São Paulo, entre junho de 2012 e setembro de 2013, segundo os critérios de inclusão e exclusão da pesquisa que originou esse estudo (adaptado de Eckschmidt23).Nota: Rodovia C. Rangoni = Rodovia Cônego Domênico Rangoni.
Todos os participantes eram homens, jovens adultos (idade média de 36,5 ± 7,8 anos), de baixa escolaridade (média de 8,6 ± 2,3 anos) e a maioria deles (81,1%) declarou-se casada ou vivendo maritalmente com alguém. Em relação às condições ocupacionais, os participantes declararam trabalhar como motoristas profissionais de caminhão há uma média de 12,5 ± 8,1 anos, 61,2% deles estavam contratados por alguma empresa no momento da entrevista, 78,9% trabalhavam em período diurno (manhã/tarde) e realizavam uma média de 12,2 ± 3,9 horas de jornada diária de trabalho (Tabela 1).
Tabela 1 Informações sociodemográficas e ocupacionais de motoristas de caminhão abordados em rodovias do Estado de São Paulo, conforme o relato de acontecimento de AT nos doze meses prévios à entrevista (N = 535). Rodovias do Estado de São Paulo, de 13 de Junho de 2012 a 25 de Setembro de 2013.
Variáveis | Acidente de Trânsito | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total | Não | Sim | RC | IC95% | p-valor | |||||
N | % | N | % | N | % | |||||
Idade (anos) | 36,5 ± 7,80 | 36,7 ± 7,27 | 34,9 ± 8,31 | |||||||
< = 35 | 260 | 48,7 | 226 | 47,4 | 34 | 59,6 | 1,64 | 0,91-3,01 | 0,107 | |
> 35 | 274 | 51,3 | 251 | 52,6 | 23 | 40,4 | 1 | |||
Escolaridade (anos) | 8,6 ± 2,29 | 8,6 ± 2,29 | 8,7 ± 2,33 | |||||||
< = 9 | 261 | 48,8 | 237 | 49,6 | 24 | 42,1 | 1 | 0,286 | ||
> 9 | 274 | 51,2 | 241 | 50,4 | 33 | 57,9 | 1,35 | 0,78-2,36 | ||
Estado civil | ||||||||||
Solteiro | 101 | 18,9 | 89 | 18,6 | 12 | 21,0 | 1,16 | 0,657 | ||
Não solteiro | 434 | 81,1 | 389 | 81,4 | 45 | 79,0 | 1 | 0,59-2,29 | ||
Anos de profissão | 12,5 ± 8,14 | 12,6 ± 8,10 | 11,5 ± 8,52 | |||||||
< = 11 | 283 | 52,9 | 246 | 51,5 | 37 | 64,9 | 1,74 | 0,055* | ||
> 11 | 252 | 47,1 | 232 | 48,5 | 20 | 35,1 | 1 | 0,98-3,09 | ||
Tipo de serviço | ||||||||||
Contratado | 327 | 61,2 | 287 | 60,2 | 40 | 70,2 | 1,56 | 0,143 | ||
Autônomo | 207 | 38,8 | 190 | 39,8 | 17 | 29,8 | 1 | 0,86-2,83 | ||
Turno de trabalho | ||||||||||
Dia | 422 | 78,9 | 376 | 78,7 | 46 | 80,7 | 1,13 | 0,721 | ||
noturno e outros | 113 | 21,1 | 102 | 21,3 | 11 | 19,3 | 1 | 0,57-2,27 | ||
Jornada diária (horas) | 12,2 ± 3,90 | 12,1 ± 3,94 | 13,0 ± 3,45 | |||||||
< = 12 | 354 | 66,2 | 324 | 67,8 | 30 | 52,6 | 1 | 0,022* | ||
> 12 | 181 | 33,8 | 154 | 32,2 | 27 | 47,4 | 1,89 | 1,09-3,30 | ||
Total | 535 | 478 | 57 |
IC95%: Intervalo de confiança com coeficiente de confiança de 95%;
*estatisticamente significante: p<0,05.
Entre eles, 48,0% relataram ter sofrido algum AT pelo menos uma vez na vida, 10,6% no ano e 2,6% no período dos trinta dias prévios à entrevista. Já 98,1% dos participantes relataram ter engajado em pelo menos uma violação de trânsito na vida, 89,0% no ano e 73,5% no mês.
Os participantes que já haviam sofrido algum AT no ano tinham maior carga diária de trabalho (p = 0,022) que os pares que relataram não ter tido. Nenhuma outra variável sociodemográfica ou ocupacional esteve associada ao desfecho de AT no ano (Tabela 1).
Particularmente quanto às violações de trânsito, 60,2% dos participantes afirmaram ter sido multados por qualquer motivo, 61,3% dirigiram sem cinto de segurança, 52,9% conduziram o veículo em velocidade superior à máxima permitida pela via pública, 12,7% brigaram ou discutiram no trânsito e 6,9% dirigiram sob o efeito de álcool no período referente aos doze meses prévios à entrevista. Quase 90% dos participantes relataram ter engajado em algum desses comportamentos (Tabela 2) e todos os participantes que haviam sofrido AT no ano haviam cometido pelo menos uma violação de trânsito no mesmo período.
Tabela 2 Violações de trânsito, uso de drogas e saúde mental de motoristas de caminhāo abordados em rodovias do Estado de Sāo Paulo, conforme o relato de acontecimento de AT nos doze meses prévios à entrevista (N = 535). Rodovias do Estado de São Paulo, de 13 de Junho de 2012 a 25 de Setembro de 2013.
Acidente de Trânsito | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total | Não | Sim | RC | IC95% | p-valor | ||||||
N | % | N | % | N | % | ||||||
Comportamentos de risco no trânsito | |||||||||||
Ter sido multado | |||||||||||
Não | 213 | 39,8 | 198 | 41,4 | 15 | 26,3 | 1 | 0,028* | |||
Sim | 322 | 60,2 | 280 | 58,6 | 42 | 73,7 | 1,98 | 1,07-3,67 | |||
Ter dirigido sem cinto de segurança | |||||||||||
Nāo | 207 | 38,7 | 186 | 38,9 | 21 | 36,8 | 1 | 0,762 | |||
Sim | 328 | 61,3 | 292 | 61,1 | 36 | 63,2 | 1,09 | 0,62-1,92 | |||
Ter dirigido acima da velocidade permitida | |||||||||||
Não | 252 | 47,1 | 223 | 46,7 | 29 | 50,9 | 1,18 | 0,68-2,05 | 0,546 | ||
Sim | 283 | 52,9 | 255 | 53,3 | 28 | 49,1 | 1 | ||||
Ter brigado ou discutido no trânsito | |||||||||||
Nāo | 467 | 87,3 | 418 | 87,5 | 49 | 86,0 | 1 | 0,679 | |||
Sim | 68 | 12,7 | 60 | 12,5 | 8 | 14,0 | 1,14 | 0,52-2,52 | |||
Ter dirigido sob o efeito de álcool | |||||||||||
Não | 498 | 93,1 | 445 | 93,1 | 53 | 93,0 | 1 | > 0,999 | |||
Sim | 37 | 6,9 | 33 | 6,9 | 4 | 7,0 | 1,02 | 0,35-2,98 | |||
Qualquer violação de trânsito | |||||||||||
Não | 59 | 11,0 | 59 | 12,3 | 0 | 0,0 | 0,005* | ||||
Sim | 476 | 89,0 | 419 | 87,7 | 57 | 100,0 | |||||
Uso de drogas e saúde mental | |||||||||||
Uso de álcool | |||||||||||
Não | 120 | 22,4 | 108 | 22,6 | 12 | 21,0 | 1 | 0,792 | |||
Sim | 415 | 77,6 | 370 | 77,4 | 45 | 79,0 | 1,09 | 0,56-2,14 | |||
Uso de pelo menos uma droga ilícita | |||||||||||
Nāo | 369 | 69,0 | 334 | 69,9 | 35 | 61,4 | 1 | 0,191 | |||
Sim | 166 | 31,0 | 144 | 30,1 | 22 | 38,6 | 1,46 | 0,83-2,57 | |||
Estresse (ISSL) | |||||||||||
Não | 468 | 87,6 | 422 | 88,5 | 46 | 80,7 | 1 | 0,092 | |||
Sim | 66 | 12,4 | 55 | 11,5 | 11 | 19,3 | 1,83 | 0,89-3,75 | |||
Ter algum diagnóstico psiquiátrico (MINI) | |||||||||||
Nāo | 494 | 92,5 | 444 | 93,1 | 50 | 87,7 | 1 | 0,146 | |||
Sim | 40 | 7,5 | 33 | 6,9 | 7 | 12,3 | 1,88 | 0,79-4,47 | |||
Qualidade de sono (PSQI) | |||||||||||
Boa | 231 | 43,2 | 208 | 43,5 | 23 | 40,4 | 1 | 0,649 | |||
Ruim | 304 | 56,8 | 270 | 56,5 | 34 | 59,6 | 1,14 | 0,65-1,99 | |||
Sonolência Excessiva (ESE) | |||||||||||
Ausente | 354 | 66,2 | 321 | 67,2 | 33 | 57,9 | 1 | 0,163 | |||
Moderada/Grave | 181 | 33,8 | 157 | 32,8 | 24 | 42,1 | 1,49 | 0,85-2,60 | |||
Horas de sono | 0,298 | ||||||||||
< = 7 | 325 | 60,8 | 294 | 61,5 | 31 | 54,4 | 1 | ||||
> 7 | 210 | 39,2 | 184 | 38,5 | 26 | 45,6 | 1,34 | 0,77-2,33 | |||
Total | 535 | 478 | 57 |
ISSL = “Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp” para a avaliaçāo da presença de sintomas de estresse emocional;MINI = “Mini International Neuropsychiatric Interview” para a avaliação da existência de transtornos psiquiátricos;PSQI = “Índice de Qualidade de Sono de Pittsburgh”, para a avaliaçāo da qualidade de sono e presença de transtornos do sono;ESE = “Escala de Sonolência de Epworth” para a avaliação da existência de sonolência excessiva diurna; IC95%: Intervalo de confiança com coeficiente de confiança de 95%;
*estatisticamente significante: p<0,05.
Em relação ao uso de drogas, 77,6% dos participantes afirmaram ter usado álcool e 31,0% deles alguma droga ilícita no ano. No momento da entrevista, 12,4% dos participantes teriam um possível diagnóstico de estresse emocional e 7,5% algum transtorno psiquiátrico. Ainda, seis a cada dez participantes dormiam menos de sete horas diárias, assim como tinham má qualidade de sono (conforme os critérios do Índice de Qualidade de Sono de Pittsburgh - PSQI) e, possivelmente por conta disso, 33,8% dos entrevistados já estariam sofrendo de sonolência excessiva diurna (Tabela 2).
Ainda, os motoristas que foram envolvidos em algum AT no ano haviam recebido multas de trânsito mais frequentemente que seus pares que não sofreram AT (p = 0,028). Aparte, nenhuma variável de saúde mental esteve associada ao desfecho de AT no ano (Tabela 2).
A Tabela 3 mostra os resultados do modelo de regressão logística desenvolvido. Os anos de experiência como motorista profissional (p = 0,036), a jornada diária de trabalho (p = 0,034) e ter recebido multas de trânsito no ano (p = 0,043) foram as variáveis que despontaram como os fatores associados à ocorrência de AT através do modelo de regressão logística ajustado. Após o controle do efeito das variáveis sociodemográficas, ocupacionais e de saúde mental (entre elas, o uso de substâncias psicoativas), os seguintes resultados foram observados: (a) os participantes com menos anos de profissão tiveram maiores chances de ter sofrido AT que os pares profissionalmente mais experientes (RC = 1,86); (b) os participantes que dirigiam mais de doze horas diárias tiveram maiores chances de envolver-se em AT que aqueles que dirigiam período menor (RC = 1,84) e, finalmente, (c) os motoristas que haviam recebido alguma multa de trânsito tiveram maiores chances de envolver-se em AT que aqueles que não haviam sido multados (RC = 1,91).
Tabela 3 Estimativas antes e após o ajuste de modelo de regressão logística sobre os fatores relacionados ao acontecimento de AT entre motoristas de caminhão abordados em rodovias do Estado de São Paulo (N = 535). Rodovias do Estado de Sāo Paulo, de 13 de Junho de 2012 a 25 de Setembro de 2013.
Variáveis | Sem ajuste | Após ajuste | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
RC | IC95% | p-valor | RC | IC95% | p-valor | ||
Idade (anos) | |||||||
< = 35 | 1,64 | 0,91-3,01 | 0,107 | –– | –– | –– | |
> 35 | 1 | ||||||
Anos de profissão (anos) | |||||||
< = 11 | 1,74 | 0,98-3,09 | 0,055 | 1,86 | 1,05-3,38 | 0,036* | |
> 11 | 1 | 1 | |||||
Tipo de serviço | |||||||
Contratado | 1,56 | 0,86-2,83 | 0,143 | –– | –– | –– | |
Autônomo | 1 | ||||||
Jornada diária (horas) | |||||||
< = 12 | 1 | 0,022 | 1 | 0,034* | |||
> 12 | 1,89 | 1,09-3,30 | 1,84 | 1,04-3,24 | |||
Ter sido multado no trânsito | |||||||
Não | 1 | 0,028 | 1 | 0,043* | |||
Sim | 1,98 | 1,07-3,67 | 1,91 | 1,04-3,66 | |||
Uso de pelo menos uma droga ilícita | |||||||
Nāo | 1 | 0,191 | |||||
Sim | 1,46 | 0,83-2,57 | –– | –– | –– | ||
Estresse (ISSL) | |||||||
Não | 1 | 0,092 | |||||
Sim | 1,53 | 0,89-2,59 | –– | –– | –– | ||
Diagnóstico psiquiátrico (MINI) | |||||||
Não | 1 | 0,146 | |||||
Sim | 1,36 | 0,70-2,65 | –– | –– | –– | ||
Sonolência Excessiva (ESE) | |||||||
Ausente | 1 | 0,163 | |||||
Moderada/Grave | 1,49 | 0,85-2,60 | –– | –– | –– | ||
Total | 535 |
ISSL = “Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp” para avaliação da presença de sintomas de estresse emocional; MINI = “Mini International Neuropsychiatric Interview” para a avaliação da existência de transtornos psiquiátricos; ESE = “Escala de Sonolência de Epworth” para a avaliação da existência de sonolência excessiva diurna; RC = Razão de Chances; IC95%: Intervalo de confiança com coeficiente de confiança de 95%;
*estatisticamente significante: p<0,05.
Discussão
A descrição sociodemográfica da amostra de conveniência de motoristas de caminhão recrutada neste estudo é consonante com a de estudos prévios13,15,19,23,24.
Em termos ocupacionais, os participantes tinham ampla experiência como motoristas profissionais de caminhão, assumindo uma carga diária excessiva de trabalho, o que também é consistente com estudos prévios13,15,17,19,23,24. Nesse sentido, Souza et al.25 apontaram previamente que quase metade da amostra entrevistada de motoristas de caminhão ultrapassava 16 horas diárias de trabalho.
Em relação à variável-desfecho deste estudo, 10,6% dos participantes relataram ter sofrido algum AT no ano. Essa prevalência é muito próxima àquela previamente identificada por Ulhoa et al.19, de 10,9% no ano. Entretanto, não foi possível comparar nossos resultados com os estudos de Souza et al.25 e Silva-Junior et al.24 por conta de diferenças metodológicas, especialmente no que concerne à medida de AT, o que então sugere a possibilidade de padronização de termos para os estudos futuros.
Quanto aos fatores relacionados à ocorrência de AT entre os motoristas de caminhão abordados, observamos que a pouca experiência na profissão, ter recebido alguma multa de trânsito no período de um ano e, finalmente, a carga diária de trabalho estiveram associados ao desfecho de AT após o controle de variáveis sociodemográficas, ocupacionais e de saúde mental.
Almeida et al.26 apontaram que poucos anos de experiência como motorista profissional aumentam a possibilidade de envolvimento em AT. Em estudo conduzido com motoristas profissionais de motocicletas, Diniz et al.27 apontaram que os anos de experiência são fundamentais para o estabelecimento de estratégias e modos operatórios que evitam o envolvimento do motorista em AT. De toda a forma, embora os nossos resultados sejam consistentes com essa informação (apesar da associação entre os anos de profissão e o acontecimento de AT ter sido surgido apenas após o ajuste do modelo de regressão logística), também é importante considerar a relação direta entre o tempo de experiência na profissão e a idade do motorista. Nesse sentido, uma revisão da literatura sobre a associação entre a idade e a taxa de envolvimento em AT entre motoristas de caminhão apontou que os mais jovens estiveram frequentemente mais envolvidos em AT28. De fato, em nosso país, esses dados são corroborados pelo fato de que motoristas de caminhão jovens apresentam a maior frequência de registros de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT)9, refletindo a tendência mundial, conforme previamente apontado pela OMS, de que os AT afetam predominantemente os mais jovens4.
Neste estudo, todos (100%) os motoristas de caminhão que relataram ter sofrido AT no ano haviam engajado em pelo menos uma violação de trânsito no mesmo período, uma prevalência maior que os 75% relatados por Zhang et al.20. Dentre as violações de trânsito pesquisadas, 60,2% dos participantes deste estudo afirmaram ter recebido alguma multa de trânsito no ano, o que despontou como fator associado à ocorrência de AT no modelo de regressão logística ajustado.
Nesse cenário, Gates et al.29 apontaram que cometer alguma infração de trânsito aumentou as chances de motoristas de caminhão assumirem um comportamento de risco no volante. Consistente com essa informação, Brodie et al.30 identificaram, em um estudo conduzido com motoristas de caminhão fatalmente feridos, que 85% dessas mortes teriam sido decorrentes da emissão de comportamentos imprudentes no trânsito pela vítima.
De certo que a emissão de violações de trânsito é passível das características individuais do condutor. Nesse caso, Marin e Queiroz31 já haviam sugerido uma relação direta entre a personalidade do motorista, a emissão de violações de trânsito e a ocorrência de AT. Nesse sentido, a revisão sistemática da literatura desenvolvida por Araújo et al.32 apontou que a impulsividade é um traço de personalidade que interfere sobre o acontecimento de infrações de trânsito que então podem culminar em acidentes.
Entretanto, acreditamos que a personalidade do condutor não seja um fator preeminente para a ocorrência de AT per se, de tal forma que não se poderia responsabilizar exclusivamente o motorista de caminhão por sua ocorrência. Nesse sentido, embora tenhamos observado que o cometimento de violações de trânsito tenha sido um fator associado à ocorrência de AT, é possível que tenham sido emitidas como uma estratégia do profissional de esquivar-se das contingências ocupacionais aversivas. Assim, faz-se necessária uma avaliação sistemática dessas condições que permeiam a atuação ocupacional desses trabalhadores, para que então intervenções ambientais sejam desenvolvidas e aplicadas no sentido de diminuir os riscos de acontecimento de acidentes. Num sentido mais amplo, é preciso evitar uma interpretação reducionista dos acidentes, que está centrada no erro do motorista, desconsiderando então o contexto social e organizacional em que acontecem27.
Nesse cenário, é de notar que a carga excessiva de trabalho despontou como fator associado à ocorrência de AT entre os motoristas de caminhão. De fato, de acordo com Soccolich et al.33, a possibilidade de ocorrência de algum evento crítico de segurança que culmine em AT cresce com o aumento do número de horas trabalhadas. Assim, entre os motoristas de caminhão, é possível que o efeito do número de horas trabalhadas sobre o desfecho de AT seja mediado por sintomas físicos e mentais decorrentes da carga intensa de trabalho. Logo, é comum que os motoristas de caminhão que dirigem por longos períodos de tempo tenham pior percepção de qualidade de vida, assim como muitas dores no corpo18,34. Essa percepção piorada da vida é estendida para queixas de saúde mental, de tal forma que a extensa jornada diária de trabalho é apontada como um dos principais estressores da profissão, determinando o aparecimento de transtornos psiquiátricos menores como depressão, ansiedade, fadiga, irritabilidade, bem como insônia, prejuízo de memória e concentração19. Ainda, é também muito possível que o efeito da carga excessiva de trabalho sobre os AT entre os motoristas de caminhão seja mediado pelo uso de substâncias psicoativas, empregadas com o intuito de prolongar o tempo de vigília e direção35, assim como pelo débito de horas de sono e seus desdobramentos16,25. De toda forma, todas essas variáveis (estresse emocional, transtornos psiquiátricos, uso de substâncias psicoativas, qualidade de sono e sonolência excessiva diurna) foram controladas no modelo de regressão logística ajustado, sugerindo que estudos futuros possam investigar, ainda em maiores detalhes, a relação entre elas e a jornada de trabalho do motorista de caminhão.
Van der Beek36 propôs que a redução do número de horas diárias trabalhadas seja uma das estratégias de proteção à saúde e segurança dos motoristas de caminhão, aumentando as chances de sua adequada recuperação após um dia típico de trabalho, logo, reduzindo a chance de seu envolvimento em AT. Em nosso país, vem sendo sugerida, de longa data, a regularização das horas trabalhadas pelos motoristas de caminhão. Nesse sentido, recentemente, a lei N°12.619/2012, conhecida como Lei do Descanso37, regulamentou e disciplinou o tempo de direção do motorista profissional, assegurando um intervalo mínimo de uma hora de refeição e repouso diário de pelo menos onze horas, sugerindo um período de trabalho diário de até doze horas.
Assim, acreditamos que o cumprimento da lei pelos atores sociais envolvidos nesse cenário seja pertinente, entretanto, isoladamente, não será suficiente para a mudança de comportamento, em conformidade com o previamente apontado por Diniz et al.27. Assim, é preciso desenvolver uma ação conjunta entre motoristas de caminhão, empresas contratantes, representantes de entidades civis e do poder público com fins de negociar a organização do trabalho dessa categoria, visando à redução de emissão de comportamentos de risco que possam, no final das contas, evoluir a AT. Ainda, é preciso que o desenvolvimento de leis e normas que regulamentam a profissão, bem como estratégias de prevenção e outras intervenções, contem com os saberes e as competências acumulados pelos próprios motoristas de caminhão, o que, de certo, facilitará a aceitação e a adesão às medidas desenvolvidas e, consequentemente, o aumento da segurança de nossas vias públicas. Sobretudo, é importante considerar que as poucas medidas atualmente disponíveis desrespeitam a importância nuclear desses profissionais à economia brasileira, além de ferir as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que postula que todo indivíduo tem o direito a um trabalho dignificante, saudável e seguro38.
Pontos fortes e limitações do estudo
Este estudo é inédito no sentido que avaliou os fatores associados ao acontecimento de AT que envolvem motoristas de caminhão, tendo controlado o efeito de confusão de características sociodemográficas, ocupacionais, de saúde mental e da emissão de violações de trânsito. Soma-se a isso que o levantamento de violações de trânsito é assunto pouco explorado entre motoristas de veículos de carga. Assim, a inclusão desse tema neste estudo caminha pari-passu às recomendações da OMS que tem encorajado os países-membro a desenvolverem e a fiscalizarem o cumprimento de leis que incentivem melhores práticas sobre comportamentos de risco na direção, para que haja então uma futura diminuição global do número de AT e mortes até o ano de 20201. De toda a forma, os resultados de nosso estudo possibilitarão uma compreensão mais aprofundada sobre os AT em nosso país e, de certo, auxiliarão na formulação de políticas públicas voltadas ao benefício dessa categoria profissional. Entretanto, algumas limitações deste estudo também merecem ser mencionadas. Dada a característica de corte transversal, esta pesquisa é apenas um retrato da situação, de tal forma que a associação entre a variável desfecho (AT) e as explicativas não pode ser entendida como relação de causa-efeito. O uso de amostra não probabilística é outro fator limitante, pois os dados não podem ser generalizados a toda a população brasileira de motoristas de caminhão. Ainda, o acontecimento de AT foi avaliado de acordo com o relato dos participantes, podendo limitar os resultados pelo acontecimento de um possível viez de memória. Apreciado o conjunto dos resultados, os autores incentivam a realização de mais estudos para que essas dificuldades sejam superadas.