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Integração de rede e coordenação do cuidado: o caso do sistema de saúde do Chile

Resumo

O artigo analisa a implementação de redes integradas de serviços de saúde (RISS) e de estratégias para a coordenação do cuidado pela APS no sistema de saúde do Chile em seu segmento público. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com “policymakers” do sistema público de saúde e academia, complementado por análise documental e revisão bibliográfica. O país destaca-se pela institucionalização de instrumentos de coordenação do cuidado amplamente reconhecidos como mapas de derivação, médico gestor de demanda, prontuários eletrônicos e, sobretudo, definição de protocolos, sob forte liderança do Ministério da Saúde e condução pelos gestores dos “Servicios de Salud”, espaço regional de construção das RISS. Contudo, identificam-se camadas de segmentação e fragmentação no interior do subsistema público com a manutenção da livre-eleição para consultas especializadas e duplas filas de espera – uma para os procedimentos com garantias explícitas de acesso e outra para os demais. A experiência chilena demonstra a necessidade de maior protagonismo da APS para que seja capaz de assumir a condução das RISS. No país, as redes parecem orbitar ao redor de grandes e potentes hospitais. Elementos do contexto mais amplo do sistema de saúde também condicionam avanços e impasses no desenvolvimento das estratégias analisadas.

Integração de sistemas; Atenção Primária à Saúde; Chile

Abstract

The article analyzes the implementation of integrated healthcare networks (RISS) and the strategies for care coordination by PHC in the Chilean public health system. Semi-structured interviews were conducted with policymakers from the public health system and academics, complemented by documentary analysis and bibliographic review. The country stands out for the institutionalization of care coordination instruments widely recognized, such as referral maps, demand manager physician, electronic records and, mainly, definition of protocols, under the strong leadership of the Ministry of Health and conduction by the Servicios de Salud managers, regional space for the construction of RISS. However, segmentation and fragmentation’s degrees within the public subsystem were identified, with the maintenance of free-choice for specialized medical appointment and double waiting lists - one for procedures with explicit access guarantees and another for others cases. The Chilean experience demonstrates the need for a greater role for PHC so it will be able to take on the leadership of RISS. In the country, the network seems to orbit around large and powerful hospitals. Elements of a broader context of the health system also condition advances and impasses in the development of the analyzed strategies.

Systems integration; Primary health care; Chile

Introdução

A fragmentação do cuidado em saúde representa um dos principais obstáculos para o alcance de melhores resultados no acesso, qualidade, uso racional e eficiente de recursos e satisfação dos usuários, entre outros aspectos11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010.. A busca por cuidados integrados é um componente central para o enfrentamento do aumento da carga de doenças crônicas, em contexto de restrição de investimentos públicos22. European Union. Tools and methodologies to assess integrated care in Europe. Report by the Expert Group on Health Systems Performance Assessment. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017.. Ademais de sua relevância, há certo consenso sobre a relativa insuficiência de instrumentos, metodologias e indicadores e reconhecimento da complexidade que representa a transição de “cuidados fragmentados” para “cuidados integrados” em todos os seus componentes: desenho, implementação e avaliação22. European Union. Tools and methodologies to assess integrated care in Europe. Report by the Expert Group on Health Systems Performance Assessment. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017..

Alinhado ao conceito de redes regionalizadas de sistemas públicos, a Organização Pan-Americana da Saúde11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010. desenvolveu um marco conceitual para a operacionalização das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) nos países latino-americanos, conduzidas pela Atenção Primária à Saúde (APS). Não menos relevante, é a forma como o cuidado integrado é projetado e implementado para se ajustar a contextos e necessidades locais22. European Union. Tools and methodologies to assess integrated care in Europe. Report by the Expert Group on Health Systems Performance Assessment. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017..

Os resultados das reformas organizacionais e estruturais para um melhor desempenho das RISS são escassos e ainda pouco explorados nos sistemas de saúde da Região, assim como seu impacto sobre a coordenação entre níveis assistenciais33. Vázquez ML, Vargas I, Unger JP, De Paepe P, Mogollón-Pérez AS, Samico I, Albuquerque P, Eguiguren P, Cisneros AI, Rovere M, Bertolotto F. Evaluating the effectiveness of care integration strategies in different healthcare systems in Latin America: the EQUITY-LA II quasiexperimental study protocol. BMJ Open 2015; 5(7):e007037.,44. Vargas I, Mogollón-Pérez AS, De Paepe P, Ferreira da Silva MR, Unger JP, Vázquez ML. Barriers to healthcare coordination in marketbased and decentralized public health systems: a qualitative study in healthcare networks of Colombia and Brazil. Health Policy Plan 2016; 31(6):736-748.. Neste sentido, reafirma-se a relação inequívoca entre constituição de redes integradas e coordenação do cuidado – que pode ser tomada como um dos resultados intermediários para a análise do desempenho das RISS33. Vázquez ML, Vargas I, Unger JP, De Paepe P, Mogollón-Pérez AS, Samico I, Albuquerque P, Eguiguren P, Cisneros AI, Rovere M, Bertolotto F. Evaluating the effectiveness of care integration strategies in different healthcare systems in Latin America: the EQUITY-LA II quasiexperimental study protocol. BMJ Open 2015; 5(7):e007037..

A coordenação do cuidado pode ser definida como a articulação entre diversos serviços, ações e profissionais na atenção à saúde, de forma que, independente do local onde seja prestada, esteja sincronizada, voltada ao alcance de um objetivo comum e sem conflitos55. Núñez RT, Lorenzo IV, Navarrete MLV. La coordinación entre niveles asistenciales: una sistematización de sus instrumentos y medidas. Gac Sanit [Internet]. 2006; 20(6):485-495. [acessado 2017 Dez 22]. Disponível em: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S021391112006000600012&lng=es
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,66. Almeida PF, Santos AM. Primary Health Care: care coordinator in regionalized networks? Rev Saude Publica 2016; 50:80.. Sustenta-se na existência de ações integradas entre prestadores e profissionais, conformados em rede, guiadas pela APS77. Boerma WGW. Coordenação e integração em atenção primária europeia. In: Saltman RB, Rico A, Boerma WGW, organizadores. Atenção Primária conduzindo as redes de atenção à saúde: reforma organizacional na atenção primária europeia. Berkshire: Open University Press; 2010. p. 25-47.. O cuidado integrado pode ser considerado um princípio e um meio para alcançar o cuidado centrado no usuário, mais eficiente e seguro22. European Union. Tools and methodologies to assess integrated care in Europe. Report by the Expert Group on Health Systems Performance Assessment. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017..

Na América Latina, com poucas exceções, como Cuba e Costa Rica, as redes de atenção à saúde se constituíram de forma paralela, para grupos populacionais segregados88. Barrios OA, Devia OT, García AF, Hein AA, Herrera OA. Gobierno de redes asistenciales: evaluación de los Consejos Integradores de la Red Asistencial (CIRA) en el contexto de la reforma del sector salud en Chile. Salud Pública de México 2013; 55(6):650-658.. Os altos níveis de segmentação nos sistemas de saúde latino-americanos complexificam a concepção e o escopo da coordenação entre níveis assistenciais, diante da necessidade de incorporar à análise, a dimensão de coordenação entre os diversos subsistemas99. Haggerty JL, Yavich N, Báscolo EP, Grupo de Consenso sobre un Marco de Evaluación de la Atención Primaria en América Latina. Un marco de evaluación de la atención primaria de salud en América Latina. Rev Panam Salud Publica 2009; 26(5):377-384..

A experiência do sistema de saúde chileno é paradigmática e complexa, na medida em que se apresenta como a primeira da Região a seguir a receita proposta por organismos multilaterais (FMI e Banco Mundial) para países em desenvolvimento e que, posteriormente, foram sistematizadas no Consenso de Washington, constituindo-se como um campo de experimentação das políticas neoliberais mais ortodoxas1010. Meller P. Un siglo de economia política chilena (1890-1990). Santiago de Chile: Uqbar editores; 2016.. Não obstante tenha constituído, durante os anos de 1950, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com base no modelo inglês, sendo a segunda experiência mundial deste tipo1111. Labra ME. La reinvención neoliberal de la inequidad en Chile. El caso de la salud. Cad Saude Publica 2002; 18(4):1041-1052., mudança radical foi produzida com a ditadura militar nos anos de 1980, com a privatização do asseguramento e impulso à atenção médica privada1212. Goic AG. El Sistema de Salud de Chile: una tarea pendiente. Rev. Med. Chile 2015; 143:774-786.. Labra1111. Labra ME. La reinvención neoliberal de la inequidad en Chile. El caso de la salud. Cad Saude Publica 2002; 18(4):1041-1052. destaca que mesmo as reformas neoliberais mais austeras dos anos de 1980 não conseguiram extinguir o legado institucional constituído diante da expansão do direito nos anos 1950. Um legado que se expressa na permanência de uma potente rede de hospitais públicos até os dias atuais (2016): 68% dos leitos hospitalares chilenos são públicos1313. Clínicas de Chile. Dimensionamiento del sector de salud privado en Chile. Actualización a cifras año 2016. Santiago de Chile: Clínicas de Chile A.G.; 2016..

Após o fim do regime militar nos anos de 1990, a coalizão de centro-esquerda inicialmente não implementou reforma expressiva no sistema de saúde ainda que tenha promovido expressivo aumento do financiamento público, especialmente para os hospitais1414. Bossert TJ, Leisewitz T. Innovation and change in the Chilean Health System. N Engl J Med 2016; 374:1.. Posteriormente, a reforma setorial, durante o governo Lagos (2000-2006), fortaleceu o sistema público, todavia, manteve-se a configuração dual do sistema com o componente de seguro público – Fondo Nacional de Salud (Fonasa), e o privado, constituído pelos Institutos de Salud Previsionales (Isapres), empresas privadas lucrativas de intermediação entre compra e venda de planos de saúde1515. Cid C, Uthoff A. La reforma a la salud pendiente en Chile: reflexiones en torno a una propuesta de transformación del sistema. Rev Panam Salud Publica 2017; 41:e170., em geral, para os grupos com menores riscos e alta renda, descapitalizando o setor público1616. Koch K, Johanna K, Pedraza CC, Schmid A. Out-of-pocket expenditure and financial protection in the Chilean health care system: A systematic review. Health Policy 2017; (121):481-494..

A busca de maior integração e articulação da rede representou um dos principais pilares da reforma do sistema de saúde chileno, sendo a definição das garantias Garantias Explícitas em Saúde (GES) para toda a população a principal bandeira88. Barrios OA, Devia OT, García AF, Hein AA, Herrera OA. Gobierno de redes asistenciales: evaluación de los Consejos Integradores de la Red Asistencial (CIRA) en el contexto de la reforma del sector salud en Chile. Salud Pública de México 2013; 55(6):650-658.. Entre os elementos chave que viabilizaram a Reforma GES esteve a definição de estratégias de priorização clínica, a vinculação com as sociedades de especialistas e a garantia de financiamento e coordenação ao interior da rede assistencial1717. Urriola C, Infante A, Aguilera I, Ormeño H. La reforma de salud chilena a diez años de su implementación. Salud Publica Mex 2016; 58(5):514-521..

Além das garantias de acesso, o país promoveu intensa reforma no modelo de APS. Com destacada centralidade na agenda política, o Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário incorporou explicitamente elementos da abordagem ampliada de Alma Ata, base para a constituição de um sistema de saúde centrado nas pessoas, famílias e comunidades e de cuidados integrais e contínuos1818. Vega Romero R, Acosta Ramírez N. Mapeo y analisis de los modelos de atención primária en salud en los países de América del Sur. Mapelo de la APS en Chile. Rio de Janeiro: Isags, 2014. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.isags-unasur.org/uploads/biblioteca/7/bb%5B160%5Dling%5B2%5Danx%5B521%5D.pdf
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Tomando o alcance de cuidados integrados como um dos componentes dos processos de reforma e objetivo precípuo dos sistemas de saúde, o presente artigo analisa aspectos da implementação de redes integradas e estratégias e instrumentos para coordenação do cuidado pela APS no esteio de um sistema segmentado e dual no qual se circunscreve o modelo chileno. Espera-se que este estudo, a partir de um caso específico, contribua para a apreensão de lições que possam ser debatidas e analisadas em contextos similares.

Metodologia

Trata-se de estudo qualitativo de caráter exploratório e descritivo-interpretativo tendo como fontes de informação entrevistas semiestruturadas com informantes-chave, complementadas por análise documental temática e revisão bibliográfica. Conill et al.1919. Conill EM, Giovanella L, Almeida PF. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2783-2794. destacam a importância de se analisar a coerência entre as ações nos níveis macro, que incluem as decisões políticas acerca dos direitos, financiamento e macrorregulação; meso ou de gestão com a implementação dos mecanismos operativos que dão suporte às práticas; e no nível microssocial no qual se efetiva o cuidado para a compreensão global da dinâmica dos sistemas de saúde. Neste sentido, foram realizadas entrevistas com policymakers do nível macro (MC) (6), meso (M) (4), micro (MI) (5), além de quatro representantes da academia (Quadro 1). As 19 entrevistas foram realizadas nos respectivos locais de trabalho com duração aproximada de uma hora, gravadas e transcritas.

Quadro 1
Informantes-chave entrevistados – Chile, 2017.

Para a análise documental foram selecionadas as principais leis e marcos regulatórios do processo de reforma do sistema de saúde chileno de 2003 a 2017, sumarizados no Quadro 2.

Quadro 2
Documentos analisados: leis e marco regulatório do sistema de saúde chileno – 2003 a 2017.

Para a produção dos resultados, procedeu-se a análise temática de conteúdo de todo o material com suas respectivas etapas de categorização, descrição e interpretação. Embora tenha sido utilizado o referencial analítico das RISS desenvolvido pela OPAS11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010. e de estudos que desenham certo modelo lógico para o atributo da coordenação do cuidado2020. McDonald KM, Schultz E, Albin L, Pineda N, Lonhart J, Sundaram V, Smith-Spangler C, Brustrom J, Malcolm E, Rohn L, Davies S. Care Coordination Atlas Version 4. Rockville: Agency for Healthcare Research and Quality; 2014., em uma perspectiva indutiva, buscou-se captar categorias que emergiram da experiência dos sujeitos envolvidos. Buscou-se garantir a qualidade e a validade dos achados triangulando-se as informações da análise documental e bibliográfica à percepção dos diferentes grupos de informantes dos três níveis do sistema de saúde.

A apresentação dos resultados inicia com breve caracterização do sistema de saúde chileno e dos marcos da Atención Integral de Salud Familiar y Comunitária, já aprofundados em outras publicações2121. Giovanella L, Ruiz G, Feo O, Tobar S, Faria M. Sistemas de salud en América del Sur. In: Giovanella L, Feo O, Faria M, Tobar S. Sistemas de salud en Suramérica: desafíos para la universalidad, la integralidad y la equidad. Rio de Janeiro: ISAGS; 2012. p. 21-69.,2222. Giovanella L, organizadora. Atención primaria de salud em Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015., destacando-se a percepção dos atores sobre temas que afetam diretamente a discussão sobre as RISS e a coordenação. Em seguida, analisam-se as iniciativas para a integração da rede e os principais instrumentos e estratégias de coordenação do cuidado, desenvolvidas no âmbito do subsistema público.

Contexto – O sistema de saúde chileno

O sistema de saúde chileno é caracterizado por dualidade na modalidade de afiliação à proteção, com possibilidade de escolha pelos trabalhadores formais entre contribuir para seguros privados (Isapres) ou para o seguro público (Fonasa) por meio de contribuições sociais obrigatórios de 7% de seus salários. Todavia, a grande maioria da população é afiliada ao Fonasa e acessa a rede de serviços públicos (Quadro 3).

Quadro 3
Características do sistema de saúde e indicadores sociodemográficos e de saúde selecionados – Chile, 2018.

O Sistema Nacional de Serviços de Saúde, conforme o Quadro 3, conforma o subsistema público de saúde. A responsabilidade pela formulação e implementação das políticas de saúde é do Ministério da Saúde, que no âmbito da Subsecretaria de Redes Assistenciais estabelece as orientações aos municípios e aos Servicios de Salud2626. Vega Romero R, Acosta Ramírez N. La atención primaria em sistemas de salud basados en el aseguramiento: El caso de Chile, Colombia y Perú. In: Giovanella L, organizadora. Atención Primaria de Salud en Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015. p. 195-254.. O sistema público é unitário, centralizado e organizado em 29 SS, com orçamento próprio, responsáveis pela prestação e gestão dos serviços especializados e hospitalares, bem como pelas estratégias de integração da rede. Correspondem aos territórios regionais, nos quais se articulam hospitais e centros de saúde, estes gerenciados pelos municípios. No país, também estão estabelecidas seis macro redes, conformadas por mais de um SS, na qual se prevê resolução integral dos agravos em saúde. Os respectivos diretores dos SS são a autoridade local para a provisão de serviços assistenciais, porém a SEREMI representa a autoridade sanitária.

A principal reforma setorial pós-ditadura foi a definição, em 2004, do Regime de Garantias Explícitas, que garantiu acesso oportuno e proteção financeira para uma lista de agravos específicos (Quadro 2). Antes de sua criação o acesso estava condicionado à proximidade dos hospitais ou julgamento do profissional de saúde na definição de prioridades (E6). A partir do GES foram criados, de forma incremental, protocolos e definidos tempos para atenção oportuna. As garantias explícitas são bem avaliadas pelos usuários, sobretudo pela garantia jurídica do acesso e seguimento do cuidado, com canais específicos, nos serviços de saúde, para “reclamar” as prestações (E6, E10). Não obstante, destacou-se que a lógica GES, do ponto de vista do modelo, reforça a fragmentação e toma como alvo a resolução de uma patologia, sem uma abordagem mais ampla de seus determinantes (E6).

Os beneficiários do sistema público, filiados ao Fonasa, podem eleger duas modalidades de atendimento: Modalidade Institucional prestada pelos estabelecimentos públicos; e Modalidade de Livre Eleição, com acesso direto a estabelecimentos privados conveniados ao Fonasa, mediante copagamento. Neste caso, não há mecanismo de gatekeeper pela APS. Pela possibilidade da livre eleição, muitos usuários utilizam acesso direto ao especialista como primeiro contato, o que fortalece a manutenção de modelos concorrentes. Falas ilustrativas das contradições no uso de serviços de livre eleição são apresentadas no Quadro 4.

Quadro 4
Falas representativas dos atores-chave, Chile, 2017.

A reforma da APS no país foi iniciada em 2005 com a implementação do Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário, que caracteriza-se por três princípios: centrado nas pessoas, capaz de prover cuidados integrais e garantir continuidade2727. Chile. Ministerio de Salud (MS). Modelo de atención integral en salud. Santiago de Chile: MS; 2005. [Serie cuadernos Modelo de Atención Nº1].. A operação do modelo passou pela transformação dos consultórios e centros de saúde tradicionais em Centros de Salud Familiares (CESFAM) e em Centros de Salud Comunitarios (CECOSF), estruturas menores e com maior proximidade territorial; fortalecimento das equipes básicas; trabalho em rede e intersetorial; gestão local; e participação social2626. Vega Romero R, Acosta Ramírez N. La atención primaria em sistemas de salud basados en el aseguramiento: El caso de Chile, Colombia y Perú. In: Giovanella L, organizadora. Atención Primaria de Salud en Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015. p. 195-254., com valorização das dimensões “família” e “comunidade” na concepção do sistema (E5).

A responsabilidade pela formulação e implementação das políticas de APS é do Ministério da Saúde. Os municípios são autônomos na gestão e prestação, em acordo com o marco legal2828. Chile. Ministerio de Salud (MS). Estatuto de la Atención Primaria en Salud. Lei Nº19378. Establece Estatuto de Atención Primaria de Salud Municipal. Chile: MS; 1995. [acessado 2017 Dez 28]. Disponível em: https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=30745
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. O financiamento central, repassado aos SS e destes para os municípios, representa a quase totalidade do financiamento da APS e confere ao gestor nacional grande poder indutor na condução das redes e da APS (E2). A carteira de serviços da atenção primária é regulada por lei nacional e não há copagamentos.

Há duas estratégias para o atendimento de urgência na APS. Os Serviços de Urgência em Atenção Primária (SAPU) e, a partir de 2014, os Serviços de Atenção Primária de Emergência de Alta Resolução (SARS), de maior resolutividade, com especialistas e apoio diagnóstico. A insuficiente integração dos serviços de urgência e os centros de saúde, embora ambos estejam no âmbito da APS, foi mencionada, assim como iniciativas de integração por meio do monitoramento das entradas de usuários nos serviços de urgência, para evitar que se tornassem uma opção de busca regular de cuidado.

Busca-se fortalecer a equipe de APS (equipos de cabecera) como responsável pela saúde da população, mesmo porque há grande rotatividade de médicos. Nos CESFAM também atuam equipes “transversais”, reforçando as ações de promoção da saúde e prevenção (Quadro 3). Além das equipes de apoio, alguns centros contam com serviços de oftalmologia, que servem de referência para outros, estratégia avaliada positivamente em relação à melhoria do acesso e aumento da comunicação interprofissional.

Em alguns centros de saúde atuam de forma voluntária membros ou lideranças comunitárias com papel semelhante a um “agente comunitário de saúde”. Não há consenso quanto à manutenção do caráter voluntário destes agentes (E10) (Quadro 4). Historicamente, havia no país tradição em agentes voluntários, experiência interrompida na ditadura, e reativada, mais recentemente, com os CESCOF.

O país enfrenta dificuldades para a provisão de médicos (Quadro 3), operando com cerca de 50% de médicos estrangeiros em alguns centros de saúde, segundo informante do Minsal. Em 2016, no país havia 41.623 médicos inscritos na Superintendência de Saúde, dos quais 15% eram estrangeiros, proporção que aumentou nos últimos anos, principalmente com a vinda de profissionais da Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Cuba. Cerca de 45% do total de médicos atua no sistema público1313. Clínicas de Chile. Dimensionamiento del sector de salud privado en Chile. Actualización a cifras año 2016. Santiago de Chile: Clínicas de Chile A.G.; 2016.. Desde 2008, para atuação no sistema público foi instituída a obrigatoriedade de realização do Exame Médico Nacional.

Os profissionais de saúde são funcionários públicos, com plano de carreiras definido no Estatuto da APS2828. Chile. Ministerio de Salud (MS). Estatuto de la Atención Primaria en Salud. Lei Nº19378. Establece Estatuto de Atención Primaria de Salud Municipal. Chile: MS; 1995. [acessado 2017 Dez 28]. Disponível em: https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=30745
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. Há iniciativas para a formação de especialistas em medicina de família e comunidade, que partem, sobretudo, do Ministério da Saúde. Uma delas é a Etapa de Destinação e Formação para alocação de médicos em zonas remotas com garantia de pontos adicionais em residências (E16). Para a fixação e a atração de profissionais, o gestor nacional realizou uma classificação de risco para as áreas do país, que implica em melhores salários e ajustes per capita.

Para ser atendido em um serviço de APS é necessária inscrição ativa do usuário, que determina o repasse de recursos e o monitoramento das metas. Entrevistados avaliaram que a inscrição ativa e voluntária gera desassistência para o pequeno percentual de população mais vulnerável (em situação de rua, barreiras culturais, educacionais).

A clientela da APS segue sendo a população mais pobre, dos grupos de estrato de renda mais baixos A e B do Fonasa e os idosos. Os grupos C e D (estratos de renda um pouco mais elevados), que incluem os trabalhadores, muitas vezes optam pelos serviços de livre eleição. Além da concorrência pelos recursos, a livre eleição estabelece uma concorrência de modelo assistencial (E10), seja pelas prescrições, não submetidas às normas e protocolos do sistema público; ou pelo agravamento de alguns casos, cujo seguimento se torna inviável pela livre eleição em função do copagamento e da impossibilidade de continuidade na rede pública (E16). Falas ilustrativas são apresentadas no Quadro 4.

Há dois grandes instrumentos de avaliação da APS: as metas sanitárias e o Índice de Atividade da Atenção Primária (IAAPS), o qual gera o repasse de recursos aos municípios. As metas sanitárias são acordadas com as corporações e geram pagamento por desempenho aos profissionais quando cumprem 90%. Há também um mecanismo associado de pagamento por desempenho relacionado à avaliação do “Trato com os usuários”. Os incentivos são definidos conforme prioridades estabelecidas, todavia podem levar ao direcionamento das ações e processo de trabalho ao cumprimento das metas e não aos princípios e objetivos do modelo.

As reformas do sistema de saúde nos últimos anos foram avaliadas, de forma geral, positivamente. Em relação à APS, destacam-se a implementação do Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitário, orientado às pessoas; melhorias na infraestrutura dos centros de saúde; alcance de resultados satisfatórios em relação aos indicadores de saúde; qualidade das guias e protocolos. Não obstante, foi relatado que almeja-se uma “reforma da reforma”, discussão cada vez mais presente na agenda dos distintos atores, com criação de vários espaços de participação e mobilização, a fim de promover “valor social” em torno da APS.

Redes Integradas de Serviços de Saúde

A reforma da APS seguiu pari passu a medidas para a construção de redes assistenciais integradas, operadas pelos Servicios de Salud. Desde o Estatuto da Atenção Primária2828. Chile. Ministerio de Salud (MS). Estatuto de la Atención Primaria en Salud. Lei Nº19378. Establece Estatuto de Atención Primaria de Salud Municipal. Chile: MS; 1995. [acessado 2017 Dez 28]. Disponível em: https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=30745
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está prevista a elaboração pelo gestor nacional de um marco normativo para a programação e o planejamento das redes. Entre os compromissos de gestão firmados entre Minsal e SS no período 2014-2017, destaca-se o objetivo de integrar os serviços de saúde em rede nas áreas assistencial, de governança, financeira e de recursos humanos. As propostas mais recentes são fortemente influenciadas pela proposição opasiana das Redes Integradas de Serviços de Saúde3232. Chile. Ministerio de Salud (MS). Orientaciones para la Planificación y Programación en Red. Santiago de Chile: MS; 2017..

O território das redes são os Servicios de Salud, por meio da figura do gestor de redes, ao qual compete a definição da referência e contrarreferência para a garantia da continuidade assistencial, monitoramento das metas e promoção de coordenação entre APS e atenção especializada, estas últimas consideradas as mais desafiantes (E10).

Os SS, a depender da população adscrita podem dividir-se em microrredes, que se organizam ao redor de seus respectivos hospitais de referência, em sua grande maioria, públicos. O Minsal também possui uma central nacional de leitos, com serviços nacionais de referência de alta complexidade (Institutos).

Há centralidade dos hospitais no desenho das redes e microrredes, que parecem se organizar ao redor destas instituições, que inclusive protagonizam a proposição de estratégias para a integração da rede, mais desenvolvidas a depender do porte da instituição hospitalar (E1; E10, E11, Quadro 4). Tal arranjo ratifica um modelo de atenção à saúde de forte cunho curativo, do ponto de vista simbólico e financeiro (E10). O hospital recebe todas as referências da APS, chamadas “interconsultas”, e se responsabiliza por resolvê-las e manejar as listas de espera (E1).

A partir de 2002, foram criados os Consejos de Integración de Redes Asistenciales (CIRA) (Quadro 5) com o papel de contribuir para a articulação dos atores, diagnóstico e propostas de trabalho para a integração da rede. Alguns Diretores de SS ampliaram a participação e integraram representantes da sociedade civil e lideranças comunitárias neste conselho. Contudo, não há participação da SEREMI, autoridade sanitária do território.

Quadro 5
Integração da rede e estratégias e instrumentos para a coordenação do cuidado, Chile, 2017.

O desenho dos CIRA é considerado estratégico, não obstante, alguns conselhos teriam assumido um papel burocrático, tornando-se um espaço informativo. Um maior empoderamento do conselho é dependente da liderança exercida pelo gestor de redes (E6) e da busca de maior legitimidade por meio da elaboração de planos de trabalho com propostas concretas (E9). Ainda que não tenha poder decisório e de execução, o CIRA vem se constituindo como importante dispositivo para fortalecer a participação social (Quadro 4).

Afirmou-se categoricamente que as listas de espera foi o tema mais discutido pelos CIRA, assim como o processo de referência e contrarreferência. Identificaram-se avanços na integração dos dois mundos – APS e hospitais – mas que o tema da lista de espera prevalece, com pouco espaço para a discussão do modelo assistencial. Em áreas cuja referência são grandes hospitais (com mais de 400 leitos), a integração é mais difícil, pois estes serviços apresentariam uma dinâmica mais autônoma, que não permite visualizar a importância da APS. A tensão pelo cumprimento dos tempos de espera que incide sobre os hospitais também colabora para que funcionem de forma autocentrada, com pouca capacidade para atuação sistêmica.

Em relação à centralidade da APS nas redes, destacou-se que faz parte da retórica ministerial, mas não se apoia na realidade, ainda que o fortalecimento do modelo de saúde familiar tenha contribuído para a mudança de paradigma do modelo assistencial. As falas do Quadro 4 ratificam fortemente esta assertiva.

Estratégias e instrumentos para a coordenação do cuidado

Os Servicios de Salud estabelecem os “mapas de derivação” (Quadro 5). Para o encaminhamento dos pacientes há um sistema informatizado no qual é possível desde o centro de saúde localizar a oferta no hospital de referência, ainda que a coordenação e o seguimento dos usuários pela APS não aconteça de forma regular.

A rotatividade dos profissionais, sobretudo médicos na APS, implica constantes esforços de capacitação sobre o funcionamento da rede, mapa de derivação, fluxos e protocolos clínicos. Tecnologias de Informação e Comunicação buscam minimizar problemas relativos à rotatividade, com a disponibilização das guias de prática clínica e mapas de derivação nos computadores dos consultórios, além de proporcionar coordenação informacional.

As filas de espera não GES passaram a ser monitoradas de forma mais sistemática por meio da criação de um repositório nacional, com informações dos tempos de espera, alimentados e monitorados pelos SS. São reconhecidas filas para especialidades em todo território, o que torna necessária a definição de prioridades clínicas, em geral, realizadas pelos hospitais.

Para a gestão das duas filas (GES e não GES) há equipes e tempos diferenciados (maiores não GES), o que prejudica a visão do conjunto da assistência. Com o passar do tempo e as pressões políticas, nos diferentes governos, foram sendo incorporadas à cobertura GES patologias não prioritárias e prestações sem base em evidências científicas. Além disso, o paciente GES representa o maior percentual de financiamento dos hospitais.

O Minsal e os SS monitoram os percentuais de referência da APS, que são considerados satisfatórios (Quadro 5). Em alguns lugares com pior desempenho, chegaria a 15%. O “médico gestor da demanda” na APS foi uma iniciativa do gestor nacional para qualificação das referências. São médicos que já atuavam nas equipes e que recebem remuneração adicional para avaliação das referências da equipe.

Os protocolos de atenção em saúde foram avaliados como o principal instrumento para garantir a coordenação do cuidado, principalmente por estabelecer o fluxo de referência e contrarreferência para a garantia de acesso e coordenação das patologias não GES (E8) e definição das funções de cada nível do sistema. Um efeito adverso do alto grau de normatização seria uma certa “rotina”, repetição, que caracterizaria o trabalho na APS, tornando-o pouco atraente.

Iniciativas de telemedicina também são adotadas no país a cargo do Minsal (Quadro 5), como na atenção neurológica de urgência. Mas também identificam-se iniciativas nacionais e locais, promovidas pelos hospitais de referência, polo de desenvolvimento e incorporação de tecnologias para o sistema de saúde. Outra iniciativa, liderada por alguns hospitais, é o compartilhamento do cuidado com os CESFAM com reabilitação, por exemplo, de crianças com problemas crônicos e capacitação para pequenas urgências. Este tipo de ação está institucionalizada e incluída no plano de capacitação pactuado (E8) (Quadro 5).

A liderança de gestores para definição das metas de coordenação, sobretudo da direção dos SS e de alguns hospitais, foi mencionada como um elemento-chave para a coordenação (E2).

As guias de referência e contrarreferência são instrumentos considerados frágeis, sobretudo por não serem informatizadas na maioria dos casos. Em alguns lugares há uma ficha compartilhada, mas são poucos. O comum é a volta da informação pelo próprio usuário. Entrevistados reconhecem a insuficiente contrarreferência como um entrave à coordenação do cuidado (E10). Foram relatados avanços na padronização de um prontuário clínico único, que se comunique por meio dos sistemas informatizados.

Considerações finais

Este estudo buscou analisar aspectos da experiência de implementação das redes integradas e instrumentos de coordenação do cuidado no sistema de saúde chileno, destacando-se a reforma e o fortalecimento da APS, que representa uma das estratégias mais potentes para o alcance de um continuum assistencial3333. Bodenheimer T. Coordinating Care - a Perilous Journey through the Health Care System. N Engl J Med 2008; 358(10):1064-1071..

Inicialmente, pretende-se retomar a configuração do sistema chileno, não para debater a já conhecida segmentação, reconhecida causa de fragmentação11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010., mas para destacar dois aspectos. As tentativas de estabelecer alguma regulação do setor privado baixo os princípios da seguridade social, no último mandato presidencial, findo em março de 2018, não obtiveram êxito. A crise política do próprio governo (2014/2015) criou cenário ainda mais hostil a mudanças mais estruturais na configuração do sistema de saúde3434. Tetelboin C. Tendencias y contratendencias en el sistema de salud de Chile en el marco de la situación regional. In: Tetelboin C, Laurell C, organizadores. O direito universal à saúde: uma análise agenda latino-americana e controle. Buenos Aires: CLACSO; 2015. p. 75-97.. Assim, a discussão das redes integradas e coordenação circunscrevem-se ao sistema público de saúde, mas não enfrenta a ausência de integração e coordenação entre subsistemas99. Haggerty JL, Yavich N, Báscolo EP, Grupo de Consenso sobre un Marco de Evaluación de la Atención Primaria en América Latina. Un marco de evaluación de la atención primaria de salud en América Latina. Rev Panam Salud Publica 2009; 26(5):377-384..

Um segundo aspecto refere-se às camadas de fragmentação no interior do subsistema público. Muito se destacou a possibilidade de livre-eleição para usuários do Fonasa, que dialoga tanto com a manutenção de algum grau de liberdade de escolha, quanto com certa acomodação da demanda por consultas especializadas. Nesse sentido, debate-se a inadequação deste mecanismo pela drenagem de recursos públicos para a rede privada e pela introdução de mais um grau de fragmentação, inclusive simbólica. Usuários fazem um mix assistencial para consultas ambulatoriais, em um modelo que se distancia da perspectiva da APS renovada. Não menos importante, é a postergação do cuidado em estágios precoces de adoecimento, pelas tentativas de resolução dentro da livre-eleição até o esgotamento dos recursos financeiros próprios.

Nesta mesma perspectiva, outra camada de fragmentação reveste a principal ação reformista – as garantias explícitas. Análises sobre os resultados do GES podem ser realizadas desde variados aspectos3535. Parada M, Reyes C, Cuevas K, Ávila A, López P, Carrasco V, Moraga F, González JF, Riquelme P, Llancapichun L. Transformaciones del Sistema de Salud Público post Reforma AUGE-GES en Valparaíso. Rev Chil Salud Pública 2014; 18(2):127-139.,3636. Frenz P, Delgado I, Kaufman JS, Harper S. Achieving effective universal health coverage with equity: evidence from Chile. Health Policy Plan 2014; 29(6):717-731.. Do ponto de vista da integração da rede, fragiliza a organização do sistema pela constituição e manejo de duas filas de espera, com atributos diferenciados. Embora também garanta acesso oportuno para patologias graves, não atua sobre os determinantes do processo de adoecimento.

Em relação ao modelo assistencial, os resultados foram sinérgicos na direção do protagonismo dos hospitais na estruturação das redes. Por mais que no discurso oficial a direção do sistema deva se dar a partir do Modelo de Atención Integral de Salud Familiar y Comunitario, as redes orbitam ao redor de grandes e potentes hospitais públicos, de onde parecem despontar as principais iniciativas de integração e coordenação com a APS, que embora promissoras, ratificam a hegemonia do paradigma hospitalocêntrico.

A análise da experiência chilena demonstra a necessidade de avanços no protagonismo da APS, contudo, destaca-se de forma positiva o incremento do setor público no país. Experiências com potencial para qualificar a atenção primária como apoio e presença de serviços especializados de alta demanda nos centros de saúde e o estruturado sistema de avaliação de desempenho foram estratégias mencionadas. Os serviços de urgência na APS apresentam potencial para o aumento de resolutividade e ampliação do acesso, a depender do grau de integração horizontal. A resolutividade da APS, conforme destaca Vergara3737. Vergara IM. Propuesta de reformas a los prestadores públicos de servicios médicos en Chile: “fortaleciendo la opción pública”. Rev Med Chile 2015; 143(2):237-243., só opera de forma abrangente se estiver conectada à rede.

Na análise das estratégias para a conformação das RISS, o gestor nacional configura-se como o principal ator, com base na proposição da OPAS11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010., e os Servicios de Salud como responsável pela organização e implementação. Nos SS se identifica a autoridade responsável pela arquitetura e liderança das redes, elementos que a literatura aponta como necessários para a coordenação do cuidado11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010.. Não é uma função das equipes de APS ou de gestores locais desenhar o caminhar dos usuários e pactuar a oferta de serviços como observado em outros contextos3838. Vargas I, Mogollón-Pérez AS, Unger JP, Silva MRF, De Paepe P, Vázquez ML. Regional-based Integrated Healthcare Network policy in Brazil: from formulation to practice. Health Policy and Planning 2015; 30(6):705-717., ainda que tempos de espera elevados e problemas de coordenação do cuidado permanecessem presentes.

A falta de integração entre assistência e saúde pública, sob responsabilidade da SEREMI, constitui-se outro entrave à efetivação das redes11. Organización Panamericana de la Salud (OPAS). La Renovación de la Atención Primaria de Salud en las Américas. Redes Integradas de Servicios de Salud. Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para su Implementación en las Américas. Washington: OPAS; 2010.,3939. Almeida PF, Fausto MCR, Giovanella L. Fortalecimento da atenção primária à saúde: estratégia para potencializar a coordenação dos cuidados. Rev Panam Salud Publica 2011; 29(2):84-95.. Os CIRAs foram avaliados como espaços potencialmente inovadores para a cogestão das redes, fortalecimento da participação social na saúde e criação de uma cultura organizacional favorável à integração, particularmente importante em um contexto cujas diretrizes do sistema apresentam alto grau de centralização como no caso chileno.

Face à sistemática presença no discurso dos atores e relevância no processo de reforma do sistema chileno, destaca-se o tema da magnitude dos tempos de espera, problema frequente em sistemas públicos e privados de saúde1919. Conill EM, Giovanella L, Almeida PF. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2783-2794.. O GES enfrenta este desafio, alinhado à concepção de acesso oportuno para patologias específicas. Não menos importante é sublinhar as disputas e os interesses de ordem econômica, política e corporativa que envolvem o tema, em função do apelo eleitoral1919. Conill EM, Giovanella L, Almeida PF. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2783-2794., como se observou nas pressões para ampliação da lista GES. O gerenciamento de listas não GES vem sendo aprimorado em período mais recente.

Não se observou a implementação de novas estratégias de coordenação, mas a institucionalização de instrumentos já amplamente reconhecidos como capazes de otimizar este atributo2020. McDonald KM, Schultz E, Albin L, Pineda N, Lonhart J, Sundaram V, Smith-Spangler C, Brustrom J, Malcolm E, Rohn L, Davies S. Care Coordination Atlas Version 4. Rockville: Agency for Healthcare Research and Quality; 2014.,4040. Aller MB, Vargas I, Coderch J, Calero S, Cots F, Abizanda M, Farré J, Llopart JR, Colomés L, Vázquez ML. Development and testing of indicators to measure coordination of clinical information and management across levels of care. BMC Health Serv Res 2015; 15:323.. Protocolos parecem ser a estratégia mais consolidada, que somados aos rígidos sistemas de avaliação podem minimizar o potencial criativo das equipes de APS ou mesmo gerar efeitos de seletividade, deixando em segundo plano o atendimento às diversidades regionais e territoriais.

Por fim, é necessário destacar que as estratégias de enfrentamento da fragmentação do cuidado realizam-se em contextos específicos22. European Union. Tools and methodologies to assess integrated care in Europe. Report by the Expert Group on Health Systems Performance Assessment. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2017., sendo a decisão de quais instrumentos adotar dependente dos problemas identificados e do grau de desenvolvimento das iniciativas em curso. Foi nesta perspectiva que o presente artigo procurou contribuir. A partir de uma experiência singular, buscou-se analisar elementos do contexto mais amplo do sistema de saúde e da APS no Chile que, de certa forma, condicionam os avanços e os impasses no desenvolvimento das estratégias de integração da rede e coordenação do cuidado na difícil travessia dos “cuidados fragmentados” para “cuidados integrados”.

Agradecimentos

O presente artigo faz parte do estudo “Sistemas de saúde em perspectiva comparada: contrastando experiências europeias e sul-americanas”, e de seu subprojeto Coordenação do cuidado pela Atenção Primária à Saúde em redes regionalizadas: contrastando experiências sul-americanas”, financiados, respectivamente por meio de Bolsa de Produtividade e do Programa de Pós-Doutorado Júnior do CNPq (Processo 150036/2017-5).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2018
  • Revisado
    12 Mar 2018
  • Aceito
    11 Abr 2018
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