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Derramamento de petróleo no litoral brasileiro: (in)visibilidade de saberes e descaso com a vida de marisqueiras

Resumo

Em 2019 um derramamento de petróleo de origem desconhecida afetou várias localidades do litoral brasileiro. Nessa pesquisa, objetivou-se apreender as percepções das marisqueiras do estuário do Rio Jaguaribe, Ceará, acerca da exposição ao petróleo e suas consequências. Utilizou-se o grupo focal como técnica para a coleta de dados e o software Iramuteq para o processamento e análise do material. Os resultados apontaram para a criação de duas categorias analíticas: implicações sociais, econômicas, produtivas e de consumo de alimentos das famílias marisqueiras; e os saberes, a participação e a vigilância no contexto de (in)visibilização da exposição ao petróleo. Percebeu-se que as marisqueiras e suas famílias são uma população muito exposta aos impactos negativos causados pelo derramamento de petróleo por se apresentarem significativos sob as perspectivas socioeconômicas, ambientais, produtivas e de saúde. Chama-se a atenção para as políticas de saúde e assistência social para as trabalhadoras, consequências na segurança alimentar, hídrica e nutricional das famílias e sobre o reconhecimento de seus saberes e práticas, construídos dentro de um modo de vida tradicional que produz e reproduz a existência numa estreita relação sociedade/natureza.

Palavras-chave:
Petróleo; Contaminação ambiental; Pesca; Vigilância da saúde pública; Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade

Abstract

In 2019, an oil spill of yet unknown origin affected several locations on the Brazilian coast. The purpose of this research was to capture the perceptions of women shellfish gatherers in the Jaguaribe River estuary, Ceará, about exposure to oil and its consequences. The focal group technique was used for data collection and the Iramuteq software for the processing and analysis of the material. The results indicated the creation of two analytical categories: Social, economic, food production and consumption implications of shellfish gatherer families; and the knowledges, the participation and the surveillance in the context of (in)visibility of exposure to oil. It was observed that shellfisherwomen and their families constitute a population that is very exposed to the negative impacts caused by the oil spill, as they are significant from the socioeconomic, environmental, food production, consumption and health perspectives. Attention is drawn to health and social assistance policies for these fisherwomen/shellfish gatherers, with consequences on the food, water and nutrition security of families and the recognition of their knowledges and practices, constructed within a traditional way of life that produces and reproduces the existence in a close society/nature relationship.

Key words:
Petroleum; Environmental pollution; Fishing; Public health surveillance; Community-Based Participatory Research

Introdução

Em agosto de 2019 ocorreu o maior desastre ambiental causado por petróleo no litoral do Brasil, com origem desconhecida, envolvendo aproximadamente 5 mil toneladas de resíduos oleosos, 4 mil quilômetros de costa, 1.009 praias de 11 estados brasileiros e 55 unidades de conservação11 Soares MO, Teixeira CEP, Bezerra LEA, Paiva SV, Tavares TCL, Garcia TM,Araújo JT, Campos CC, Ferreira SMC, Matthews-Cascon H, Frota A, Mont'Alverne TCF, Silva ST, Rabelo EF, Barroso CZ, Freitas JEP, Júnior Melo M, Campelo RPS, Cavalcante RM. Oil spill in South Atlantic (Brazil): Environmental and governmental disaster. Mar. Policy 2020; 115.. É considerado, no mundo, a maior contaminação costeira tropical em extensão¹. Em março de 2020, ainda havia vestígios do material em 135 localidades². A exposição ao petróleo pode causar danos à saúde humana, degradação ambiental e problemas socioeconômicos a diversos grupos sociais.

A zona costeira da Região Nordeste é onde predomina a atividade de pesca do país, abrangendo 223 municípios e 196.546 pescadores, com uma média de 880 pescadores por município³. Dentre os grupos expostos ao petróleo no Ceará, encontram-se as mulheres pescadoras artesanais (MPA). Além de marisqueiras, desenvolvem múltiplas atividades na família: cuidam dos filhos e afazeres domésticos; trabalham na pesca com seus companheiros, na coleta, beneficiamento e comércio do pescado; e muitas provém o sustento familiar por meio da mariscagem de sururu e outros mariscos.

A mariscagem é realizada, preferencialmente, nos manguezais, e as mulheres ficam em contato direto com água. Trata-se de uma atividade fundamental para o desenvolvimento sustentável e conservação da natureza, uma vez que reduz a pobreza, combate as desigualdades de gênero e possibilita a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) para milhares de famílias em todo o mundo, especialmente, nos países em desenvolvimento44 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). The state of world fisheries and aquaculture 2018: Meeting the sustainable development goals. Roma: FAO; 2018. [cited 2019 Jul 23]. Available from: http://www.fao.org/3/i9540en/i9540en.pdf.,55 Rego RF. Vigilância em saúde do trabalhador da pesca artesanal na Baía de Todos os Santos: da invisibilidade à proposição de políticas públicas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Bras Saúde Ocup 2018; 43(Supl. 1):1-9.. Apresenta-se, portanto, como uma prática de resistência da vida e autonomia das mulheres66 Nunes E, Garcia M. Marisqueiras do recanto do ipiranga: a pesca artesanal como prática de resistência da vida e autonomia das mulheres. Rev Khora 2019; 6(7).. Porém, com a contaminação do ambiente com o petróleo, as trabalhadoras podem ter agravamento da sua condição de saúde e Insegurança Alimentar e Nutricional (INSAN) contribuindo para alterações na dinâmica e funcionalidade da família.

Carneiro et al.77 Carneiro FF, Pessoa VM, Teixeira ACA. Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. 1. ed. vol. 1. Brasília: Unb; 2017. 464 p. referem-se ao direito das populações do campo, da floresta e das águas (PCFA), tais como: acesso à educação, à moradia, ao transporte público, à comunicação e ao saneamento ainda como um desafio, sobretudo, quanto à qualidade dos serviços ofertados. As populações das águas são caracterizadas por povos e comunidades que têm seus modos de vida, produção e reprodução social relacionados predominantemente com o ambiente aquático. Neste contexto estão as MPA. Considerando que os efeitos na saúde das trabalhadoras podem permanecer invisibilizados e que as MPA estão entre os grupos populacionais mais expostos ao desastre com petróleo, indagou-se: como o derramamento de petróleo afetou a vida de MPA no Ceará? Objetiva-se apreender as percepções das MPA acerca da exposição ao petróleo e suas consequências.

Metodologia

Tipo de pesquisa

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, com a finalidade de aprofundar a compreensão de um grupo social para entender a transformação da realidade e o problema sob o olhar dos sujeitos que o vivenciam em seu cotidiano, sendo do tipo exploratória e descritiva88 Bosi MLM, Uchimura KY. Avaliação da qualidade ou avaliação qualitativa do cuidado em saúde? Rev Saude Publica 2007; 41(1):150-153.. Assim, procura-se apreender opiniões, atitudes e crenças e proporcionar uma nova visão sobre o fenômeno ou problema estudado. O aspecto exploratório proporciona uma visão geral acerca de determinado fato, bem como desenvolve e modifica ideias e conceitos tendo em vista a formulação de problemas ou hipóteses para posteriores estudos99 Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas; 2008..

Local da pesquisa

A pesquisa foi realizada no estado do Ceará cuja pesca artesanal está presente em diversas comunidades. Desse modo, a partir de uma solicitação da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP) e do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) foi realizada uma escuta das condições de vida e de trabalho, especialmente, das mulheres trabalhadoras da atividade de mariscagem do estuário do Rio Jaguaribe.

Coleta de dados, participantes do estudo e aspectos éticos

Utilizou-se a técnica do Grupo Focal (GF), que permite reunir pessoas que tenham experiências comuns com a finalidade de investigar determinadas questões, cabendo ao pesquisador desempenhar a função de mediador na condução do diálogo1010 Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016. 336 p.. Neste caso, apreender as percepções de trabalhadoras da pesca artesanal acerca da exposição ao petróleo e suas consequências.

O GF foi realizado em novembro de 2019, com 13 mulheres. Adotou-se um roteiro com questões sobre as consequências do derramamento de petróleo no trabalho, na vida e na saúde das MPA. Os discursos foram gravados, transcritos e analisados. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Este estudo se insere no âmbito do projeto de Pesquisa “Produção de indicadores para a avaliação das condições de vida das famílias e acesso aos serviços de atenção primária em territórios do litoral e do sertão do Ceará e do Rio Grande do Norte”, aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Escola de Saúde Pública do Ceará e financiado pelo Programa Inova Fiocruz, Edital Novos Talentos.

Processamento e análise dos dados

Para dar suporte à análise dos dados, foi utilizado o software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) versão 0.7 alfa 2 desenvolvido por Ratinaud no ano de 2009. Trata-se de um programa livre, que se ancora no software R 3.5.1 permitindo o processamento e análises estatísticas de textos produzidos1111 Moimaz SAS. Análise qualitativa do aleitamento materno com o uso do software Iramuteq. Saúde e Pesquisa 2016; 9(3):567-577..

As informações transcritas procedentes do GF foram submetidas no Iramuteq por meio de um arquivo único devidamente configurado em formato de texto (.txt). O conjunto de textos no arquivo é chamado de corpus. Uma unidade de texto por sua vez depende da natureza da pesquisa, por exemplo, se a análise for aplicada a partir de um conjunto de entrevistas, cada uma delas será um texto1212 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do IRAMUTEQ. Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição. UFSC - Brasil. 2018.. Neste estudo como a técnica utilizada foi o GF, o corpus foi formado a partir do depoimento das marisqueiras.

Para dar suporte à análise dos conteúdos textuais foram utilizadas três técnicas fornecidas pelo Iramuteq: Análise Lexicográfica, Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e Nuvem de Palavras. É importante ressaltar que o uso do Iramuteq para compilação e codificação dos dados qualitativos não exclui o trabalho reflexivo analítico do pesquisador1010 Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016. 336 p..

Resultados e discussões

Caracterização do perfil socioeconômico das marisqueiras

Nesta pesquisa, as trabalhadoras participantes totalizaram treze mulheres, sendo nove marisqueiras, duas artesãs, uma doméstica e uma desempregada.

Em relação às nove marisqueiras, evidencia-se que a média de tempo de trabalho é de 30 anos e 4 meses e varia de 13 a 46 anos, com mediana de 30 anos. As nove trabalhadoras se referiram ao Rio Jaguaribe como seu principal ambiente de trabalho. Segundo Xavier1313 Xavier FRL. Análise da hidrodinâmica do rio Jaguaribe utilizando o modelo numérico delft3d [dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2019., esse é o maior curso d’água do Ceará, e que percorre um trajeto aproximado de 610 quilômetros, e tem sua foz entre os municípios de Fortim e Aracati, abrigando um conjunto de ecossistemas como manguezais e estuários que desempenham papel fundamental no que diz respeito às atividades humanas como a pesca.

Quanto à raça, três marisqueiras se consideram negras, três pardas, duas morenas e uma indígena. Desse total, seis são casadas, duas solteiras e uma é viúva. A renda individual varia de R$250,00 a R$988,00 - um salário mínimo em 2019. Já a renda familiar da maioria chega a ser um salário mínimo, com exceção da família de uma das pescadoras que recebe três salários. A faixa etária predominante foi entre 40 e 49 anos (55,5%) com amplitude para 38 a 61 anos. Todas as participantes alegaram que suas famílias vivem há mais de 20 anos nas comunidades pesqueiras dessa região, a maioria desde que nasceu, o que resultou na apropriação e dominação desse espaço a partir das suas relações e tradições. Segundo as MPA, residem nessas comunidades aproximadamente novecentas famílias afetadas pelo desastre, “muito pescador e marisqueira foram afetados”.

No que diz respeito à escolaridade, seis marisqueiras apresentam ensino fundamental incompleto, duas possuem ensino médio incompleto e apenas uma com ensino médio completo, evidenciando uma baixa escolaridade. O número de filhos variou entre zero a oito, com uma média de quatro filhos. Chama-se atenção para a marisqueira viúva que tem oito filhos em que todos trabalham na pesca artesanal, sendo cinco pescadores e três marisqueiras. Essas informações reforçam que este é um trabalho tradicional, e que as marisqueiras tendem a iniciar seu trabalho muito cedo e muitas herdam essa prática de suas mães: “comecei trabalhando no sururu (com minha mãe) com 12 anos, hoje eu estou com 54 anos e ainda vivo na mesma luta”.

Vale salientar que oito marisqueiras recebem visitas dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e sete dos Agentes de Controle de Endemias (ACE) nos seus territórios. Todavia, alguns autores destacam que ainda são necessárias políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) para trabalhadoras não assalariadas ligadas à pesca artesanal de forma a atender as especificidades relacionadas ao seu modo de vida1414 Pena GLP, Martins V, Rego RF. Por uma política para a saúde do trabalhador não assalariado: o caso dos pescadores artesanais e das marisqueiras. Rev Bras Saude Ocup 2013; 38(127):57-68..

Categorias analíticas e estatística textual

O arquivo processado no Iramuteq foi separado em 164 segmentos de textos (ST), que são fragmentos de textos compostos por até três linhas e com vocabulário semelhante. O corpus teve aproveitamento de 139 ST, o que corresponde a uma retenção de 84,76%. A retenção mínima do conteúdo deve ser de 70% para o processo ser considerado representativo1212 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do IRAMUTEQ. Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição. UFSC - Brasil. 2018.. O software também contabilizou 5.958 ocorrências de palavras, formas ou vocábulos, com 734 palavras distintas e 324 ditas apenas uma única vez.

Para facilitar a visualização das palavras representativas no corpus, segue a nuvem de palavras na Figura 1, que as organizam graficamente em função da sua frequência.

Figura 1
Nuvem de Palavras.

Na Figura 1 quanto maior a palavra, maior seu grau de importância, é o caso de: “marisco, peixe, sururu, vender, comer, óleo, petróleo, rio Jaguaribe, saber, pescador, colônia, marisqueiras”. As palavras “pescador”, “vender”, “saber”, “rio Jaguaribe” e “óleo” foram as que tiveram maior frequência na nuvem sendo ditas pelos participantes 40, 39, 37, 36 e 33 vezes respectivamente. Assim, é possível inferir que as marisqueiras discutiram principalmente sobre a venda do pescado; e o óleo no Rio Jaguaribe.

O conteúdo gerado pelo GF foi categorizado em seis classes (Figura 2). Dessas classes foram gerados dois subcorpora, A e B, cada um composto por três classes. A CHD lista as palavras de cada classe a partir do teste Qui-Quadrado > 3 (x²), que representa a associação mais significativa de cada palavra com a classe em que se encontra1515 Melo TJA. Utilidade social em empreendimentos da economia solidária: o caso das mulheres do artesanato (Natal/RN) [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio; 2018..

Figura 2
Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente contendo as palavras mais frequentes no corpus da pesquisa.

Para cada subcorpora emergiram duas categorias analíticas (Quadro 1). Foi possível nominá-las através da análise dos agrupamentos dos ST contidos nessas classes que foram compreendidos pela interpretação dos significados dos dados sustentados pela literatura1616 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IMV, Peres AM. The use of IRAMUTEQ software for data analysis in qualitative research. Rev Esc Enferm USP 2018; 52:e03353. De acordo com Suassuna1717 Suassuna L. Pesquisa qualitativa em Educação e Linguagem: histórico e validação do paradigma indiciário. Perspectiva 2008; 26(1):341-377. as categorias analíticas surgem do próprio conteúdo dos dados sob análise, servindo, portanto, como um guia para o conhecimento.

Quadro 1
Síntese das Categorias Analíticas.

Implicações sociais, econômicas, produtivas e de consumo de alimentos das famílias marisqueiras

Se a gente quer pegar nossos direitos não pode, porque não tem aquele sururu para a gente vender para pagar a colônia, então fica muito difícil. E a gente não ganha nenhum benefício e fica mais difícil ainda. As marisqueiras só fazem pagar e não recolhe nada, fica muito difícil para nós. Os pescadores eles ainda têm ao menos uma vez por ano para receber pelo menos umas três parcelas, ‘mas as marisqueiras entram ano e sai ano e não ganha nada’. Só ganha o que vende do marisco.

Neste estudo são relatados “sacrifícios de madrugada e durante o dia” e problemas de saúde como “escoliose, doenças na mão e no joelho”. Além dos adoecimentos e acidentes relacionadas ao trabalho, as marisqueiras reforçam que não têm reconhecimento previdenciário, tornando-as inviabilizadas de direitos trabalhistas1818 Pena GLP, Gomez CM. Saúde dos pescadores artesanais e desafios para a Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4689-4698..

A gente paga (a colônia), mas no dia que precisamos somos humilhadas aí fica difícil para nós. Agora se existisse o seguro-desemprego para as marisqueiras aí facilitava, mas cadê?

As marisqueiras estão desamparadas não tem política pública para elas e o governo tem que ajudar nessa hora [...]

Eu tenho que batalhar no sururu para ter aquele dinheiro para pagar a minha colônia e se eu não for trabalhar fica muito difícil [...]

As marisqueiras relatam dificuldades para pagar a colônia em virtude do desastre e demonstram um clima de apreensão, pois há falta de assistência tanto do poder público, quanto da colônia de pescadores. Em novembro de 2019 o Governo Federal publicou a Medida Provisória 908/20191919 Brasil. Medida Provisória n° 908, de 2019. Brasília: Congresso Nacional; 2019. [acessado 2020 maio 1]. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/140001 que instituiu o auxílio emergencial a pescadores e pescadoras afetados por manchas de óleo com um valor individual fixado em R$ 1.996,00 com o objetivo de alcançar mais de 60 mil pescadores. Contudo, foram beneficiados apenas os pescadores com Registro Geral de Atividade Pesqueira (RGP)2020 Brasil. Agência Senado. Pescadoras denunciam falta de apoio à afetados pelo derramamento de petróleo. Brasil: Senado Federal; 2020 [acessado 2020 abr 12]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/03/pescadoras-denunciam-falta-de-apoio-a-afetados-pelo-derramamento-de-petroleo..

Sabe-se que há uma dificuldade na regularização do RGP e que as mulheres e os jovens pescadores não o têm conseguido, pela descontinuidade política do Ministério da Pesca, tendo como consequência a exclusão do auxílio a milhares de trabalhadoras. Para Rego et al.55 Rego RF. Vigilância em saúde do trabalhador da pesca artesanal na Baía de Todos os Santos: da invisibilidade à proposição de políticas públicas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Bras Saúde Ocup 2018; 43(Supl. 1):1-9. o que acontece é que as marisqueiras são ignoradas na coleta de dados oficiais sobre o trabalho não remunerado, resultando em uma barreira para acessar recursos financeiros, apoio institucional e político.

Além disso, a venda do pescado despencou muito, em alguns casos chegando a zero, atingindo violentamente a principal fonte de renda e de alimento das famílias das marisqueiras. Isso ocorreu pelo medo dos consumidores por acharem que o alimento está contaminado. Esses acontecimentos têm gerado, inclusive, problemas psicológicos para as trabalhadoras, como desespero, estresse e tristeza. De acordo com Won et al.2121 Won YJ, Jang S, Jung N, Kwon Y, Moon SY, Nho H, Yoo SJ. Ten Years after the Oil Spill in Taean: The Recovery of the Ecosystem, the Life of Women, and the Community. Asian Women 2019; 35(4):1-22. os desastres ambientais têm impactos mais significativos e prolongados para as mulheres sob as perspectivas “física, mental e socioeconômica”, por exemplo, nas oportunidades de trabalho limitadas que desencadeiam conflitos nas comunidades e depressão.

O marisco, o sururu, tem um rapaz que compra, mas, às vezes, eles não querem, então ficamos sem fazer nada, sem trabalhar e sem receber.

Meu marido e meu cunhado eles tiravam noventa e seis quilos de mariscos por semana, mas agora depois desse óleo não tiram um quilo, porque o rapaz que compra mandou parar

Fica muito difícil, pois quem vende tem que tratar né, a gente ‘passa por essa humilhação’, porque para vender tem que ser tratado, senão tratar não vende.

Eu vou para a feira e quando a gente chega na feira ‘ficamos muito triste’, porque o pessoal não quer comprar, ficam botando dificuldade aí fica é molengando o peixe ‘acham que tem óleo dentro’.

Outro ponto que chama atenção são os peixes e os mariscos que não foram comercializados e se tornaram a principal fonte de alimento das famílias. Em relação à contaminação do pescado no Brasil, de 68 amostras analisadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), duas apresentaram níveis de preocupação à saúde definidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ou seja, maiores que seis miligramas de benzo(a)pireno - equivalente (BaPE)/kg para peixes2222 Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Ministério divulga novos resultados da análise de pescado da área atingida por óleo. Brasília: MAPA. 2019. [acessado 2020 mar 3]. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-divulga-novos-resultados-da-analise-de-pescado-da-area-atingida-por-oleo.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/ass...
. Vale salientar que essas amostras foram coletadas em estabelecimentos sob Inspeção Federal, excluindo, portanto, os pescados de PPA. Os valores de BaPE encontrados foram 9,51 e 7,95 mg/kg2222 Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Ministério divulga novos resultados da análise de pescado da área atingida por óleo. Brasília: MAPA. 2019. [acessado 2020 mar 3]. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-divulga-novos-resultados-da-analise-de-pescado-da-area-atingida-por-oleo.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/ass...
. Em um dos maiores desastres com óleo bruto já registrado - Deepwater Horizon, Golfo do México, 2010, no qual foram despejados no oceano cerca de 450 mil toneladas de petróleo - os valores de BaPE nos primeiros 12 meses após o derramamento foram de 75,4 mg/kg em peixes2323 Olson GM, Meyer BM, Portier RJ. Assessment of the toxic potential of polycyclic aromatic hydrocarbons (PAHs) affecting Gulf menhaden (Brevoortia patronus) harvested from waters impacted by the BP Deepwater Horizon Spill. Chemosphere 2016; 145:322-328.. Estudos mostram que os HPA incluem substâncias que causam danos genotóxicos e que são cancerígenas, como o benzo(a)pireno2424 Aguilera F, Mendez J, Pasaro E, Laffon B. Review on the effects of exposure to spilled oils on human health. J Appl Toxicol: An Intern J 2010; 30(4):291-301..

Se aparecer um filho de Deus que ajude a gente ainda vou vender, mas senão vamos comendo aos poucos e o mais difícil é que a gente tem que se alimentar desse marisco.

Ademais, por realizarem suas atividades desembarcadas - “até de mergulho a gente tira marisco [...] porque a gente trabalha pela maré.” -, ou seja, em contato direto com a água, durante horas, as marisqueiras se expõem às substâncias químicas presentes no óleo bruto, como os HPA, que por serem fatores de riscos à saúde, estão associados a dermatoses, problemas nos olhos, náuseas, dores de cabeça, doenças endócrinas e potenciais ao sistema reprodutivo, como a gravidez2525 Kim BM, Park EK, LeeAn SY, Ha M, Kim EJ, Kwon H, Hong YC, Jeong WC, Hur J, Cheong HK, Yi J, Kim JH, Lee BE, Seo JH, Chang MH, Ha EH. BTEX Exposure and its Health Effects in Pregnant Women Following the Hebei Spirit Oil Spill. J Prev Med Public Health 2009; 42(2):96-103,2626 Fagundes DL. Dermatoses Ocupacionais por Derivados do Petróleo. Med. Ambulatorial VI: com ênfase em medicina do trabalho. Montes Claros: Dejan Gráfica e Editora; 2019. 462 p.. Assim, compreende-se que todos esses problemas agravaram ainda mais as condições socioeconômicas, ambientais, de produção, alimentação, e de saúde dessas populações que já são vulneráveis.

Os saberes, a participação e a vigilância no contexto de (in)visibilização da exposição ao petróleo

Os impactos causados pelo petróleo e seus componentes são diversos, podendo se “acumular no solo, nos sedimentos, contaminar a fauna, a flora, a água e, principalmente, os seres humanos”2727 Euzébio CS, Rangel GS, Marques RC. Derramamento de petróleo e seus impactos no ambiente e na saúde humana. RBCIAMB 2019; 52:79-98. (p. 82). Hoje a principal demanda das marisqueiras é saber se houve contaminação do Rio Jaguaribe, mas ainda sem respostas concretas a exemplo de estudos ambientais sistemáticos para caracterizar essa situação. Na zona costeira da região cearense a extensão do desastre ambiental contaminou a faixa de praia, os bancos de areia que afloram na maré baixa, áreas prioritárias para a mariscagem, e o ecossistema manguezal, aprofundando os riscos de interferência dos poluentes nos serviços ecológicos de provisão, regulação e culturais2828 Queiroz LS, Rossi S, Calvet-mir L, Ruiz-mallen S, García-Betorz S, Salvà-prat J, Meireles AJA. Neglected ecosystem services: Highlighting the socio-cultural perception of mangroves in decision-making processes. Ecosyst Serv 2017; 26:137-145.,2929 Meireles AJA, Braga SAL, Lima APS, Silva JA. Enfrentar as mudanças climáticas: plano participativo de Icapuí. Fortaleza: Ed. Fundação Brasil Cidadão; 2020. 95 p. [acessado 2020 mar 30]. Disponível em https://www.deolhonaagua.org.br/publicacoes/..

Lá onde colocaram as proteções acharam petróleo. Daí colocaram várias proteções para não entrar muito no rio Jaguaribe, se não colocasse isso tinha entrado [...] mas alguma coisa pode passar foi o que passaram para nós em uma reunião [...] mas não sei dessa resposta se entrou se não entrou.

Nós tememos pela nossa saúde, porque os consumidores não vão comprar o marisco, mas todas as pessoas que moram aqui e que comem o marisco e o peixe ficam sem saber o que vai causar na nossa saúde mais tarde, pois a gente encontrou petróleo no rio.

Pode-se evidenciar a preocupação das marisqueiras acerca dos problemas com o petróleo, em especial, na falta de divulgação de informações e análises ambientais para atestar a qualidade da água e dos alimentos. As pescadoras alertam para a omissão do poder público local na difusão de esclarecimentos, o que dificulta o planejamento no combate às manchas de petróleo. Segundo Pena et al.3030 Pena PGL, Northcross AL, Lima MAG, Rêgo RCF. Derramamento de óleo bruto na costa brasileira em 2019: emergência em saúde pública em questão. Cad Saude Publica 2020; 36(2):e00231019 foi corriqueiro nesse desastre a propagação de informações desencontradas das autoridades sem base técnica como, por exemplo, a indicação da suspensão generalizada do consumo de peixes e mariscos no Nordeste do Brasil. Com isso, foi percebido um elevado nível de preocupação e estresse em relação à incerteza dos impactos ecológicos e socioeconômicos a curto, médio e longo prazo.

É uma situação muito gritante, porque eu acho que ainda está sendo pouco divulgado. Eu estive em outra reunião essa semana na minha comunidade e eu me assustei com um pescador [...] ele não sabia que a nossa comunidade, a nossa praia tem e tinha encontrado vestígios de petróleo, ele não sabia. Quer dizer um pescador não sabia e está passando diariamente na televisão, mas assim nós que vivemos da pesca ainda somos muito desinformados.

O monitoramento das praias do Ceará contou com o apoio dos pescadores e das pescadoras, que ajudaram na limpeza e identificação da poluição. De acordo com Rêgo et al. (p. 7)55 Rego RF. Vigilância em saúde do trabalhador da pesca artesanal na Baía de Todos os Santos: da invisibilidade à proposição de políticas públicas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Bras Saúde Ocup 2018; 43(Supl. 1):1-9. “os pescadores artesanais e as marisqueiras são sujeitos sociais centrais das práticas sanitárias e dos processos de melhoria das condições de trabalho e saúde nos territórios pesqueiros”. Os povos das águas podem atuar no levantamento de dados e ajudar na fiscalização e mitigação causados pelo desastre pelo conhecimento que contam de seu território. Contudo, a Vigilância em Saúde, que hoje reúne a vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e de saúde do trabalhador ainda tem muito que progredir, principalmente, na criação de métodos de trabalho mais participativos3131 Correia-Filho HR. A utopia do debate democrático na Vigilância em Saúde. Saude Debate 2019; 43(123):979-982..

É inerente na concepção da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) a participação das organizações sociais de trabalhadores envolvidas na discussão do processo de trabalho e nas mudanças necessárias à melhoria das condições de vida e de trabalho, entretanto é um grande desafio ainda a chegada dessa vigilância nesses territórios e com essa concepção, como já destacado por alguns autores55 Rego RF. Vigilância em saúde do trabalhador da pesca artesanal na Baía de Todos os Santos: da invisibilidade à proposição de políticas públicas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Bras Saúde Ocup 2018; 43(Supl. 1):1-9.. Segundo Pena et al.1414 Pena GLP, Martins V, Rego RF. Por uma política para a saúde do trabalhador não assalariado: o caso dos pescadores artesanais e das marisqueiras. Rev Bras Saude Ocup 2013; 38(127):57-68. a ação pública deve considerar o fornecimento de proteção individual e coletiva construídas social e culturalmente, a garantia da realização de exames médicos preventivos para diagnóstico precoce das doenças relacionadas ao trabalho, assegurar a reabilitação profissional com o reconhecimento de nexos previdenciários, o aperfeiçoamento de sistemas de notificação de doenças e acidentes do trabalho artesanal e não assalariado, dentre outras.

Assim, é preciso um novo processo de reivindicação para a melhoria das condições de trabalho de populações afetadas por problemas ambientais3232 Carvalho IGS, Rego RCF, Larrea-Killinger C, Rocha JCS, Pena PGL, Machado LOR. Por um diálogo de saberes entre pescadores artesanais, marisqueiras e o direito ambiental do trabalho. Cien Saude Colet 2014; 19(10):4011-4022. Dessa forma, compreende-se a Vigilância em Saúde Ambiental (VSA) e a VISAT como um caminho que tem muito a contribuir com o SUS, uma vez que atuam significativamente na proteção das populações expostas a riscos ambientais e do trabalho, como o petróleo.

Entretanto, foi percebido que as vozes das MPA foram pouco consideradas na identificação deste problema. Segundo as marisqueiras, não há esforços para que possam ajudar na vigilância do trabalho e do ambiente e suas informações não são consideradas pelo poder público. Ainda prevalece uma desvalorização dos saberes das pescadoras artesanais sobre seus territórios3333 Ferreira MAG. "Nós Não Somos Feministas. Só Queremos Ser Reconhecidas como Pescadoras": Interseccionalidades e Performances Narrativas de Pescadoras Negras em Arraial do Cabo. Linguagem em Foco 2020; 11(2):148-164.. Todavia o diálogo de saberes com esses povos é fundamental para formular um Direito Ambiental do Trabalho (DAT) mais abrangente e democrático, com vista a um meio ambiente de trabalho saudável, principalmente, quando essas populações são afetadas por problemas ambientais3232 Carvalho IGS, Rego RCF, Larrea-Killinger C, Rocha JCS, Pena PGL, Machado LOR. Por um diálogo de saberes entre pescadores artesanais, marisqueiras e o direito ambiental do trabalho. Cien Saude Colet 2014; 19(10):4011-4022.

A gente sabe o que tá acontecendo [...] a ‘gente grita, mas o nosso grito eles estão abafando’ [...] não tem voz [...] não tem vez [...] isso é gravíssimo porque nossa voz ‘é a gente que sabe, o nosso problema’, a nossa situação.

Eles disseram que a gente tinha que ter mandado chamar (o poder público) e tinha que ter outras pessoas para afirmar o que você diz. Então, o que você diz não serve e foi isso que me deixou tão chateada, que eu digo aqui não vou mais nem continuar, porque, eu tenho conversado com o poder público com preocupação que não era outra coisa, mas nossa saúde.

Uma forma que as trabalhadoras encontraram para atuar como vigilantes foi participando dos espaços de discussões, como em audiências públicas, a fim de contribuir com o SUS e com as Secretarias Municipais nos processos de tomada de decisão como uma espécie de gestão compartilhada para reduzir a poluição e os danos ambientais. É fundamental discutir de forma intersetorial como atuar nesse episódio do petróleo. Assim, o depoimento de quem sofre os impactos diretos pode ser um caminho de convocar os serviços públicos e privados para atuar de forma mais firme na melhoria de qualidade de vida em um contexto desafiador.

Quanto aos danos ecológicos, a fauna aquática e terrestre da costa brasileira foi atingida por petróleo, como cágados, tartarugas marinhas, mamíferos marinhos, peixes e aves. Segundo o último Boletim Oficial publicado pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis ​​(Ibama)22 Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Manchas de óleo: litoral brasileiro. Brasília: IBAMA. [acessado 2020 mar 23]. Disponível em: http://ibama.gov.br/manchasdeoleo.
http://ibama.gov.br/manchasdeoleo...
, em fevereiro de 2020, foi registrado a ocorrência de 159 animais oleados com 112 óbitos.

Lá na minha comunidade na praia foi encontrado peixe com vestígios de óleo e uma tartaruga morta coberta com petróleo [...] a tartaruga foi encontrada coberta de petróleo.

Lá na Comunidade Canavieira a minha prima eu não sei se foi coisa da mente dela, mas pescamos o sururu para consumo e ela afirmou que estava com cheiro de petróleo. [...] mesmo cozido o cheiro permaneceu.

Um pouco de óleo na praia está grudado nas pedras [...].

Além disso, o GF relatou adoecimentos que podem estar relacionados à ingestão de alimentos contaminados e pelo contato com a água do rio e do mar.

E eu já comi camarão depois disso, mas nesse dia depois que eu comi o camarão passou uma hora aconteceu isso de inchar meu rosto e eu sou acostumada a comer camarão. Eu fiquei toda inchada, o meu rosto, fiquei toda inchada e rouca [...]

Eu disse para o meu neto: olha tu não vais tomar banho no rio, porque eu já tinha medo por causa dessa água. Aí chegou um barco de atum eu sei que o barco ainda estava carregado de atum peixe grande e ele inventou de subir lá foi nadando e voltou. Quando ele chegou lá em casa ele estava com o rosto todo inchado a língua inchada cheia de bolhas.

De acordo com Pena et al.3030 Pena PGL, Northcross AL, Lima MAG, Rêgo RCF. Derramamento de óleo bruto na costa brasileira em 2019: emergência em saúde pública em questão. Cad Saude Publica 2020; 36(2):e00231019 “os riscos toxicológicos envolvidos são graves, agudos e crônicos, com atenção especial para frações tóxicas do petróleo que podem levar à morte por intoxicação, especialmente, associada aos compostos aromáticos”. A toxicidade aguda é definida como efeito de curto prazo e imediato pela simples exposição ao derramamento e a crônica diz respeito aos efeitos a longo-prazo, ou seja, a partir da exposição contínua de um contaminante com danos na saúde humana e no ambiente após um longo período de tempo3434 Stevanato DJ. Efeitos de hidrocarbonetos derivados de petróleo em Astyanax lacustris (Lütken, 1875) [dissertação]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2020.. Nesse sentido, os relatos acima podem ser resultados da exposição aguda, ou seja, quando o indivíduo é exposto a altas concentrações, resultando em aparecimento de doenças como a irritação de mucosas, pele e olhos.

Considerações finais

As doenças relacionadas ao trabalho têm sido constantemente negligenciadas junto à população trabalhadora em geral, e as MPA devem constituir um grupo prioritário de ações em saúde pública no caso de exposição ao petróleo devido à atividade pesqueira desembarcada bem como às vulnerabilidades associadas a diversos contextos como a gravidez. Assim, chama-se atenção para as políticas de saúde e de assistência social, pois como observado, as trabalhadoras não possuem seguro defeso, desemprego e emergencial com severas consequências na situação de INSAN das famílias, precisando ser monitoradas a curto, médio e longo prazo.

A presença das marisqueiras nos ambientes de discussões foi tratada como fundamental para traçar estratégias para a VISAT e a VSA, conter os danos da emergência e desenvolver práticas de vigilância mais participativas e em diálogo com as comunidades. Salienta-se, que além da participação das MPA, é fundamental reconhecer seus saberes e práticas, construídos dentro de um modo de vida tradicional que não separa e exclui o trabalho, a experiência de viver e conviver com dinâmicas familiares e que produz e reproduz a existência numa estreita relação sociedade/natureza.

Por fim, constata-se que os sistemas ambientais de suporte à soberania alimentar e hídrica foram fortemente afetados conforme se percebe nos depoimentos das marisqueiras. Os danos causados aos ecossistemas de usufruto comunitário foram evidenciados definindo níveis elevados de contaminação da cadeia alimentar, agravando as consequências à vida, à saúde coletiva. Estes danos estão vinculados aos impactos cumulativos que afetaram os serviços ecológicos em sistemas ambientais de elevada fragilidade socioambiental.

Agradecimentos

À Maria Eliene Pereira do Vale, da ANP, Camila Batista Silva Gomes, da CPP; Às pescadoras; À CAPES; À Universidade Federal do Ceará; Ao Programa INOVA Fiocruz.

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Editado por

Editores-chefes: Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2020
  • Aceito
    26 Jul 2021
  • Publicado
    28 Jul 2021
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