Acessibilidade / Reportar erro

Manifestações e estratégias de enfrentamento da Doença de Chagas que interferem na qualidade de vida do indivíduo: uma revisão sistemática

Resumo

Objetivou-se identificar as manifestações e as estratégias de enfrentamento da doença de Chagas que impactam na qualidade de vida do sujeito acometido. Trata-se de estudo de revisão sistemática de literatura, realizada nas bases de dados PubMed, SciELO e Lilacs, através das quais se reuniu um quantitativo de 6 artigos, além de 6 publicações identificadas por meio de verificação de lista bibliográfica e 4 trabalhos mediante busca manual, os quais foram avaliados por dois revisores de maneira independente. As variáveis tratadas foram enquadradas nos eixos temáticos: manifestações da doença de Chagas que interferem na qualidade de vida do indivíduo e estratégias de enfrentamento que impactam na qualidade de vida de pacientes acometidos por doença de Chagas, subdivididos em três dimensões: domínio físico, domínio psicológico e domínio social. Os resultados visualizados em todos os domínios tratados demonstraram qualidade de vida comprometida pelo acometimento da doença; medidas de enfrentamento limitadas, em sua maioria, à dimensão física do paciente; além de registros incipientes de estudos na área. Sugere-se a exploração da temática proposta, acreditando-se que o conhecimento do convívio do portador com a doença promove a elaboração de estratégias de intervenção em saúde eficazes.

Doença de Chagas; Trypanosoma cruzi; Qualidade de vida

Abstract

We aimed to identify the manifestations and coping strategies of Chagas disease that influence the quality of life of the affected subject. This is a literature systematic review carried out in PubMed, SciELO and Lilacs databases, through which sixpapers were retrieved, in addition to six publications identified with the verification of the bibliographic list and four papers through manual search, which were independently evaluated by two reviewers. The variables addressed were set in the thematic axes manifestations of Chagas disease that interfere in the quality of life of the individual and coping strategies that influence the quality of life of patients affected by Chagas disease, subdivided into three realms, namely, physical, psychological and social. The results seen in all addressed realms evidenced a quality of life compromised by the disease, measures mostly limited to the patient’s physical realm and incipient records of studies in the area. We suggest further exploring the proposed theme, believing that knowledge of the patient living with the disease promotes the development of effective health intervention strategies.

Chagas disease; Trypanosoma cruzi; Quality of life

Introdução

Classificada como uma das 17 doenças tropicais negligenciadas listadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS)11. Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDI). Doença de Chagas. [acessado 2016 Jul 20]]. Disponível em: http://www.dndial.org/pt/doencas-negligenciadas/doenca-de-chagas.html
http://www.dndial.org/pt/doencas-neglige...
, a doença de Chagas, transmitida pelo protozoário Trypanosoma cruzi22. Organização Panamericana de Saúde (OPAS), Organização Mundial da Saúde (OMS). Estimación cuantitativa de la enfermedad de Chagas en las Américas. Vigilancia Santaria Y Anteción de las Enfermidades Transmisibles. Geneva: OPAS, OMS; 2006., evidencia-se, na América Latina, como a endemia de maior impacto sobre a morbimortalidade, expressando-se em um grupo de 21 países, onde estima-se que atinja entre 5 e 6 milhões de pessoas, das quais menos de 1% recebem tratamento e aproximadamente 7.000 evoluem para óbito anualmente11. Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDI). Doença de Chagas. [acessado 2016 Jul 20]]. Disponível em: http://www.dndial.org/pt/doencas-negligenciadas/doenca-de-chagas.html
http://www.dndial.org/pt/doencas-neglige...
.

Tratando-se do cenário brasileiro, destaca-se dentre as doenças crônicas por acometer cerca de 1,2 milhão de indivíduos33. World Health Organization (WHO). Chagas disease in Latin America: an epidemiological update based on 2010 estimates. Wkly Epidemiol Rec 2015; 90(6):33-44. e por configurar-se como a quarta causa de morte entre as doenças infecto-parasitárias nas faixas etárias acima dos 45 anos44. Andreollo NA, Malafaia O. Os 100 anos da doença de Chagas no Brasil. Arquivos Brasileiros de Cirurgia Digestiva 2009; 22(2):189-191..

Mediante esse ônus, o controle e o tratamento da doença de Chagas tornaram-se prioridades para a Organização Mundial da Saúde55. World Health Organization (WHO). New global effort to eliminate Chagas disease. 2007. [acessado 2016 Jun 06]. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/news/releases/2007/pr36/en/
http://www.who.int/mediacentre/news/rele...
, sugerindo o desenvolvimento de novas estratégias para o monitoramento da doença, no intuito de promover a melhoria da qualidade de vida dos usuários22. Organização Panamericana de Saúde (OPAS), Organização Mundial da Saúde (OMS). Estimación cuantitativa de la enfermedad de Chagas en las Américas. Vigilancia Santaria Y Anteción de las Enfermidades Transmisibles. Geneva: OPAS, OMS; 2006., aqui tratada como uma acepção ampla, sendo ilustrada com excelência pela conceituação elaborada pela Organização Mundial de Saúde (OMS)66. Seidl EMF, Zannon CMLC. Qualidade de vida e saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cad Saude Publica 2004; 20(2):580-588., para a qual a qualidade de vida é compreendida como a percepção do indivíduo sobre sua inserção na vida, no contexto da cultura e nos sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações77. The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Sco Sci Med 1998; 46(12):1569-1585.. Caracteriza-se, portanto, como um conceito complexo, o qual agrega o meio ambiente, os aspectos físicos e psicológicos, o nível de dependência, as relações sociais e as crenças pessoais do sujeito88. Fleck MPA. O instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100): características e perspectivas. Cien Saude Colet 2000; 5(1):33-38., não restringindo-se à abordagem exclusiva dos sintomas e disfunções das enfermidades, como consideram outras definições retratadas na literatura99. Gladis MM, Gosch EA, Dishuk NM, Crits-Cristoph P. Quality of life: expanding the scope of clinical significance. J Consult Clin Psychol 1999; 67(3):320-331..

Deste modo, dada a interferência que a doença de Chagas provoca nos diferentes aspectos de vida dos indivíduos e a necessidade de ajustamento destes à condição de enfermidade crônica, objetivou-se identificar as manifestações e estratégias de enfrentamento da doença que impactam na qualidade de vida dos sujeitos acometidos, entendendo-se que a avaliação das condições de vida dos portadores resulta no aperfeiçoamento da assistência amparada no planejamento e na organização das ações1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498..

Métodos

Trata-se de um estudo de revisão sistemática de literatura. Diante da inexistência de protocolos de revisão que considerassem a inclusão de variados tipos de estudos, foram adotadas as “Diretrizes Metodológicas para Elaboração de Revisão Sistemática e Metanálise de Ensaios Clínicos Randomizados”, do Ministério da Saúde1111. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes Metodológicas- elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília: MS; 2012. [Série A. Normas e Manuais Técnicos]., e realizou-se adaptação deste protocolo para atender à proposta da investigação. A pergunta científica norteadora do estudo correspondeu a: “Quais as manifestações e estratégias de enfrentamento da doença de Chagas que impactam na qualidade de vida do sujeito acometido?”.

A busca nas bases de dados ocorreu entre os meses de janeiro e setembro de 2016 e considerou 3 (três): a PubMed, a SciELO (Scientific Eletronic Library Online) e a Lilacs, as quais abrangem literatura referente à regiões de relevância epidemiológica quanto à doença de Chagas.

Foram incluídas todas as referências que atenderam aos seguintes critérios: a) apresentassem dados primários; b) caracterizarem-se como texto completo; c) e apresentassem versão nas línguas portuguesa, inglesa ou espanhola. Foram descartados todos os estudos que: a) não estivessem disponíveis de maneira gratuita; b) não se classificassem como artigo científico ou trabalho de conclusão de curso; c) e não apresentassem relação com a temática de interesse, devendo esta estar condicionada ao consenso entre dois avaliadores.

Os termos empregados para a busca foram previamente selecionados considerando o vocabulário controlado para indexação de artigos dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e do sistema Medical Subject Headings (MeSH), através dos quais foram captados os descritores “Doença de Chagas” e “Qualidade de Vida”, utilizados nas bases de dados SciELO e Lilacs e “Chagas Disease” e “Quality of Life”, correspondentes à PubMed. Foi aplicado o operador booleano AND para promover a combinação entre os dois termos escolhidos, de maneira que utilizou-se a associação “Doença de Chagas AND Qualidade de Vida” na SciELO e na Lilacs e “Chagas Disease AND Quality of Life” na PubMed.

Inicialmente, obteve-se um quantitativo de 92 artigos na PubMed, 21 na SciELO e 47 na Lilacs, totalizando 160 publicações. Na PubMed foram selecionados os filtros “texto livre gratuito”, “espécie humana” e “línguas portuguesa, inglesa e espanhola”, os quais reduziram os artigos para 47, 38 e 38 respectivamente. Na SciELO, restringindo-se a busca pela adoção dos filtros “línguas portuguesa, inglesa e espanhola”, diminuiu-se o número de produções eleitas para 21. Por fim, na base de dados da Lilacs, assinalando os filtros “texto completo disponível”, “espécie humana” e “línguas portuguesa e inglesa”, limitaram-se as produções identificadas para 28, 24 e 24, nesta ordem. Não foi utilizado o critério de restrição “ano de publicação”, considerando-se que a seleção dessa ferramenta reduziria substancialmente a quantidade de artigos indexados. Desta forma, após levantamento de referencial nas três bases de dados adotadas, foram totalizados 83 artigos.

Os trabalhos encontrados foram armazenados em software de gerenciamento de referências denominado Endnote Web. Ao serem extraídas as publicações em duplicata, resumiu-se o total de artigos para 57. Na identificação de potenciais estudos elegíveis, os mesmos foram analisados por dois avaliadores: uma enfermeira doutora em Ciências da Saúde e um psicólogo, com doutorado em Psicologia. A avaliação ocorreu de maneira independente e as divergências quanto à exclusão foram resolvidas por consenso.

Realizando-se a avaliação pela aproximação entre o título e a temática o número de artigos diminuiu para 38, dos quais, por critério de análise de resumo e excluindo-se as revisões de literatura, restaram 13 e 12, respectivamente. Destas produções, confirmando-se a elegibilidade pela leitura detalhada do manuscrito e considerando a aproximação com a questão norteadora deste estudo, estabeleceu-se um quantitativo de 6 artigos resgatados por meio das bases de dados supracitadas, conforme ilustrado na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma para identificação dos estudos sobre qualidade de vida do indivíduo portador de doença de Chagas, selecionados a partir da busca nas bases de dados PubMed, SciELO e Lilacs.

Compreende-se que a localização de estudos mediada por busca em bases de dados eletrônicas é essencial e útil, contudo, se apenas esta é considerada como ferramenta de identificação, uma proporção sensível de informações que podem contribuir enfaticamente para a discussão corre o risco de ser desconsiderada, modificando o curso da revisão. Por isso, lançou-se mão de outras estratégias de recrutamento, a exemplo da verificação de referências bibliográficas e da busca manual (hand searching)1111. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes Metodológicas- elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília: MS; 2012. [Série A. Normas e Manuais Técnicos]..

Na investigação da lista de referências bibliográficas dos estudos captados por meio das bases de dados, obteve-se, inicialmente, um quantitativo de 120 publicações. Extraídas as duplicatas encontradas, restringiu-se este número para 116. Destas, após análise de concordância entre o título e a temática de proposição, foram mantidas 58. Considerando-se os estudos completos disponíveis de maneira gratuita, limitou-se o número destes para 33. Após descarte das publicações que não se classificavam como artigos científicos ou dissertações de conclusão de curso, restaram 21 trabalhos, dos quais, por resumo, mantiveram-se 11. Excluídos os estudos de revisão de literatura, o quantitativo reduziu-se para 10, finalizando em 6 publicações após decorrida a leitura detalhada do texto completo, conforme ilustrado na Figura 2.

Figura 2
Fluxograma para identificação dos estudos sobre qualidade de vida do portador de doença de Chagas captados através da verificação da lista de referências bibliográficas.

Foi considerada, ainda, a inclusão de trabalhos referentes à literatura cinzenta, a qual inclui produções literárias que não foram publicadas formalmente em livros ou revistas, mas que também devem ser consideradas no processo de busca de evidências científicas1111. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes Metodológicas- elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília: MS; 2012. [Série A. Normas e Manuais Técnicos]., aqui representada por uma dissertação e uma tese localizadas durante o processo de visualização da lista de referências bibliográficas, as quais encontram-se indexadas nos repositórios digitais da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de São Paulo (USP), sequencialmente.

Por fim, por meio de busca manual (handsearching) realizada no site Google Acadêmico, com apropriação do descritor “Doença de Chagas”, foram identificados 4 (quatro) artigos relacionados à temática em discussão. Logo, concluímos a seleção dos trabalhos pertinentes com 16 publicações.

O processo de extração de dados dos artigos que perpassaram por triagem realizou-se de maneira independente por dois avaliadores e foi guiado por uma ficha de análise padrão, elaborada em caráter prévio e empregada na avaliação dos estudos recrutados em todas as estratégias de busca supracitadas. Havendo discordâncias nos dados coletados, a inclusão destes no estudo esteve condicionada ao consenso entre a dupla de revisores.

Resultados

Os artigos encontrados por meio das bases de dados foram revisados e estão representados no Quadro 1, em termos de autoria, ano de publicação, objetivos, percurso metodológico e variáveis estudadas. Foram identificados artigos publicados entre os anos 1997 a 2012, cujas pesquisas foram realizadas nos estados do Rio Grande do Sul (1), Minas Gerais (2), Paraná (1), Rio de Janeiro (1) e São Paulo (1). Quanto ao tipo de estudo, 3 (três) classificaram-se como descritivos, 1 (um) como etnográfico, 1 (um) de intervenção prospectiva e 1 (um) transversal. O número de participantes envolvidos nas pesquisas variou de 10 a 131 indivíduos. Dentre os artigos, 3 (três) se utilizaram da abordagem qualitativa como método de análise. Sobre os instrumentos de coleta de dados, em 3 (três) estudos foi adotada a entrevista aberta, em 1 (um) utilizou-se o questionário e a verificação do prontuário médico, 1 (um) realizou exames clínicos e 1 (um) associou o uso do questionário aos testes clínicos.

Quadro 1
Estudos sobre qualidade de vida do sujeito acometido por doença de Chagas selecionados através das bases de dados PubMed, SciELO e Lilacs, descritos em termos de autoria, ano de publicação, objetivos, método, amostra, variáveis estudadas e principais achados.

As variáveis evidenciadas nos estudos foram elencadas em duas categorias de análise: manifestações da doença de Chagas que interferem na qualidade de vida do indivíduo e estratégias de enfrentamento que impactam na qualidade de vida de pacientes acometidos por doença de Chagas. Destas duas categorias, emergiram três dimensões: domínio físico, domínio psicológico e domínio social, ilustradas nos Quadros 2 e 3.

Quadro 2
Manifestações da doença de Chagas que interferem na qualidade de vida do indivíduo classificadas segundo domínio físico, psicológico e social.
Quadro 3
Estratégias de enfrentamento que impactam na qualidade de vida de pacientes acometidos por doença de Chagas.

No domínio físico foram apresentadas questões relativas ao impacto do quadro clínico da doença no funcionamento normal do organismo e na manutenção das atividades diárias do indivíduo acometido e medidas terapêuticas que incluem a realização de exercícios físicos, a terapia farmacológica, o implante de marca-passo e o transplante cardíaco.

No domínio psicológico foram incluídos os sentimentos gerados a partir da descoberta, do enfrentamento e da evolução da doença, a autopercepção sobre a qualidade de vida e a influência das crenças religiosas frente à condição chagásica.

Por fim, foram levantadas as questões concernentes ao domínio social, considerando a interferência da doença nos laços afetivos e na inserção no mercado de trabalho, a repercussão da seguridade social e o acesso do sujeito acometido aos serviços de saúde.

Discussão

Manifestações da doença de Chagas que interferem na qualidade de vida do indivíduo

Domínio físico

Na diferenciação entre os sexos, revelou-se que as mulheres apresentam maiores riscos de baixa qualidade de vida nos domínios mental, emocional e funcionamento físico1212. Oliveira BG, Abreu MNS, Abreu CDG, Rocha MOC, Ribeiro AL. Qualidade de vida relacionada à saúde na doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(2):150-156.. No tocante às faixas etárias, o aumento da idade foi observado como um favorecedor do comprometimento no domínio psicológico, em decorrência da apreensão experimentada pelo indivíduo acerca da intensificação da possibilidade premente de morte à medida com que o tempo passa1313. Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79..

O fato de a maioria dos pacientes tomarem ciência de sua condição tardiamente, ou em decorrência da manifestação dos sintomas, ou ainda descobrirem por acaso em contato com algum serviço de saúde1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498.,1414. Sanchez-Lermen RLP, Dick E, Salas JAP, Fontes CJF. Sintomas do trato digestivo superior e distúrbios motores do esôfago em pacientes portadores da forma indeterminada da doença de Chagas crônica. Rev Soc Bras Med Trop 2007; 40(2):197-203., promove uma situação em que a doença transcorre a fase aguda sem ser percebida, o que age como um agravante em sua qualidade de vida, assumindo-se que um tratamento bem direcionado e iniciado no tempo previsto eleva a sobrevida dos acometidos1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498..

O enfrentamento da dor física em diversos segmentos do corpo esteve presente nas formas cardíaca, digestiva e cardiodigestiva, ambas as formas de manifestação da doença, o qual repercute na produtividade dos indivíduos e compromete a sensação de bem-estar1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498..

Configurando maior limitação ao portador de doença de Chagas, no tocante ao desenvolvimento das atividades corriqueiras, a forma cardíaca foi associada à diminuição do bem-estar e ao comprometimento na execução das atividades laborais e na conquista da renda necessária à sobrevivência1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498.. Em contrapartida, a forma digestiva, a qual acompanha alterações significativas no tubo digestório, prejudica a mobilidade esofágica e a morfologia do sistema1414. Sanchez-Lermen RLP, Dick E, Salas JAP, Fontes CJF. Sintomas do trato digestivo superior e distúrbios motores do esôfago em pacientes portadores da forma indeterminada da doença de Chagas crônica. Rev Soc Bras Med Trop 2007; 40(2):197-203..

Sintomas como palpitações, dor precordial e dispneia1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498., respectivas à forma cardíaca1515. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia de vigilância epidemiológica. 6ª ed. Brasília: MS; 2005., e disfagia, regurgitação, epigastralgia e dinofagia1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498., correspondentes à forma digestiva1515. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia de vigilância epidemiológica. 6ª ed. Brasília: MS; 2005., são apresentadas como manifestações que impactam no estilo de vida dos pacientes acometidos por doença de Chagas e na manutenção da rotina dos indivíduos, sobre a qual foi registrado déficit na realização de atividades diárias, no trabalho doméstico e no próprio ofício1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498.. Nas situações em que os indivíduos não se queixaram de diminuição da capacidade funcional, a preservação da possibilidade de seguimento normal da rotina esteve condicionada à apropriação de medicação para coagir o desconforto provocado pelos sintomas da doença em suas formas cardíaca e digestiva1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498..

Na consideração dos achados provenientes dos exames de rotina, observou-se que alterações mais discretas no eletrocardiograma1212. Oliveira BG, Abreu MNS, Abreu CDG, Rocha MOC, Ribeiro AL. Qualidade de vida relacionada à saúde na doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(2):150-156.,1616. Araújo SM, Andó MH, Cassarotti DJ, Mota DCGD, Borges SRM, Gomes ML. Programa ACHEI: Atenção ao Chagásico com Atenção Integral no Município de Maringá e Região Noroeste do Paraná, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2000; 33(6):565-572. e radiografias de tórax1616. Araújo SM, Andó MH, Cassarotti DJ, Mota DCGD, Borges SRM, Gomes ML. Programa ACHEI: Atenção ao Chagásico com Atenção Integral no Município de Maringá e Região Noroeste do Paraná, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2000; 33(6):565-572. podem estar relacionadas à maior benignidade da doença1212. Oliveira BG, Abreu MNS, Abreu CDG, Rocha MOC, Ribeiro AL. Qualidade de vida relacionada à saúde na doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(2):150-156.,1616. Araújo SM, Andó MH, Cassarotti DJ, Mota DCGD, Borges SRM, Gomes ML. Programa ACHEI: Atenção ao Chagásico com Atenção Integral no Município de Maringá e Região Noroeste do Paraná, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2000; 33(6):565-572.. Em contrapartida, o ecodopplercardiograma anormal com disfunção ventricular, a presença de taquicardia ventricular ao “holter” de 24h e a presença da síndrome de insuficiência cardíaca, especialmente, classe funcional III e IV da New York Heart Association, foram considerados como fatores deprimentes da qualidade de vida1212. Oliveira BG, Abreu MNS, Abreu CDG, Rocha MOC, Ribeiro AL. Qualidade de vida relacionada à saúde na doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(2):150-156..

Domínio psicológico

A doença foi caracterizada como precursora de níveis elevados de depressão, possivelmente ligados à incerteza sobre a possibilidade de morte súbita relacionada à forma cardíaca1717. Hueb MFD. Doença de Chagas: indicadores cognitivos, de transtorno orgânico cerebral, de uso de álcool e qualidade de vida [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2006. e ao enfrentamento de cirurgia de megaesôfago, referente à forma digestiva1818. Ozaki Y. Qualidade de vida e sintomas depressivos em portadores da doença de Chagas em atendimento no ambulatório do grupo de estudos em doenças de Chagas [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2008..

O episódio de descoberta da doença foi caracterizado como um evento que provoca choque, apreensão e desespero1313. Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79., agravados pela escassez de informações e pelo estigma que circunda a doença1616. Araújo SM, Andó MH, Cassarotti DJ, Mota DCGD, Borges SRM, Gomes ML. Programa ACHEI: Atenção ao Chagásico com Atenção Integral no Município de Maringá e Região Noroeste do Paraná, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2000; 33(6):565-572., atuando como um fator predisponente para o desenvolvimento do estresse1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68..

A literatura retrata, ainda, a perpetuação de sentimentos de tristeza e medo da morte1313. Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79.,1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68.

20. Gontijo ED, Rocha MOC, Oliveira UT. Perfil clínico epidemiológico de chagásicos atendidos em laboratório de referência e proposição de modelo de atenção ao chagásico na perspectiva do SUS. Rev Soc Bras Med Trop 1996; 29(2):101-108.
-2121. Gomes LMX, Santos AC, Lima FR, Barbosa TLA, Teles JT. O impacto da doença de Chagas no cotidiano do portador. Motricidade 2012; 8(Supl. 2):204-211., de maneira que esta possibilidade se torna a única percepção sobre a enfermidade, em detrimento dos demais achados clínicos. A doença de Chagas se torna um tipo de condenação2121. Gomes LMX, Santos AC, Lima FR, Barbosa TLA, Teles JT. O impacto da doença de Chagas no cotidiano do portador. Motricidade 2012; 8(Supl. 2):204-211., a doença “que mata de repente”, e esse desfecho angaria do paciente a representação exclusiva desta2222. Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632..

Apropriando-se de autoavaliações de pacientes infectados, observou-se, ainda, que a doença de Chagas provoca insatisfação para com a qualidade de vida, com a saúde geral e com o desenvolvimento de atividades diárias1717. Hueb MFD. Doença de Chagas: indicadores cognitivos, de transtorno orgânico cerebral, de uso de álcool e qualidade de vida [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2006., além de menor capacidade de resiliência1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68., de modo que a consciência da vulnerabilidade ocasionada pela doença transforma a relação do indivíduo com sua própria vida e modifica a percepção que ele tem de si mesmo, de seus recursos e de suas capacidades1313. Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79..

Neste contexto, os pacientes que denotaram sintomas referiram maior insatisfação com a qualidade de vida e apresentavam maiores índices de estresse, superiores até aos sintomas físicos1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68.. Estudos revelaram que até mesmo o próprio diagnóstico por si só dispara sentimentos negativistas1313. Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79.,1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68. em escala moderada ou alta, independente da manifestação dos sintomas1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68., ou seja, o agente estressor não precisa estar presente para que o estresse se desenvolva1313. Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79.. O sofrimento antecipatório destaca-se como um promovedor do estresse, com a proliferação de pensamentos negativos sobre a própria condição de vida, causando, consequentemente, a complicação do quadro instalado1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68..

Domínio social

Frente às representações sociais elaboradas em torno da doença, concluiu-se que os mitos, os significados culturais e os valores negativos que caracterizam a enfermidade sob a percepção popular desencadeiam prejuízos psicológicos que estabelecem barreiras na dinâmica de vida dos portadores2222. Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632..

No âmbito trabalhista, viu-se que a diminuição do vigor físico impulsiona a perda do emprego2121. Gomes LMX, Santos AC, Lima FR, Barbosa TLA, Teles JT. O impacto da doença de Chagas no cotidiano do portador. Motricidade 2012; 8(Supl. 2):204-211.. Por incluir-se em condições socioeconômicas desfavoráveis, o trabalhador amplia a ocupação do setor informal, no qual estes desenvolvem atividades laborais braçais ou os chamados “bicos”, sendo submetidos às extensas jornadas de trabalho, as quais lhes asseguram apenas o mínimo para sobreviver, sem perspectiva de um futuro mais promissor2323. Guariento ME, Camilo MVF, Camargo AMA. Situação trabalhista do portador de doença de Chagas crônica, em um grande centro urbano. Cad Saude Publica 1999; 15(2):381-386., além de serem, ainda, confrontados por empecilhos que envolvem a repercussão social e os preconceitos culturais que rondam a doença2222. Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632.. O processo de aposentadoria também sofre repercussão, sendo acelerado pela progressão das complicações tardias da doença, as quais requerem tratamento contínuo e cuidados especiais1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498..

Quanto à manutenção dos vínculos sociais, deparamo-nos com duas situações distintas, uma vez que, controversa ao sentimento de solidariedade emanada pela família ou amigos, ou seja, pelo grupo social mais íntimo, o sujeito encara o processo de fragilização das relações no trabalho, no qual ocorre a marginalização dos indivíduos infectados pelos demais, realçando a discriminação direcionada à patologia2222. Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632..

O impacto no âmbito social também foi ilustrado nas falas de pacientes acometidos por doença de Chagas nas quais estes declaram não aproveitar a vida de maneira adequada e nos maiores índices de insatisfação quanto às atividades sexuais quando comparados aos dos grupos soronegativos1717. Hueb MFD. Doença de Chagas: indicadores cognitivos, de transtorno orgânico cerebral, de uso de álcool e qualidade de vida [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2006..

Estratégias de enfrentamento que impactam na qualidade de vida de pacientes acometidos por doença de Chagas

Domínio Físico

Sobre os benefícios diretos do exercício físico para o portador de doença de Chagas, as evidências científicas são ainda incipientes e controversas. Embora resultados proponham que a atividade física regular é benéfica para o condicionamento físico e a capacidade funcional, não foi detectada melhoria ou agravamento dos sintomas cardíacos mediante programas de exercícios2424. Fialho PH, Santos CCS, Oliveira CR, Oliveira JR, Souza MV, Coelho MP, Sousa AS, Cunha AB, Kopiler DA, Souza FCC, Tura BR. Efeitos de um programa de exercícios sobre a capacidade funcional de pacientes com cardiopatia chagásica crônica, avaliados por teste cardiopulmonar. Rev Soc Bras Med Trop 2012; 45(2):220-224.. No entanto, suscita-se, também, a possibilidade de que apenas a própria movimentação de um indivíduo que apresenta uma doença crônica e mantinha-se em repouso, oferta um bônus sobre a qualidade de vida, entendendo-se que indivíduos que costumavam realizar pouca atividade física e a incluíram na sua rotina, contribuem para o declínio da taxa de mortalidade geral, quando comparados àqueles que se mantêm no sedentarismo2525. Mendes MFA, Lopes WS, Nogueira GA, Wilson A, Araújo SM, Gomes ML. Exercício físico aeróbico em mulheres com doença de Chagas. Fisioterapia em Movimento 2011; 24(4):591-601..

Quanto ao uso de drogas, tais como beta-bloqueadores, quando aplicado às principais e mais graves manifestações da doença cardíaca relacionadas à doença de Chagas podem atenuar os sintomas e produzir benefícios na disposição física e mental, na capacidade para realizar atividades, na satisfação psicológica e no envolvimento social, confluindo para a melhoria da qualidade de vida e para a extensão do tempo de vida em um número elevado de pacientes2626. Junqueira Júnior LF. Challenges for improving quality of life in Chagas disease. Rev Soc Bras Med Trop 2015; 48(2):117-120..

Domínio psicológico

Quanto ao enfrentamento da doença no âmbito psicológico, observou-se que, na pretensão de justificar a própria condição chagásica, os pacientes ancoram suas crenças nas noções religiosas, de maneira que as respostas das quais necessitam estão refugiadas na vontade divina e, onde a ciência médica deixa lacunas, a religião preenche com a oferta de explicações eficazes para “o drama da vida”. Neste contexto, surgem duas correntes distintas: de um lado, a crença inabalável na providência divina, que oferece força para o indivíduo acolher e enfrentar as dificuldades cotidianas e os receios relacionados à doença e, do outro, a responsabilização do divino pela situação vigente e a resignação do indivíduo acometido2222. Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632..

Domínio social

Evidenciou-se a associação entre o maior grau de instrução formal e uma melhor qualidade de vida do indivíduo, seja quanto aos aspectos físicos, psicológicos, sociais ou ambientais1717. Hueb MFD. Doença de Chagas: indicadores cognitivos, de transtorno orgânico cerebral, de uso de álcool e qualidade de vida [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2006.. Neste contexto, o reduzido nível de escolaridade foi caracterizado como um dos elementos desencadeadores de sentimentos de desesperança e conflitos emocionais, os quais configuram a baixa capacidade de resiliência1919. Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68..

Na avaliação do acesso aos serviços de saúde, constatou-se que a escassez de recursos de saúde compromete a qualidade de vida, uma vez que os indivíduos acometidos relatam a necessidade de acompanhamento médico de rotina1717. Hueb MFD. Doença de Chagas: indicadores cognitivos, de transtorno orgânico cerebral, de uso de álcool e qualidade de vida [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2006.. Segundo esta lógica, se o acesso aos cuidados de saúde é dificultoso, estressante ou de má qualidade, a doença tende a progredir e compromete o modo de vida do indivíduo. Em contrapartida, a possibilidade de contato com um sistema de saúde adequado e acessível desencadeia a melhoria da saúde física e a minimização dos conflitos psicológicos e sociais associados, promovendo a aceitação da doença, a sensação de bem estar, o pertencimento social e a segurança do paciente, os quais implicam numa melhor qualidade de vida dos grupos afetados2424. Fialho PH, Santos CCS, Oliveira CR, Oliveira JR, Souza MV, Coelho MP, Sousa AS, Cunha AB, Kopiler DA, Souza FCC, Tura BR. Efeitos de um programa de exercícios sobre a capacidade funcional de pacientes com cardiopatia chagásica crônica, avaliados por teste cardiopulmonar. Rev Soc Bras Med Trop 2012; 45(2):220-224..

O processo de agilização da aposentadoria também foi mencionado, contudo, o valor financeiro ofertado pela seguridade social tampouco supera as despesas com o tratamento e o mínimo para a subsistência do indivíduo, o que perturba o plano psicológico e social, uma vez que o posiciona à deriva do desenvolvimento normal da sociedade1010. Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498..

Quanto à preservação dos relacionamentos sociais, esta foi descrita como elemento facilitador do acesso às informações referentes a cuidados de saúde, ao monitoramento da doença, ao suporte nos momentos de crise e à presença em eventos sociais1818. Ozaki Y. Qualidade de vida e sintomas depressivos em portadores da doença de Chagas em atendimento no ambulatório do grupo de estudos em doenças de Chagas [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2008..

Estratégias de enfrentamento para indivíduos com cardiopatia chagásica grave

Mediante a constituição das categorias de análise, emergiu a necessidade de realçar os pacientes acometidos pela doença de Chagas que apresentam cardiopatia grave, a qual compreende os casos de: a) cardiopatias agudas graves de rápida evolução, com importantes limitações das atividades laborais do indivíduo; b) cardiopatias crônicas em situação de limitação da capacidade física e funcional do paciente, não obstante o tratamento clínico e/ou cirúrgico indicados; c) cardiopatias crônicas ou agudas que apresentam dependência total de suporte inotrópico farmacológico ou mecânico; d) cardiopatia terminal, a qual reduz a expectativa de vida e não responde aos estímulos da terapia farmacológica máxima ou ao suporte hemodinâmico externo2727. Sociedade Brasileira de Cardiologia. II Diretriz Brasileira de Cardiopatia Grave. Arquivos Brasileiros de Cardiologia 2006; 87(2):223-232..

Nesta perspectiva, os estudos ainda demonstraram estratégias de enfrentamento voltadas para duas situações relacionadas à cardiopatia chagásica grave: os pacientes que realizaram cirurgia para implante de dispositivos implantáveis (marca-passo e/ou cardiodesfibrilador) e os indivíduos que necessitaram de transplante cardíaco.

No caso específico dos pacientes submetidos ao implante do marca-passo, observou-se que a experiência assume valores divergentes ao longo do processo. A ideia inicial é a de que se tem um coração frágil, de tal intensidade que se necessita de intervenção cirúrgica que converterá todo o funcionamento normal do organismo a um aparelho desconhecido, instigando pavor. Em longo prazo, o marca-passo se torna uma extensão natural do organismo e é visualizado como peça fundamental da existência do portador, como um instrumento que lhe resgata a vida no momento em que estava sendo perdida. Toma, portanto, uma responsabilidade inquestionável: ele substitui o coração naquilo que este não é mais capaz de fazer, tornando-se fonte de vida2222. Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632..

Sobre a apropriação da estratégia de transplante cardíaco, a literatura revelou que os pacientes com doença de Chagas submetidos a esta terapia, ainda que não tenham alcançado um estágio ótimo de qualidade de vida, obtiveram resultados positivos em pelo menos alguns marcadores, como as limitações de ações e a perspectiva de vida2828. Amato MS, Amato Neto V, Uip DE. Avaliação da qualidade de vida de pacientes com doença de Chagas submetidos a transplante de coração. Rev Soc Bras Med Trop 1997; 30(2):159-160..

Considerações finais

Os resultados visualizados em todos os domínios tratados demonstraram qualidade de vida comprometida pelo acometimento da doença, além de estratégias de enfrentamento limitadas, em sua maioria, à dimensão física do paciente, sugerindo a necessidade de fortalecimento do indivíduo nos campos físico, psicológico e social, de maneira que as intervenções perpassem pela preservação ou recuperação da capacidade funcional do indivíduo, pela aceitação e empoderamento deste no confronto diário da doença, pela oferta de serviços de saúde acessíveis e eficazes e pela reinserção do indivíduo no leito familiar e social.

As limitações do estudo partem da inexistência de um conceito universal sobre qualidade de vida, bem como de um instrumento padrão para a avaliação desta, frente ao indivíduo acometido pela doença de Chagas. A busca por estudos que tratassem desta temática demonstrou registros escassos, privilegiando os aspectos que remontam ao domínio físico do indivíduo, em detrimento dos elementos psicológicos e sociais, que também absorvem impacto vertiginoso da situação de adoecimento que o sujeito enfrenta e, portanto, requerem medidas de enfrentamento que atendam às necessidades correspondentes.

Ademais, os danos provocados na qualidade de vida provenientes da condição chagásica são pouco detalhados quanto à estratificação da doença, uma vez que na maioria dos achados os indivíduos são tratados apenas como portadores da doença de Chagas, sem especificidade da forma clínica apresentada, com exceção dos casos de cardiopatia chagásica grave.

Recomenda-se a elaboração de instrumentos específicos para a análise do impacto da doença de Chagas na vivência do sujeito acometido, além da exploração da área em destaque, partindo da premissa de que o conhecimento sobre o viver do indivíduo acometido por doença de Chagas em suas diferentes formas clínicas pode nortear o delineamento de estratégias em saúde mais eficazes, merecendo destaque a necessidade de estudos que promovam espaço para a manifestação da percepção do indivíduo frente ao próprio processo saúde-doença.

Referências

  • 1
    Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDI). Doença de Chagas [acessado 2016 Jul 20]]. Disponível em: http://www.dndial.org/pt/doencas-negligenciadas/doenca-de-chagas.html
    » http://www.dndial.org/pt/doencas-negligenciadas/doenca-de-chagas.html
  • 2
    Organização Panamericana de Saúde (OPAS), Organização Mundial da Saúde (OMS). Estimación cuantitativa de la enfermedad de Chagas en las Américas. Vigilancia Santaria Y Anteción de las Enfermidades Transmisibles Geneva: OPAS, OMS; 2006.
  • 3
    World Health Organization (WHO). Chagas disease in Latin America: an epidemiological update based on 2010 estimates. Wkly Epidemiol Rec 2015; 90(6):33-44.
  • 4
    Andreollo NA, Malafaia O. Os 100 anos da doença de Chagas no Brasil. Arquivos Brasileiros de Cirurgia Digestiva 2009; 22(2):189-191.
  • 5
    World Health Organization (WHO). New global effort to eliminate Chagas disease. 2007. [acessado 2016 Jun 06]. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/news/releases/2007/pr36/en/
    » http://www.who.int/mediacentre/news/releases/2007/pr36/en/
  • 6
    Seidl EMF, Zannon CMLC. Qualidade de vida e saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cad Saude Publica 2004; 20(2):580-588.
  • 7
    The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Sco Sci Med 1998; 46(12):1569-1585.
  • 8
    Fleck MPA. O instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100): características e perspectivas. Cien Saude Colet 2000; 5(1):33-38.
  • 9
    Gladis MM, Gosch EA, Dishuk NM, Crits-Cristoph P. Quality of life: expanding the scope of clinical significance. J Consult Clin Psychol 1999; 67(3):320-331.
  • 10
    Oliveira AP, Gomes LF, Casarin ST, Siqueira HCH. O viver do portador chagásico crônico: possibilidades de ações do enfermeiro para uma vida saudável. Revista Gaúcha de Enfermagem 2010; 31(3):491-498.
  • 11
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes Metodológicas- elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados Brasília: MS; 2012. [Série A. Normas e Manuais Técnicos].
  • 12
    Oliveira BG, Abreu MNS, Abreu CDG, Rocha MOC, Ribeiro AL. Qualidade de vida relacionada à saúde na doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop 2011; 44(2):150-156.
  • 13
    Uchôa E, Firmo JOA, Dias EC, Pereira MSN, Gontijo ED. Signos, significados e ações associados à doença de Chagas. Cad Saude Publica 2002; 18(1):71-79.
  • 14
    Sanchez-Lermen RLP, Dick E, Salas JAP, Fontes CJF. Sintomas do trato digestivo superior e distúrbios motores do esôfago em pacientes portadores da forma indeterminada da doença de Chagas crônica. Rev Soc Bras Med Trop 2007; 40(2):197-203.
  • 15
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia de vigilância epidemiológica 6ª ed. Brasília: MS; 2005.
  • 16
    Araújo SM, Andó MH, Cassarotti DJ, Mota DCGD, Borges SRM, Gomes ML. Programa ACHEI: Atenção ao Chagásico com Atenção Integral no Município de Maringá e Região Noroeste do Paraná, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2000; 33(6):565-572.
  • 17
    Hueb MFD. Doença de Chagas: indicadores cognitivos, de transtorno orgânico cerebral, de uso de álcool e qualidade de vida [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2006.
  • 18
    Ozaki Y. Qualidade de vida e sintomas depressivos em portadores da doença de Chagas em atendimento no ambulatório do grupo de estudos em doenças de Chagas [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2008.
  • 19
    Mota DCGD, Benevides-Pereira AMT, Gomes ML, Araújo SM. Estresse e resilência em doença de Chagas. Aletheia 2006; 24:57-68.
  • 20
    Gontijo ED, Rocha MOC, Oliveira UT. Perfil clínico epidemiológico de chagásicos atendidos em laboratório de referência e proposição de modelo de atenção ao chagásico na perspectiva do SUS. Rev Soc Bras Med Trop 1996; 29(2):101-108.
  • 21
    Gomes LMX, Santos AC, Lima FR, Barbosa TLA, Teles JT. O impacto da doença de Chagas no cotidiano do portador. Motricidade 2012; 8(Supl. 2):204-211.
  • 22
    Magnani C, Oliveira BG, Gontijo ED. Representações, mitos e comportamentos do paciente submetido ao implante de marcapasso na Doença de Chagas. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1624-1632.
  • 23
    Guariento ME, Camilo MVF, Camargo AMA. Situação trabalhista do portador de doença de Chagas crônica, em um grande centro urbano. Cad Saude Publica 1999; 15(2):381-386.
  • 24
    Fialho PH, Santos CCS, Oliveira CR, Oliveira JR, Souza MV, Coelho MP, Sousa AS, Cunha AB, Kopiler DA, Souza FCC, Tura BR. Efeitos de um programa de exercícios sobre a capacidade funcional de pacientes com cardiopatia chagásica crônica, avaliados por teste cardiopulmonar. Rev Soc Bras Med Trop 2012; 45(2):220-224.
  • 25
    Mendes MFA, Lopes WS, Nogueira GA, Wilson A, Araújo SM, Gomes ML. Exercício físico aeróbico em mulheres com doença de Chagas. Fisioterapia em Movimento 2011; 24(4):591-601.
  • 26
    Junqueira Júnior LF. Challenges for improving quality of life in Chagas disease. Rev Soc Bras Med Trop 2015; 48(2):117-120.
  • 27
    Sociedade Brasileira de Cardiologia. II Diretriz Brasileira de Cardiopatia Grave. Arquivos Brasileiros de Cardiologia 2006; 87(2):223-232.
  • 28
    Amato MS, Amato Neto V, Uip DE. Avaliação da qualidade de vida de pacientes com doença de Chagas submetidos a transplante de coração. Rev Soc Bras Med Trop 1997; 30(2):159-160.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2016
  • Revisado
    22 Fev 2017
  • Aceito
    24 Fev 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br