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Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde: garantia de integralidade nas Equipes de Saúde da Família e Saúde Bucal no Brasil

Resumo

Ao ultrapassarmos os 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), após 40 anos de Alma-Ata e logo após a Conferência de Astana, o Ministério da Saúde do Brasil propõe diversas estratégias de fortalecimento da APS com a criação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Este artigo apresenta o processo de desenvolvimento da carteira nacional de serviços para a APS, uma das estratégias desenvolvidas pela SAPS para fortalecimento da clínica na APS, e os desafios para a ampliação da integralidade do cuidado nas ações desenvolvidas pelas equipes de Saúde da Família e Saúde Bucal. Após a consulta pública, de um total de 209 ações e procedimentos inicialmente listados, entre incorporações e exclusões, foram definidos 210 itens, incluindo as ações previstas para a integração entre atenção primária e vigilância em saúde. Ressaltamos que o modelo da carteira nacional pode ser adaptado à realidade e contexto municipal em cada uma das unidades da federação, inclusive considerando a disponibilidade da rede de atenção local.

Palavras-chave
Atenção primária à saúde; Integralidade; Saúde da família; Saúde bucal; Brasil

Abstract

More than 30 years into the anniversary of the Unified Health System (SUS), 40 years after Alma-Ata, and soon after the Astana Conference, the Brazilian Ministry of Health proposes several strategies to strengthen PHC with the creation of the Primary Health Care Secretariat (SAPS). This paper presents the process of developing the national PHC service portfolio, one of the strategies developed by SAPS to strengthen the PHC clinic, and the challenges for the expansion of comprehensive care in the actions developed by the Family Health and Oral Health teams. After the public consultation, from a total of 209 initially listed actions and procedures, including incorporations and exclusions, 210 items were defined, including the actions planned for the integration between primary care and health surveillance. We emphasize that the national portfolio model can be adapted to the reality and municipal context in each of the federation units, including considering the availability of the local care network.

Key words
Primary health care; Comprehensiveness; Family health; Oral health; Brazil

Introdução

Em agosto de 2007, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) divulgou que a principal abordagem para produzir melhoras sustentáveis e equitativas na saúde das populações das Américas seria por meio do desenvolvimento de sistemas de saúde fortemente embasados na Atenção Primária à Saúde (APS)11 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas: documento de posicionamento da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS). Washington: OPAS; 2007.. Em 2008, a OMS, em seu Relatório Mundial de Saúde, reforçou esta orientação com a afirmação que dá nome àquela publicação: APS – agora mais do que nunca!22 Organização Mundial da Saúde (OMS). Relatório Mundial de Saúde 2008. Cuidados de Saúde Primários: agora mais do que nunca. Lisboa: OMS; 2008. Mais recentemente, em outubro de 2018, ao completarmos 40 anos de Alma-Ata, a Conferência Global sobre APS produziu o documento intitulado Declaração de Astana que salienta ser a APS “o enfoque mais eficaz, eficiente e equitativo para melhorar a saúde, o que faz dela um alicerce necessário para conseguir a cobertura universal de saúde”33 Organização Mundial da Saúde (OMS). Declaração de Astana. Genebra: OMS; 2019..

Ao completarmos 30 anos do SUS, após 40 anos de Alma-Ata44 Organização Mundial da Saúde (OMS). Declaração de Alma-Ata. Genebra: OMS; 1978. e logo após a Conferência de Astana33 Organização Mundial da Saúde (OMS). Declaração de Astana. Genebra: OMS; 2019., o Ministério da Saúde do Brasil propõe diversas estratégias de fortalecimento da APS com a criação da Secretaria de Atenção Primária à (SAPS)55 Reis JG, Harzheim E, Nachif MCA, Freitas JC, D'Avila OP, Hauser L, Marins CJ, Pedebos LA, Pinto LF. Criação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde e suas implicações para o SUS. Cien Saude Colet 2019; 24(9):3457-3462.. Como competências e compromissos da SAPS, definidas pelo decreto mencionado, destacam-se: ampliar o acesso da população às unidades de saúde da família, definir um novo modelo de financiamento baseado em resultados em saúde e eficiência, estabelecer um novo modelo de provimento e formação de médicos para áreas remotas, fortalecer a clínica da APS e o trabalho em equipe e ampliar a informatização das unidades e a utilização de prontuário eletrônico.

O fortalecimento da clínica e do trabalho em equipe na Estratégia Saúde da Família (ESF) passa pelo reconhecimento dos entes federados sobre a importância da APS para a organização dos serviços. Para isso, além da infraestrutura física das Unidades de Saúde da Família (USF), há que se ter condições de trabalho e divisão clara e com subsidiariedade das atribuições de cada um dos profissionais a partir das ações e procedimentos ofertados à população, sem prejuízo dos processos de cuidado compartilhado entre os profissionais. Nesse sentido, a criação de uma “carteira de serviços de atenção primária” poderá ajudar na definição dos papéis que cada um deverá desempenhar, além de, fundamentalmente, apresentar os procedimentos e os serviços ofertados nesse ambiente de cuidado, reduzindo a heterogeneidade de práticas existentes na APS nacional entre os municípios, mas também entre unidades de um mesmo município, para que a população brasileira possa reconhecer o que se espera de ações e serviços em uma Unidade de Saúde da Família.

Sistemas universais de saúde são sustentáveis se possuírem uma APS forte66 Macinko J, Starfield B, Shi L. The contribution of primary care systems to health outcomes within Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) countries, 1970-1998. Health Serv Res 2003; 38(3):831-865.,77 Kringos SD, Boerma WGW, Hutchinson A, Saltman RB. Building primary care in a changing Europe. Copenhagen: European Observatory on Health Systems and Policies, World Health Organization (WHO); 2015.. A APS objetiva melhor saúde individual e populacional com equidade. Este objetivo só é alcançado caso os serviços de APS funcionarem adequadamente, isto é, se aliarem alta resolutividade clínica com responsabilização pela saúde da população sob cuidado e pela comunicação adequada dos fatos e eventos que caracterizam a trajetória clínica das pessoas. Para atingir os objetivos acima e funcionar adequadamente é essencial que a APS seja organizada com a máxima presença e extensão de suas características operacionais, de seus atributos. Os atributos essenciais da Atenção Primária (acesso de primeiro contato; longitudinalidade; coordenação; integralidade) são características operacionais, cotidianas e mensuráveis dos serviços de APS88 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde (MS); 2002.. Quanto mais forte a presença e a extensão desses atributos, mais forte será a APS. Para fortalecer cada um dos atributos, serão necessárias ferramentas organizacionais diferentes e complementares.

No Brasil, a carteira de serviços é uma das mais importantes ferramentas organizacionais. Já é utilizada no Rio de Janeiro, em Curitiba e Florianópolis, entre outros lugares99 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC). Guia de Referência Rápida. Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde. Rio de Janeiro: SMSDC; 2011.

10 Curitiba. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Carteira de Serviços - Guia para profissionais de saúde - Relação de serviços e condições abordadas na Atenção Primária à Saúde. Curitiba: SMS; 2014.
-1111 Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis. Carteira de Serviços Atenção Primária à Saúde. Florianópolis: Prefeitura Municipal de Florianópolis; 2014.. Ela se configura como um importante instrumento para a garantia da integralidade. A APS deve organizar-se de tal forma que o cidadão tenha todos os serviços de saúde necessários, identificando e proporcionando os serviços preventivos, bem como os que possibilitem o diagnóstico e o tratamento das doenças, estabelecendo também a forma adequada para resolução de problemas, sejam orgânicos, funcionais ou sociais.

Ao se definir uma lista transparente de ações e serviços voltados aos problemas e às condições de saúde mais frequentes temos a ‘alavanca’ necessária para mover o ‘mundo’ da integralidade e trazê-lo para o cotidiano da vida das pessoas e das equipes de APS. A carteira de serviços deixa claro para as pessoas quais serviços e ações elas podem encontrar nas Unidades de APS e permite aos profissionais se organizarem na rotina do atendimento, assim como buscarem conhecimentos e habilidades para ofertar as ações e os serviços com competência. Além disso, a carteira torna-se um instrumento de monitoramento da gestão, que deve prover as condições estruturais (equipamentos, insumos, recursos humanos, financiamento) e de processo de trabalho – forma de adscrição das pessoas, estratégias de desenvolvimento pessoal contínuo, monitoramento e avaliação – suficientes para que suas ações e serviços sejam realidade no dia-a-dia da APS.

Destinada aos profissionais da Rede de Atenção à Saúde (RAS), contém a definição das responsabilidades da APS com vistas à garantia fundamental do atributo integralidade/abrangência do cuidado. Busca delimitar diretrizes gerais de organização e definir ações e procedimentos ofertados em cada serviço a partir de critérios essencialmente estruturais. A APS deve ser responsável pelos problemas mais comuns e frequentes de saúde da população e resolver de 80% a 90% de suas demandas. Do ponto de vista clinico, a Carteira de Serviços não visa enumerar nem esgotar todos os sinais/sintomas ou patologias mais prevalentes que devem ser manejados e acompanhados pelo cuidado na APS, especialmente porque a epidemiologia e as necessidades das pessoas são dinâmicas e variadas, principalmente quando falamos de um país com dimensões continentais como o Brasil. Ainda, vale ressaltar que os procedimentos e ações a serem realizados devem respeitar as regulamentações específicas dos conselhos profissionais, bem como as habilidades individuais, sendo mote para a organização e a identificação de treinamentos adicionais necessários.

O objetivo central da carteira de serviços é guiar os profissionais em relação aos que se espera que sejam ofertados nas unidades de APS (especialmente no contexto das diretrizes e metas da SAPS e MS) e se existe alguma condição particular para que este ocorra (tabela de ações/programas e materiais). Além disso, serve para reforçar quais critérios são indicativos para manejar condições ou queixas comuns em um nível maior de complexidade da rede do município, em caráter eletivo (não estão contempladas situações de emergência). É um documento que não visa ser excludente, portanto, a ausência de menção de um sinal, sintoma ou doença não significa que não se deva realizar seu atendimento na APS.

O objetivo deste artigo é apresentar o desenvolvimento da carteira nacional de serviços para a APS e os desafios para o fortalecimento da integralidade do cuidado nas ações desenvolvidas pelas equipes de Saúde da Família e de Saúde Bucal.

Material e métodos

Trata-se de um estudo com análise documental, visando à produção de uma orientação técnica que possa ajudar as equipes de APS e a gestão em nível estadual e municipal na definição da oferta de ações e serviços nas unidades de saúde da família. A chamada “Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde” (CASAPS) é um documento que visa nortear as ações de saúde na APS brasileira com reconhecimento da clínica multiprofissional. É um documento orientador para todos os serviços de APS no Brasil, sendo, portanto, um instrumento que visa contribuir para o fortalecimento da oferta de cuidados próprios da APS. É uma ferramenta importante para a gestão do cuidado que será revisada de forma regular pela SAPS. Ela se destina a todos os profissionais, gestores e cidadãos brasileiros para que se apropriem e tenham conhecimento dos serviços de saúde oferecidos na APS. Uma de suas versões é destinada especificamente aos profissionais e gestores, contendo a lista de serviços e insumos e equipamentos necessários (Tabela 1).

Tabela 1
Grau de concordância com a inclusão dos serviços propostos na consulta pública para a construção de uma carteira nacional de serviços para a APS.

Para sua elaboração consideramos os seguintes materiais: (i) revisão de documentos nacionais e internacionais que apresentam carteiras de serviços de APS. Inicialmente, foi realizada uma ampla revisão de carteiras de serviços da APS publicadas no Brasil e no exterior. Por ser uma ferramenta pouco utilizada em nosso país, revisamos as carteiras do Rio de Janeiro, Florianópolis, Curitiba (Carteira de Serviços e Cartilha de Acesso), Belo Horizonte, Natal e Porto Alegre. Foram também revisadas as carteiras de serviços de Portugal, da Espanha e da cidade de Madrid; (ii) revisão do Manual do Instrumento de Avaliação da Atenção Primária (PCATool) publicado em 2010 pelo Ministério da Saúde1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manual do instrumento de avaliação da atenção primária à saúde: primary care assessment tool pcatool - Brasil. Brasília: MS; 2010..

Foram elencados todos os serviços descritos nas carteiras de municípios citados anteriormente e realizado um comparativo entre elas, construindo-se um quadro com a listagem dos termos e verificação das cidades onde o serviço constava como presente na carteira. Os serviços foram divididos e apresentados da seguinte forma: atenção à saúde do adulto e do idoso, atenção à saúde da criança e do adolescente, procedimentos na APS e Saúde Bucal. Além disso, foi elaborado um texto de orientação com relação ao processo de trabalho das equipes de saúde na APS tendo os atributos essenciais da APS como eixos-chave.

As etapas da consulta pública foram: (i) interação com avaliadores externos para contribuição na elaboração do conteúdo da carteira; (ii) disponibilização do esboço da carteira de serviços durante o período da consulta pública no Portal do Ministério da Saúde, juntamente com um formulário na Plataforma Google Forms em agosto/2019. Neste momento, o participante manifestou sua opinião pela inclusão ou exclusão e pôde sugerir alterações para cada item de lista de ações e procedimentos1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Carteira de serviços da Atenção Primária à Saúde Brasileira: avaliação por convidados externos e consulta pública. [acessado 2019 Out 29]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/carteira_servico_da_APS_consulta_SAPS.pdf
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab...
(iii) revisão após a consulta pública pela SAPS do texto inicial e da lista de ações e serviços apresentadas.

A contribuição das Associações Profissionais, do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS)

Além de outras Secretarias do próprio Ministério da Saúde, ocorreu o envio da proposta para manifestação do CONASS, CONASEMS e das Associações de profissionais da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (ABEFACO) e Associação Brasileira de Odontologia (ABO), os quais foram chamados de avaliadores externos. Tais entidades foram consultadas tanto no período da consulta pública, quanto em momento posterior, sobre a versão final da carteira resultante da consulta pública. Nesta fase, essas instâncias também opinaram sobre a classificação em padrões essenciais e ampliados de APS previstos na PNAB.

Resultados da versão final da carteira de serviços

Após o término da consulta pública realizou-se uma análise quantitativa e qualitativa das respostas enviadas pelos formulários eletrônicos. Ao todo foram respondidos 1.855 formulários, distribuídos com base no perfil do respondente da seguinte forma: 1.415 (76,3%) profissionais de saúde, 86 (4,6%) usuários do SUS, 81 (4,4%) estudantes, 121 (6,5%) gestores municipais, 28 (1,5%) gestores estaduais, 17 (0,9%) gestores do Ministério da Saúde, 44 (2,4%) pesquisadores e 63 (3,4%) identificado na categoria “outros”.

O grau de concordância (pessoas que assinalaram “concordo com a inclusão” ou “concordo com a inclusão com alterações”) foi elevado (Tabela 1). O item com menor percentual de concordância (46,7%) foi: “Identificação quanto à posse de arma de fogo por parte do adulto e orientação sobre como guardá-la com segurança”. Houve menor concordância também com os procedimentos na APS, entre os quais destacam-se: “infiltração de substâncias em cavidade sinovial (articulação, bainha tendinosa) (70,8%)”, “biópsia/punção de tumores superficiais de pele com envio de material para análise anatomopatológica” (73,9%) e “remoção manual de fecaloma” (74,1%).

Quando analisamos as contribuições e as alterações realizadas sob a ótica qualitativa, após a consulta pública, destacamos seis pontos que mais chamaram a atenção: (i) abordar o que compete à APS e a necessidade de protocolos com articulação com a rede; (ii) a inclusão de item em que constasse a promoção de práticas integrativas e complementares; (iii) a menção de que, para exames e procedimentos, alguns itens da carteira serão de difícil execução, considerando a infraestrutura de algumas unidades; (iv) a inclusão de itens que meçam a avaliação da fragilidade e avaliação multidimensional em idosos; (v) no texto que antecede a lista seria necessário constar a necessidade da equipe de APS ter suporte de outros serviços da rede de atenção; (vi) a necessidade do reforço e possibilidade de adaptação da carteira à realidade local.

Quadro 1
Lista de serviços da Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde do Brasil - CASAPS.

A reorganização dos itens da carteira

Na construção da versão final da carteira foram consideradas as atribuições para os profissionais de nível superior, sendo mantidos os atributos essenciais nos grupos “Criança/Adolescente”, “Adulto e Idoso”, “Ações/Procedimentos na APS”, “Saúde Bucal”, considerando, portanto, o processo de trabalho dos médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas. De um total de 209 ações e procedimentos inicialmente listados na consulta pública, entre inclusões e exclusões, ao final de sua criação, foram definidos 210 itens, incluindo o conjunto de ações previstas para a integração entre atenção primária e vigilância em saúde. Cita-se também a importante contribuição advinda da consulta pública com a alteração e qualificação no texto de 109 itens no total: 44 ítens alterados para “Adulto/Idoso”, 27 para “Criança/Adolescente”, 17 para “Procedimentos na APS” e 21 para “Saúde Bucal”. Além disso, foram incluídos o detalhamento de insumos, equipamentos e até as referências técnicas necessárias para a realização de cada ação/procedimento por parte da equipe. Ressaltamos que o modelo da carteira nacional pode ser adaptado à realidade e ao contexto municipal em cada uma das unidades da federação, inclusive considerando a disponibilidade da rede de atenção local.

Discussão

A carteira de serviços é um documento que visa nortear as ações de saúde e apresenta-se como ordenador da APS nos locais onde foi implantada. Seu conteúdo abrange o conjunto das atividades assistenciais e clínicas, de vigilância em saúde, de promoção e de prevenção oferecidos como serviços que objetivam a melhoria de qualidade do cuidado na APS. Para a atual gestão do Ministério da Saúde e da SAPS, ela faz parte do processo de fortalecimento da clínica da APS, estabelecendo-se como guia para as pessoas que utilizam os serviços de saúde, para os profissionais da APS e dos demais níveis de atenção e cuidado em saúde e para os gestores. O ponto de partida para a elaboração deste documento foi a revisão e a avaliação de carteiras de serviços implantadas em importantes cidades brasileiras. O município do Rio de Janeiro adotou, como uma estratégia de inovação gerencial, a carteira de serviços na APS ainda em 201099 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC). Guia de Referência Rápida. Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde. Rio de Janeiro: SMSDC; 2011.. De forma semelhante, após este movimento iniciado na capital fluminense, importantes cidades brasileiras seguiram na mesma linha com a elaboração do seu próprio documento municipal. Isso ocorreu em Curitiba, Florianópolis, Natal, Belo Horizonte e, mais recentemente, em Porto Alegre1010 Curitiba. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Carteira de Serviços - Guia para profissionais de saúde - Relação de serviços e condições abordadas na Atenção Primária à Saúde. Curitiba: SMS; 2014.,1111 Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis. Carteira de Serviços Atenção Primária à Saúde. Florianópolis: Prefeitura Municipal de Florianópolis; 2014.,1414 Belo Horizonte. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Carteira Orientadora de Serviços do SUS - BH. Relação de serviços prestados na atenção primária à saúde. Belo Horizonte: SMS; 2018.

15 Natal. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Carteira de Serviços da Atenção Básica de Natal. Natal: SMS; 2014.
-1616 Porto Alegre. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde de Porto Alegre. Porto Alegre: SMS; 2019.. A iniciativa de elaborar carteiras de serviços da APS em âmbito municipal foi incentivada por algumas secretarias estaduais de saúde no Brasil. Mesmo assim, já passados 9 anos da primeira divulgação do documento no Rio de Janeiro, observa-se que, ao considerarmos todos os 5.570 municípios brasileiros, um número ainda muito restrito e pequeno de cidades dispõe de um documento próprio, não conseguindo oferecer e descrever com transparência para sua população o espectro clínico, de vigilância em saúde e preventivo ofertado por suas equipes de APS/ESF. Nesse sentido, a carteira elaborada pelo Ministério da Saúde, de abrangência nacional, visa auxiliar os gestores municipais na implementação de uma lista de ações e serviços da APS. É um documento que não pretende ser excludente, uma vez que o não mencionamento de um sintoma, sinal, diagnóstico, ação ou cuidado não significa que o mesmo não deva ser realizado na APS. É uma ferramenta que deve ser revisada periodicamente, visto a mudança natural do processo de manutenção da saúde e do de adoecimento.

Está estruturada com ênfase no atributo essencial Integralidade – Abrangência do Cuidado – e dividida em Atenção e Cuidados Centrados no Adulto e no Idoso, na Criança e no Adolescente, Procedimentos na APS e Atenção e Cuidados Relacionados à Saúde Bucal. Entre os problemas que visa resolver podemos citar a concentração de pacientes nos níveis secundário e terciário de cuidados em saúde, que buscam por procedimentos inerentes ao âmbito da APS, como remoção de cerume e tratamento da unha encravada, por exemplo. Mas o desafio do fortalecimento da clínica vai além da realização de procedimentos ou intervenções de maior complexidade no ambiente da APS. Passa também pela realização de acompanhamento e de cuidados resolutivos para problemas clínicos altamente prevalentes e de relativa baixa complexidade, como é o caso da Hipertensão Arterial e do Diabetes Mellitus tipo 2. E isso se torna cada vez mais importante com o passar dos anos e o consequente maior número de idosos em nossa população: cuidar, abordar, manejar e trabalhar com prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, em nível individual, familiar e comunitário, é um dos importantes papéis da APS elencados na carteira brasileira. Ao descrever 210 ações e serviços típicos do ambiente da APS, distribuídos pela clínica desta, vigilância em saúde, atividades de promoção e prevenção em saúde e de abordagem familiar e comunitária, a carteira de serviços propõe um desafio de qualidade na atenção à saúde, que passa também pelo desafio da formação e qualificação dos escopos de práticas dos profissionais da APS estimulando a capacitação clínica de médicos, enfermeiros e odontólogos e ordenando a necessidade de formação pelos programas de residência em Medicina de Família e Comunidade, Enfermagem de Família e Comunidade e Odontologia na APS.

A APS é ordenadora dos sistemas de saúde, mas para que ela possa desempenhar essa função com competência ainda necessita melhorar sua eficiência1717 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011.. Estudos que se propuseram a investigar a presença e a extensão dos atributos da APS no Brasil indicaram que os serviços possuem baixa orientação para APS, sobretudo quando observados os atributos essenciais1818 Ferrer APS. Avaliação da atenção primária à saúde prestada a crianças e adolescentes na região oeste do município de São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2013.

19 Elias PE, Ferreira CW, Alves MCG, Cohn A, Kishima V, Escrivão JA, Gomes A, Bousquat A. Atenção Básica em Saúde: comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão social no município de São Paulo. Cien Saude Colet 2006; 11(3):633-641.

20 Silva AS. Avaliação dos atributos da atenção primária à saúde na estratégia saúde da família em municípios do sul de Minas Gerais [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.

21 Van Stralen CJ, Belisário SA, van Stralen TBS, Lima AMD, Massote AW, Oliveira CL. Percepção dos usuários e profissionais de saúde sobre atenção básica: comparação entre unidades com e sem saúde da família na Região Centro-Oeste do Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(Supl. 1):s148-s158.
-2222 Pinto LP, Harzheim E, Hauser L, D'Avila OP, Gonçalves MR, Travassos P, Pessanha R. A qualidade da Atenção Primária à Saúde na Rocinha - Rio de Janeiro, Brasil, na perspectiva dos cuidadores de crianças e dos usuários adultos. Cien Saude Colet 2017; 22(3):771-781.. Dentre os atributos essenciais, a integralidade ainda parece ser um dos desafios mais consistentes. O baixo desempenho deste pode estar relacionado à incapacidade organizacional dos serviços de APS para a oferta de serviços e à heterogeneidade dos mesmos. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que um conjunto de ações estruturadas para fortalecimento da APS é fundamental para se obter ganho de eficiência. Isso passa por uma rede de atenção à saúde organizada e com fluxos estabelecidos, melhoria contínua do acesso, investimentos em residências (medicina de família e comunidade e multiprofissional) e a definição de uma carteira de serviços que atenda as necessidades da população.

Outra importante função gerencial propiciada pela carteira de serviços é a de auxiliar na produção da lista de insumos e na estrutura física necessárias para a execução dos procedimentos e serviços pelos profissionais das equipes de APS. Nesse sentido, a Carteira de Serviços da APS do Brasil, em sua versão completa para profissionais e gestores, apresenta em sua estrutura de descrição de cada serviço a lista dos insumos necessários, assim como um breve trecho de orientações relacionadas ao tópico, seguidas ao final pela sessão “Saiba mais em”, ponto em que se referencia o serviço do item em avaliação aos conteúdos clínicos elaborados e presentes nos materiais do Ministério da Saúde (Cadernos de Atenção Básica, Protocolos, etc.).

É importante ressaltar que a carteira de serviços desempenha importante papel de indutor de uma maior oferta de ações e procedimentos pelas equipes de APS. Esta característica foi demonstrada em estudo que identificou a oferta de ações e procedimentos pelas equipes de Saúde da Família, tendo por base a Carteira de Serviços do Município do Rio de Janeiro99 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC). Guia de Referência Rápida. Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde. Rio de Janeiro: SMSDC; 2011., e que comparou a cidade de Rio de Janeiro com outros locais divididos por estratos populacionais2323 Salazar BA, Campos MR, Luiza VL. A Carteira de Serviços de Saúde do Município do Rio de Janeiro e as ações em saúde na Atenção Primária no Brasil. Cien Saude Colet 2017; 22(3):783-796.. Este estudo concluiu que a cidade do Rio de Janeiro mostrou melhor desempenho quando comparado à média de municípios de grande porte no que diz respeito à oferta de ações de saúde e serviços.

Ao compararmos a carteira brasileira com a de outros países, principalmente as portuguesa e espanhola2424 Portugal. Portaria nº 1368/2007, de 18 de outubro de 2007. Diário da República 2007; 18 out.,2525 España. Ministerio de Sanidad y Politica Social. Cartera de servicios de atención primaria - Desarollo, organización, usos y contenido. Madrid: Gobierno de España; 2010., vemos que a lista estabelecida para o cenário brasileiro contempla a execução de uma APS forte e abrangente em todos seus aspectos. Seguindo o modelo e o exemplo utilizados principalmente na carteira de serviços da Espanha, poderemos incorporar na carteira brasileira, numa próxima revisão, a descrição e a definição dos indicadores utilizados para monitoramento e avaliação da APS no país, ressaltando desta forma cada vez mais o princípio da transparência nas ações da SAPS.

O mais importante princípio da atual gestão da SAPS é colocar as pessoas em primeiro lugar, isto é, fortalecer o SUS para que seja factualmente um sistema de saúde que coloca as pessoas no centro, se consolidando como um sistema de saúde centrado na pessoa. Esse sistema manifesta-se por uma APS forte e clinicamente resolutivo, com transparência, monitoramento, avaliação e oferecendo autonomia e flexibilidade para o processo de gestão realizado em cada cidade brasileira. A carteira de serviços faz isso ao colocar as pessoas no centro do processo e ao contribuir para o fortalecimento da oferta de cuidados próprios da APS. Da mesma forma oferece transparência ao elencar para toda a sociedade a lista de ações e serviços da APS, contribuindo para o monitoramento, a avaliação e os processos de gestão ao permitir a construção de alguns indicadores de acompanhamento para a implementação dos serviços de saúde listados na carteira.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2019
  • Aceito
    17 Dez 2019
  • Publicado
    19 Dez 2019
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