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Os corpos etéreos dos blogs pró-ana: comunidades emocionais e espaços de sociabilidade na web

Resumo

O presente artigo procurou compreender como jovens anoréxicas utilizam ambientes virtuais como espaços de sociabilidade para a construção de uma narrativa sobre a anorexia, para ancorar suas experiências pela mutualidade emocional e para validar discursos. Realizou-se análise de conteúdo da sessão de comentários e posts de blogs pró-anorexia sendo identificadas três categorias temáticas: corpo, identidade pessoal e sociabilidade na rede. Observou-se que os blogs são espaços virtuais de sociabilidade e de construção de coletivos identitários. As representações e as vivências pela materialidade corporal alimentam o cyber espaço e são o ponto de partida para compreensão de um fenômeno particular à contemporaneidade, que são as trocas virtuais. Nos blogs localizam-se narrativas corporais que procuram dar coerência ao indivíduo e à sua existência bem como ancorar e legitimar experiências pessoais e validar atitudes pró-anorexia. São reforçados os laços sociais dentro do grupo que se transforma em uma comunidade emocional. Os sentidos dos discursos circulantes permitem inferir que nestes grupos, a materialidade dos corpos anoréxicos se emancipa dos estigmas sociais de doença.

Palavras-chave:
Anorexia nervosa; Adolescente; Internet

Abstract

The study presented in this paper aimed at understanding how anorexic young women use virtual environments as spaces of sociability in order to construct a narrative about anorexia, anchor their experiences through emotional mutuality and validate discourses. To do so, an analysis of the content found in the commenting and posting sections of pro-anorexia blogs was carried out. Three thematic categories were identified: body, personal identity and sociability on the web. It was observed that blogs are virtual spaces of sociability and construction of identity groups. The representations and the experiences lived by the corporal materiality feed cyberspace and are the starting point for understanding a phenomenon particular to the contemporaneity, that is the virtual exchanges. In blogs, one can find body narratives that seek to give coherence to an individual and to his or her existence as well as narratives that aim at anchoring and legitimizing personal experiences and validating pro-anorexia attitudes. Social ties are strengthened within the group, which becomes an emotional community. The meanings of the spreading discourses allow us to infer that in these groups, the materiality of anorexic bodies emancipates itself from the social stigmas of a disease.

Key words:
Anorexia nervosa; Adolescent; Internet

Introdução

Os transtornos alimentares envolvem um conjunto de fatores e condições físicas, emocionais e sociais complexas em que a relação do sujeito com o alimento e com o corpo está perturbada. Na anorexia nervosa, o comportamento alimentar está gravemente alterado a ponto de provocar efeitos deletérios na saúde do indivíduo. Manifestam-se distúrbios na percepção da imagem corporal e consequentemente um controle patológico do peso11 American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental disorders. Washington: APA; 2013..

A anorexia nervosa é caracterizada pela grande perda de peso intencional, causada por dietas restritivas e padrões rígidos para alcançar uma condição corporal de magreza excessiva22 Garfinkel PE, Goldbloom DS. Transtornos alimentares: anorexia nervosa e bulimia nervosa. In: Carlson GA, Weller EB, Garfinkel BD. Transtornos psiquiátricos na infância e na adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. p. 100-111.,33 Striegel-Moore R, Bulik C: Risk factors for eating disorders. Am Psychol 2007; 62(3):181-198.. A alteração do hábito alimentar, geralmente, é iniciada com jejum crescente que evolui para um rígido controle do consumo alimentar e ingestão de nutrientes.

A rotinização do controle dietético por meio da realização de dietas restritivas, o ideal fino e a instrumentalização corporal estão presentes no contexto social de ocorrência dos transtornos alimentares nas sociedades contemporâneas ocidentais. Fatores pessoais e experiências alimentares negativas são fatores relevantes na etiologia e desenvolvimento dos transtornos44 Chadda R, Malhotra S, Asad AG, Bambery P. Socio-cultural factors in anorexia nervosa. Indian J Psychiatry 1987; 29(2):107-111.

5 Racine SE, Wildes JE. Emotion dysregulation and symptoms of anorexia nervosa: The unique roles of lack of emotional awareness and impulse control difficulties when upset. Int J Eat Disord 2013; 46(7):713-720.

6 Wildes JE, Marcus MD. Development of emotion acceptance behavior therapy for anorexia nervosa: A case series. Int J Eat Disord 2011; 44(5):421-427.

7 Haynos AF, Fruzzetti AE. Anorexia nervosa as a disorder of emotion dysregulation: Evidence and treatment implications. Clin Psychol Sci Pr 2011; 18(3):183-202.
-88 Leon GR, Fulkerson JA, Perry CL, Keel PK, Klump KL. Three to four year prospective evaluation of personality and behavioral risk factors for later disordered eating in adolescent girls and boys. J Youth Adolesc 1999; 28(2):181-196.. Mulheres jovens são as principais protagonistas destas histórias99 Smink FRE. van Hoeken D. Hoek HW. Epidemiology of eating disorders: Incidence, prevalence and mortality rates. Curr Psychiatry Rep 2012; 14(4):406-414.. Do ponto de vista da Sociologia, é possível pensar a anorexia não somente como uma doença específica, mas o resultado de processos complexos da identidade na contemporaneidade. Nela os regimes corporais “se abrem à atenção reflexiva contínua” para cultivar um projeto do eu1010 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2002.. A anorexia como uma doença da subjetividade lança questão sobre os regimes de subjetivação implicados nos processos de constituição singular de uma autoidentidade, de uma narrativa sobre ser mulher. Giddens1010 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2002. lança luz sobre a anorexia e a reflexividade do corpo, considerando que as mulheres experimentam “a abertura da modernidade tardia de uma maneira mais plena e ao mesmo tempo mais contraditória” ao abandonarem certas identidades de forma mais contundente. Seria para Giddens1010 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2002. uma espécie de “acidente da necessidade - e responsabilidade” do próprio do indivíduo, que não de maneira fortuita acomete sobretudo as mulheres - em sua juventude - nos momentos de determinação de sua identidade no mundo social.

Este artigo abordará o conjunto de situações que caracterizam a anorexia, não a partir das categorias nosológicas da biomedicina. Os pensamentos, sentimentos e comportamentos que envolvem uma experiência anoréxica serão revisitados como subjetividades potencialmente afetadas pelos vínculos sociais e dinâmicas da realidade em que se constituem. Portanto, em uma perspectiva sociológica, tentar-se-á, tomando o corpo como uma modalidade física de relação com o mundo1111 Breton D. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Vozes; 2006., compreender as práticas corporais e os repertórios comportamentais na anorexia como produtos dos regimes de economias psíquicas particulares à sociedade contemporânea. Desta forma, ao invés de uma pesquisa qualitativa realizada com a coleta de dados por entrevista face a face, utilizaram-se dados produzidos pela vivência de novas linguagens na modernidade: aquelas produzidas em contextos virtuais1212 Hine C. Virtual Ethnography. London: SAGE Publications; 2000..

Os transtornos alimentares e a vida digital

Novas formas de comunicação emergiram na sociedade contemporânea que incorpora crescentemente tecnologias e redes sociais no cotidiano de jovens e adolescentes1313 Sá S. Polivanov B. Presentificação, vínculo e delegação nos sites de redes sociais. Comunic Midia Consumo 2012; 9:13-36.. O ciberespaço é um canal poderoso de uma linguagem que as novas gerações, sobretudo os nativos digitais, dominam perfeitamente sua sintaxe e sua semântica. Já as consequências nas subjetividades e as implicações sociais destas novas configurações de relacionamentos - mediadas pela máquina - ainda precisam ser melhor esclarecidas e dimensionadas.

Na rede mundial de computadores, webbloggers ou blogs são diários virtuais em que os conteúdos são atualizados cronologicamente. As publicações contêm conteúdos pessoais e imagens em que o autor escreve seu cotidiano e seus pensamentos de forma espontânea e descompromissada1414 Pinheiro GE, Maciel RH. Blogs pró-anorexia. Rev Psico 2010; 1(1):49-62..

Nestes espaços, membros se encontram, se (re)conhecem, trocam experiências e compartilham visões de mundo. Vínculos podem se estabelecer e redes de identificação são acionadas com o uso do sistema de comentários que permite níveis de interatividade à escolha dos participantes. Ainda que o ambiente seja virtual, trata-se de um campo social real, um espaço societal que se tornou instrumento poderoso que permeia trocas e encontro de subjetividades1212 Hine C. Virtual Ethnography. London: SAGE Publications; 2000..

Nos blogs pró-anorexia ou pró-ana, o objetivo de perder peso é reafirmado e valorizado com a sensação de pertencimento grupal1515 Giles D. Constructing identities in cyberspace: The case of eating disorders. Br J Soc Psychol 2006; 45(3):463-477.. Nestes ambientes virtuais expõem-se intencionalmente plásticas e estéticas de corpos, estilos e modos de existência que atuam como canal de comunicação. Contudo, estas comunidades virtuais que se caracterizam como um fenômeno emocional tem consequências clínicas relevantes visto que funcionam como dispositivos antitratamento e antirrecuperação.

O presente artigo procurou compreender como jovens utilizam ambientes virtuais como espaços de sociabilidade para construção de uma narrativa sobre a anorexia, para ancorar suas experiências pela mutualidade emocional e para validar discursos anoréxicos.

Notas sobre o método

Trata-se um estudo no campo da sociologia da saúde. Foram selecionados para fazer parte da unidade empírica da pesquisa quatro blogs pró-anorexia que atenderam os seguintes critérios: o blog ser brasileiro, estar ativo e conter postagens mensais nos últimos 12 meses; possuir imagens vinculadas aos corpos anoréxicos; o autor ou a autora do blog se autoidentificar como anoréxico(a). O corpus analisado compreendeu conteúdos nas categorias posts e comentários. Todos os blogs analisados eram produzidos por jovens mulheres e as interações analisadas nos sistemas de comentários também foram entre mulheres.

O método utilizado para a sistematização e análise do material foi a Análise de Conteúdo de Laurence Bardin1616 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edição 70; 1977. que o define como um conjunto de técnicas para avaliação da comunicação, com objetivo de capturar um sentido que está subjacente em uma mensagem textual. Recorrendo-se à Análise Temática, o tratamento do corpus passou pela codificação, classificação e inferência e interpretação.

Resultados

Foram identificadas três categorias temáticas. A primeira foi intitulada “Corpo”, sendo problematizada a partir de três subcategorias: “Percepções e sensações”, “A rebelião corporal na experiência anoréxica” e “Liturgias corporais”. A segunda categoria encontrada foi “Identidade pessoal” discutida a partir do subtema “Ideias sobre si e Manipulação das impressões externas”. E a última categoria temática definida como “Sociabilidades na rede” foi trabalhada por meio dos subtemas “Reforço sentimental e valorização das práticas anoréxicas” e “Apoio mútuo”.

Corpo

Percepções e sensações

A perspectiva que interessa nestas análises sobre as percepções do corpo, diz respeito às narrativas sobre repertórios de comportamentos que ganham legitimidade nos blogs pela potência em agregar opiniões e sentimentos. Neste sentido, a pesquisa interessou-se pelos conteúdos veiculados com os quais visitantes e frequentadores se autoidentificavam.

Um aspecto central desses blogs diz respeito ao fato de que os discursos que circulam são direcionados para um grupo social específico. Quem frequenta estes espaços compartilha visões de mundo que ali circulam. As agentes participantes destes fóruns expõem conteúdos que reforçam noções de coesão interna de grupo e que atribuem um valor positivo para as práticas anoréxicas1717 Fox N, Ward K, O'Rourke A. Pro-anorexia, weight-loss drugs and the internet: an "anti-recovery" explanatory model of anorexia. Sociol Health Illness 2005; 27(7):944-971..

A matéria sensível percebida - corpo - não envolve apenas a imagem refletida no espelho1818 Giordani RCF. O corpo sentido e os sentidos do corpo anoréxico. Rev Nutr 2009; 22(6):809-821.. Há uma insatisfação corporal1919 Glashouwer KA, Bennik EC, Jong PJ, Spruyt A. Implicit measures of actual versus ideal body image: Relations with self-reported body dissatisfaction and dieting behaviors. Cogn Ther Res 2018; 42(5):622-635.,2020 Cash TF, Fleming EC, Alindogan J, Steadman L, Whitehead A. Beyond body image as a trait: The development and validation of The Body Image States Scale. UEDI 2002; 10(2):103-113. que sociologicamente revela um incômodo manifesto na corporalidade. Ainda que corpo seja o lócus do enraizamento no mundo, o sujeito anoréxico luta para desfazer-se dele, emagrecer e desaparecer. Há uma visível disrupção do eu com o mundo simbolizada por um corpo que se quer cada vez mais magro2121 Giordani RCF. A experiência anoréxica: uma etnografia. In: Rasia JM, Giordani RCF. Olhares e questões sobre a saúde, a doença e a morte. Curitiba: Ed UFPR; 2007. p. 99-126.. Os trechos a seguir retratam aspectos da relação percebida com o próprio corpo:

A vida vai bem. Vida amorosa também. Só minha mente que não! Não enxergo mais como eu deveria ser. A balança me mostra números que minha mente discorda. Não adianta mais me medir, a fita métrica mede o que o espelho distorce.

O emagrecimento contínuo e progressivo, não é lido como um sintoma de doença:

Da mesma forma, eu sinto nojo do que eu vejo no meu corpo: quilos de gorduras escondendo o meu verdadeiro eu. Quilos de gordura esmagando os meus ossos. Quilos de gordura afogando a minha vontade de viver. No entanto, o meu peso torna-se cada vez mais contraditório em relação ao que os meus olhos podem enxergar. A conquista novamente dos 42 kg não trouxe satisfação. Trouxe-me apenas olhos mais abertos, mais atentos às imperfeições do meu corpo. Trouxe-me o senso de urgência e o medo de que cada caloria torne-se mais um quilo dentro de mim.

O peso inicialmente idealizado deixa de ser uma marca importante quando é atingido e novas metas são estabelecidas. A experiência corporal na anorexia envolve sentimentos de uma constante luta contra si mesma. A satisfação está sempre no horizonte. Um cansaço físico devido à desnutrição, evolui para torna-se também mental e emocional.

A rebelião corporal da experiência anoréxica

O corpo como lugar de contato do indivíduo com mundo, reflete as tramas sociais em que está imerso2121 Giordani RCF. A experiência anoréxica: uma etnografia. In: Rasia JM, Giordani RCF. Olhares e questões sobre a saúde, a doença e a morte. Curitiba: Ed UFPR; 2007. p. 99-126.,2222 Giordani RCF. A auto-imagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem sociológica. Psicol Soc 2006; 18(2):81-88.. As corporalidades expostas nos blogs comunicam os dramas pessoais e sociais que afetam o indivíduo2323 Rich E. Anorexic dis(connection): managing anorexia as an illness and an identity. Sociol Health Illness 2006; 28(3):284-305.. São corpos que falam das tensões aos quais estão amarrados:

Tenho um súbito desejo de ser assim, ao mesmo tempo não quero que ninguém se preocupe comigo. Sabe como é ter a vontade de ser super esquelética mas não quer ser para não preocupar ninguém, mesmo que isso te faça infeliz?

Há contradições entre a imagem autopercebida e os conteúdos das representações que ressoam dos olhares externos ao grupo2323 Rich E. Anorexic dis(connection): managing anorexia as an illness and an identity. Sociol Health Illness 2006; 28(3):284-305.. A visível magreza extrema não é lida como doença pelo sujeito anoréxico1717 Fox N, Ward K, O'Rourke A. Pro-anorexia, weight-loss drugs and the internet: an "anti-recovery" explanatory model of anorexia. Sociol Health Illness 2005; 27(7):944-971.. A imagem do corpo famélico constatada pelas pessoas que o cercam colide com a autorrepresentação que se mostra refratária ao olhar alheio. São tensões vividas cotidianamente que ecoam nas opiniões compartilhadas no blog:

Sei que o meu rosto afinou, mas nada além disso. É tão estranho você se ver de uma forma e todos te verem diferente.

Liturgias corporais

Como forma de punição ou para alívio das dores, não só físicas como emocionais, costumeiramente são utilizados métodos purgativos e a automutilação:

Estou mantendo meu NF (No Food) e vi 48,4 kg na balança. Não me arrependo, nem disso, nem dos risquinhos vermelhos recentes no meu pulso, definitivamente não me arrependo!

Depois de 36 horas de felicidade e leveza, novamente o exagero, seguido de desespero e frustração. Os cortes fazem falta: a dor acalma a alma. Porém eu resisto e as lâminas permanecem guardadas.

Estes são comportamentos que sustentam a identidade social da anoréxica e são percebidos por ela como propiciadores de certa pureza2424 Giacomozzi AI, Bousfield ABS. Representação social do corpo de participantes de comunidades pró-anorexia do Orkut. Psic Saude Doenças 2011; 12(2):255-266.. O comportamento restritivo parece auxiliar uma experiência de afeto negativo55 Racine SE, Wildes JE. Emotion dysregulation and symptoms of anorexia nervosa: The unique roles of lack of emotional awareness and impulse control difficulties when upset. Int J Eat Disord 2013; 46(7):713-720., ou seja, o sintoma (não comer) tem efeito na regulação da emoção2525 Luck WG, Walle G, Meyer C, Ussher M, Lacey H. The role on schema processes in the eating disorders. Cog Therapy Res 2005; 29:717-732.:

O êxtase da falta de comida é que é a montanha russa do meu parque de diversões.

Porta trancada, chuveiro ligado, música alta e sangue sob meus dedos: sensação de dever cumprido. Estou limpa dos meus erros, das minhas falhas. Estou limpa - por enquanto.

A leveza sentida é a conquista por superar a dor da fome, que tenta prolongar o máximo de tempo possível. Quando vencida pela fome, o comer em excesso exige a purgação significada pela anoréxica como uma forma de limpar o corpo. A automutilação é concebida no imaginário da doença como punição para manter-se orientada pelas práticas corporais anoréxicas, e abriga sentimentos de alívio e compensação2626 Cedaro JJ, Nascimento JPG. Dor e Gozo: relatos de mulheres jovens sobre automutilações. Psicol USP 2013; 24(2):203-223..

Ao relacionar os alimentos aos sentimentos, destaca-se a persistência da fome e a resistência contra o ato de se alimentar:

Eu estou com fome e meu estômago vazio pede por qualquer coisa que o preencha, mesmo sabendo que a insistência é inútil, pois a ana lembra-me de todo o meu esforço jogado fora.

A toxicidade do cheiro das minhas comidas preferidas tem efeito alucinógeno sobre mim. Eu sinto a gordura nos meus dedos, nos meus lábios, no meu estômago. Eu sinto nojo de desejar qualquer coisa que me alimente.

Ao mesmo tempo em que há desejo, existe a repulsa por tudo que supostamente possa engordar. A possibilidade do prazer no ato de se alimentar não é permitido e, frequentemente a experiência da alimentação é acompanhada de sentimento de culpa. Há uma idealização e valorização da resistência à comida e o pensamento de ser magra está atrelado à necessidade de esforço, sacrifício, autocontrole e disciplina.

Identidade

Ideias sobre si e manipulação das impressões externas

Em certos discursos que denotam uma percepção negativa sobre si, com depreciação pessoal e moral, as práticas anoréxicas representam um horizonte de superação da condição2323 Rich E. Anorexic dis(connection): managing anorexia as an illness and an identity. Sociol Health Illness 2006; 28(3):284-305..

As anoréxicas consideram a “ana” uma espécie de entidade com a qual mantém uma ligação contraditória de amor e ódio2424 Giacomozzi AI, Bousfield ABS. Representação social do corpo de participantes de comunidades pró-anorexia do Orkut. Psic Saude Doenças 2011; 12(2):255-266.. Sentem-se presas à “ana”, dependentes das exigências que estão longe de se enquadrarem:

Não quero ser livre (dos pensamentos depressivos e anoréxicos) pra virar prisioneira de uma realidade que não é minha.

No fundo você sabe: nunca nada será o suficiente, são tudo desculpas para esconder o seu verdadeiro eu.

Seu medo de atingir suas metas é tão grande quanto o medo de que nada mude. Você sabe: vai sofrer!

Assim que o peso diminuir, as forças irão embora. Será difícil levantar da cama. Você tem medo de perder quem diz que te ama, você tem medo de perder o que lhe resta de saúde, mas principalmente, você tem medo de se encontrar. Tem medo de - finalmente - ser bom o suficiente. E morrer por isso.

Tive recaídas do cutting, joguei minhas lâminas fora ontem e abri minha caixa Ana. As tabelas, a calculadora, a fita métrica, a pulseira, as fotos... TUDO dizia para eu voltar. Eu chorei. A verdade é que ela e tudo isso está dentro de mim.

Os depoimentos compartilhados na web se assemelham a outras narrativas produzidas em interações face a face por Giordani2121 Giordani RCF. A experiência anoréxica: uma etnografia. In: Rasia JM, Giordani RCF. Olhares e questões sobre a saúde, a doença e a morte. Curitiba: Ed UFPR; 2007. p. 99-126.. Nas redes cotidianas em que se inscrevem suas vidas pessoais, há esforços contínuos para controlar as impressões alheias2727 Goffman E. A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes; 1999.. O discurso enunciado, tanto aqui na web quanto naquela interação direta com a pesquisadora, evidencia traços comuns de uma performance cuidadosamente elaborada para a convivência social:

Ontem quando eu tava no curso, meus cortes fizeram o favor de abrir. Minha amiga só viu um (obrigada munhequeira) e perguntou o que era. Eu disse que tinha me cortado acidentalmente na cozinha. Eu sempre levo band-aid na bolsa porque meu sapato às vezes me machuca. Peguei uns três e fui no banheiro ajeitar a situação. Nada demais.

O comportamento restritivo e as práticas purgativas e/ou compensatórias são acionadas para controlar as emoções2525 Luck WG, Walle G, Meyer C, Ussher M, Lacey H. The role on schema processes in the eating disorders. Cog Therapy Res 2005; 29:717-732.. O foco no corpo, no peso e nos alimentos se faz como uma maneira de evitar sentimentos difíceis2828 Espeset EMS, Gulliksen KS, Nordbo RHS, Skårderud F, Holte A. The Link Between Negative Emotions and Eating Disorder Behaviour in Patients with Anorexia Nervosa. Eur Eat Disord Rev 2012; 20(6):451-460.:

Eu estou acabada e exausta. Muito exausta. Cada pedaço de mim está cansado. Estou fraca por fora, entretanto por dentro minha determinação está forte, mais forte do que nunca. Preciso dos meus ossos. Preciso do meu eu determinado e forte lutando pelo seu mundo da perfeição. Preciso voltar à casa dos 40 ou nunca ficarei satisfeita. Eu tenho fome. Fome em ser magra. Estou explodindo, mas dessa vez irei explodir várias borboletas.

A metáfora da borboleta em referência à leveza e metamorfose, representa a perfeição idealizada. O controle sobre a fome representa uma estabilidade profundamente desejada. O fato de esconder os cortes, os vômitos induzidos ou outras maneiras de purgação atualiza a tensão entre seu desejo irrefreável de emagrecer1818 Giordani RCF. O corpo sentido e os sentidos do corpo anoréxico. Rev Nutr 2009; 22(6):809-821.,2222 Giordani RCF. A auto-imagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem sociológica. Psicol Soc 2006; 18(2):81-88. e os julgamentos externos sobre sua condição que é patologizada socialmente e percebida como irracional2323 Rich E. Anorexic dis(connection): managing anorexia as an illness and an identity. Sociol Health Illness 2006; 28(3):284-305..

Sociabilidade na rede

Reforço sentimental e valorização das práticas anoréxicas

No ambiente virtual são engendradas relações entre indivíduos que comungam um imaginário em que as práticas anoréxicas são ressignificadas1515 Giles D. Constructing identities in cyberspace: The case of eating disorders. Br J Soc Psychol 2006; 45(3):463-477.,1717 Fox N, Ward K, O'Rourke A. Pro-anorexia, weight-loss drugs and the internet: an "anti-recovery" explanatory model of anorexia. Sociol Health Illness 2005; 27(7):944-971.. Os comentários do público visitante falam da mutualidade de sentimentos e compartilhamento de representações. O blog é reconhecido como um espaço seguro que acolhe o sofrimento inerente à condição. São comunicadas mensagens antirrecuperação e valorizam-se as práticas ascéticas e purgativas. Os elogios servem como incentivo para que se prossiga na jornada pelo emagrecimento desmedido:

Imagino você magra, tipo você pesa menos que eu e é mais magra que eu. Mas não adianta ninguém falar, porque se a gente não se sentir bem, nunca vai ser o suficiente. Desejo muita força na sua dieta. E espero que essa onda de tristeza passe. Tente focar em outras coisas para se distrair. Beijos. Fica firme!!

Menina, você nem tem mais o que emagrecer, mas eu sei como é... A gente sempre acha o que emagrecer. Continua firme, invejo tua força de vontade. Beijos!

Nos comentários as autoras são nominadas como “thinspiration”, uma inspiração magra. Nota-se maior capital simbólico e prestígio para quem possui maior autocontrole do comportamento alimentar.

A anorexia é vivenciada como um estilo de vida que envolve uma postura corporal (altiva, limpa e fina) além de uma conduta irredutível diante da comida. No blog, visitantes apoiam o estilo de vida adotado. Práticas anoréxicas são reforçadas positivamente, estratégias de emagrecimento são difundidas, e ali são compartilhadas lições sobre formas de esconder a restrição alimentar e jejum e manipular a percepção de familiares e amigos sobre a magreza (por exemplo meio de roupas e formas de se vestir). Nesses espaços, as usuárias cultivam pensamentos, valorizam comportamentos anoréxicos, trocam experiências, de forma a reforçar um sentimento de pertencimento intragrupo1717 Fox N, Ward K, O'Rourke A. Pro-anorexia, weight-loss drugs and the internet: an "anti-recovery" explanatory model of anorexia. Sociol Health Illness 2005; 27(7):944-971..

O isolamento social e a sensação de desajuste nos antigos círculos sociais e familiares são sentimentos e eventos acomodados mediante a inserção e autoidentificação entre participantes destes fóruns. Há consenso de que o blog é um ambiente de pessoas que se reconhecem em um modo de vida específico que segue normas restritas. A tecnologia digital é uma nova ferramenta pela qual estes sujeitos desenvolvem outras formas de socialização, seus desejos são reconhecidos, e formam laços pelo ideário comungado, ainda que não esteja bem determinada a natureza, consistência e extensão dos mesmos.

Usa-se frequentemente a expressão “força”, a fim de reafirmar um valor positivo ao emagrecimento e motivar a blogueira a incrementar a perda de peso. Há reconhecimento dos agravos à saúde - considerados imponderáveis e irrelevantes - no entanto, a obstinação supera possíveis danos e perdas.

Espaços de apoio mútuo

Os comentários enunciam, além da opinião positiva, a atenção voltada às vidas umas das outras. Com frequência, nota-se o aconselhamento em prosseguir com as liturgias corporais para a definição de modos particulares de ser e de estar no mundo, uma hexis, uma disposição adquirida:

Linda, você precisar trabalhar essa auto-estima. Sinta-se vitoriosa pelo NF, não é qualquer pessoa que consegue, você suporta coisas pra conseguir o que você quer. Isso é característica de pessoas com força de vontade. Isso é potencial. E você já tá transformando esse potencial em ação, rumo à magreza que deseja.

Pequena. Você é incrível e realmente me ajuda em muitos momentos. Tudo que quero pra você é que você se sinta bem sem necessidade desse comportamento masoquista, mas eu entendo e não te darei as costas por agir assim. Me dói que você esteja triste assim e que haja tão pouco que posso fazer para te fazer sentir melhor. Porém você sabe que estou com você, e que pode me acordar no meio da noite e pode falar sobre o que quiser e eu vou dar o meu melhor pra te ajudar.

Os blogs assumem características de diários virtuais mas com uma hiperinteratividade pelas dinâmicas potentes de trocas comunicacionais. Logo, quem lê passa a fazer parte da vida de quem escreve. No caso das blogueiras anoréxicas, o blog passa a ser o espaço para a fala livre sobre a sua percepção do corpo sem receber críticas. A relação entre as participantes desses espaços é cooperativa e fortalece os laços, além de oferecer suporte ao grupo1717 Fox N, Ward K, O'Rourke A. Pro-anorexia, weight-loss drugs and the internet: an "anti-recovery" explanatory model of anorexia. Sociol Health Illness 2005; 27(7):944-971.. Encontram um espaço de identificação e cooperação com pessoas que vivem dilemas existenciais semelhantes2929 Almeida TC, Guimarães CF. Os blogs pró-Ana e a experiência da anorexia no sexo masculino. Saude Soc 2015; 24(3):1076-1088..

Discussão

Corpos etéreos

Imagens da magreza absoluta são compartilhadas nestes blogs que se tornam comunidades; seus membros comungam aspirações, opiniões e sofrimentos. As representações e as vivências pela materialidade corporal alimentam o ciberespaço e são o ponto de partida para compreensão de um fenômeno particular à contemporaneidade, que são as trocas virtuais. Ali encontram-se imagens e as representações do corpo, que continua funcionando como um vetor semântico “pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída”1111 Breton D. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Vozes; 2006.. Ler a anorexia como evento social permite pensar o corpo como fornecedor de indícios das lógicas sociais e culturais que alimentam os regimes das economias psíquicas dos indivíduos.

A distorção da imagem corporal é um dos critérios do diagnóstico da Anorexia Nervosa. Este é o aspecto mais importante do transtorno, pois a melhora dos sintomas pode ser passageira se não houver uma mudança corretiva na imagem corporal3030 Saikali CJ, Soubhia CS, Scalfaro BM, Cordás TA. Imagem corporal nos transtornos alimentares. Rev Psiq Clin 2004; 31(4):164-166.. Mas seria o corpo apenas o repositório de doença mental? Ou de outra forma, uma posse, um atributo, um alter ego nas palavras de Breton1111 Breton D. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Vozes; 2006.?

Nos blogs localizam-se narrativas corporais que procuram dar coerência ao indivíduo e a sua existência. Como costureiras recortando e costurando seus próprios corpos “Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna. [...] O eu que se pericia tem no corpo e no ato de se periciar a fonte básica de sua identidade”3131 Ortega F. Da ascese à bio-ascese: ou do corpo submetido à submissão do corpo. In: Rago M. Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A; 2002. p. 139-174..

A existência é corporal, e apropriando-se da substância de sua vida o indivíduo se traduz para outros1111 Breton D. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Vozes; 2006.. Na experiência corporal da condição anoréxica, metaforicamente o corpo comunica disrupções com o mundo1818 Giordani RCF. O corpo sentido e os sentidos do corpo anoréxico. Rev Nutr 2009; 22(6):809-821.. O corpo que é o fundamento e a condição para se participar do mundo social busca desaparecer3232 Breton D. Antropologia do corpo. Rio de Janeiro: Vozes; 2015..

A atitude de permanecer alheia aos olhares exteriores é revigorada por meio da constituição de um corpo coletivo na comunidade virtual. São reforçados os laços sociais dentro do grupo que se transforma em uma comunidade emocional3333 Maffesoli M. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000.. Indagam-se e refutam a percepção do mundo exterior acerca das corporalidades anoréxicas, comparando ao que veem de si.

O regramento, a regulação e racionalização da experiência com o alimento organizam a vida cotidiana do indivíduo anoréxico. A alimentação é a forma da contenção e o vazamento do desejo pela comida, (um traço sensível da modalidade física da ligação com o mundo) é lido como um excesso. A gramática deste desejo organiza uma pedagogia corporal que envolve lançar mão de métodos purgativos e compensatórios como forma de punição.

A relação perturbada com o alimento evoca a culpa no consumo e alívio pelo jejum2525 Luck WG, Walle G, Meyer C, Ussher M, Lacey H. The role on schema processes in the eating disorders. Cog Therapy Res 2005; 29:717-732.. Há transferência de demandas emocionais e solicitações do mundo que não acionam nestes indivíduos respostas adequadas de sua estrutura interior66 Wildes JE, Marcus MD. Development of emotion acceptance behavior therapy for anorexia nervosa: A case series. Int J Eat Disord 2011; 44(5):421-427.,77 Haynos AF, Fruzzetti AE. Anorexia nervosa as a disorder of emotion dysregulation: Evidence and treatment implications. Clin Psychol Sci Pr 2011; 18(3):183-202.,3434 Rowsell M, MacDonald DE, Carter JC. Emotion regulation difficulties in anorexia nervosa: associations with improvements in eating psychopathology. J Eat Disord 2016; 4(1):17.,3535 Ison, J, Kent S. Social Identity in Eating Disorders. Eur Eat Disorders Rev 2010; 18(6):475-85..

A plenitude manifesta-se na contenção da comida, no limite da fome e na necessidade física dominada. O êxtase está na realização da magreza extrema ainda que o desejo realizado no emagrecimento esteja fadado ao arrebatamento quando se realiza e exigindo continuamente novas metas na balança; na realização de um corpo quase etéreo, desprovido da carnalidade.

Comunidades emocionais

Os repertórios corporais na web falam de subjetividades coletivizadas. Os blogs são ambientes para o compartilhamento da emoção, espaços da construção coletiva do grupo com o qual se autoindetificam. No ciberespaço, a materialidade dos corpos anoréxicos se emancipa dos estigmas sociais de doença e alça outros patamares de significado por meio da “corporificação das identidades”3333 Maffesoli M. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000.,3535 Ison, J, Kent S. Social Identity in Eating Disorders. Eur Eat Disorders Rev 2010; 18(6):475-85..

Nestes espaços virtuais de sociabilidade são construídos coletivos identitários3333 Maffesoli M. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000.. Através da interação pelo compartilhamento de conteúdos, pensamentos e comportamentos pró-anorexia entre blogueiras e visitantes, e na permuta de experiências e opiniões se estabelecem laços e relações que reforçam positivamente a identidade intragrupal.

Os fragmentos dos posts demonstram os movimentos de manipulação da identidade, e da representação do eu para a sustentação das relações sociais3636 Goffman E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara; 1982.. Nota-se pelos conteúdos postados, a intenção de compartilhar na rede suas angústias, fraquezas e esforços para manter uma “fachada”3636 Goffman E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara; 1982. que remeta à manutenção dos relacionamentos ordinários e sua relação com mundos particulares em que desempenham papéis específicos.

Na percepção de Maffesoli3737 Maffesoli M. Elogio da razão sensível. Rio de Janeiro: Vozes; 1998., por meio das referidas comunidades e grupos criam-se tribos que comungam dos mesmos interesses. Para o autor, as tribos seriam um novo tipo de organização social da pós-modernidade e seu surgimento reflete o esgotamento do próprio individualismo.

Os blogs sugerem a formação de laços em torno de interesses, de pertencimento e aceitação. São espaços privilegiados para a constituição de grupos ou no dizer de Maffesoli3737 Maffesoli M. Elogio da razão sensível. Rio de Janeiro: Vozes; 1998., tribos afetuais. Expõe-se opiniões, sentimentos, desacordos e desajustes, que são lidos e acolhidos. Nos blogs encontram amparo ao legitimar a anorexia como uma maneira de ser e estar no mundo, e de se reposicionar na vida social.

Estas mídias são utilizadas pelas jovens anoréxicas como mecanismo para expressar suas necessidades emocionais e como ferramenta na construção de espaços de sociabilidade em que há identificação positiva com a anorexia. São um canal para a manifestação livre de sentimentos e emoções relativos ao corpo e ao alimento, sem censura dentro de uma realidade em que não são percebidas e estigmatizadas como doentes1414 Pinheiro GE, Maciel RH. Blogs pró-anorexia. Rev Psico 2010; 1(1):49-62.. Como já adequadamente identificado por Ramos et al.3838 Ramos JS, Pereira Neto AF, Bagrichevsky M. Cultura identitária pró-anorexia: características de um estilo de vida em uma comunidade virtual. Interface (Botucatu) 2011; 15(37):447-460., o meio virtual como espaço social de comunicação, que pelo anonimato assegura “proteção, reconhecimento e reciprocidade” reforça laços sustentados por uma narrativa da anorexia como “estilo de vida”. A autora e os autores3838 Ramos JS, Pereira Neto AF, Bagrichevsky M. Cultura identitária pró-anorexia: características de um estilo de vida em uma comunidade virtual. Interface (Botucatu) 2011; 15(37):447-460. instigam a pensar como estas comunidades virtuais viabilizam processos identitários particulares à modernidade, e acrescentamos, propiciam a experiência da anorexia deliberadamente compartilhada como um problema psíquico da modernidade.

Conclusão

A experiência anoréxica possui dimensões que ultrapassam as possibilidades explicativas da biomedicina. Os pensamentos, sentimentos e comportamentos que compreendem a experiência anoréxica precisam ser problematizados a partir de outras possibilidades interpretativas. Os sintomas também são produto da vida social e precisam ser desvelados como tal: subjetividades potencialmente afetadas pelos vínculos sociais e pelas dinâmicas da realidade cultural em que se constituem.

Devendo ser objeto de estudos comportamentais e sociológicos, o ciberespaço é acionado como ferramenta de apoio social. Os blogs pró-ana agregam comunidades emocionais que sustentam e reproduzem um ethos anoréxico que ressignifica corpos patologizados e comportamentos representados como irracionais na esfera da vida cotidiana. Constroem-se narrativas sobre a anorexia que ancoram e legitimam experiências pessoais.

A conexão pelo ambiente virtual gera redes horizontalizadas de comunicação em que emergem novos contextos e processos de interação particulares à vida contemporânea. Muito embora, um aspecto importante para a análise do fenômeno resida na interferência tecnológica no discurso, cabe extrapolar as possibilidades do ciberespaço como canal de fluxos continuum online e mediações da experiência offline. O mergulho na vida digital não parece ser simplesmente um afastamento ou negação do mundo da vida, mas aparece como um outro, um novo universo. Nele, novas subjetividades são possíveis, novas corporificações emergem em identidades próprias validadas por estas redes de sociabilidade.

Agradecimentos

Este artigo é parte dos resultados da pesquisa “Sociabilidade e emoção na experiência alimentar” financiada pelo CNPq. Além disso, as autoras gostariam de agradecer ao Centro de Assessoria de Publicação Acadêmica (CAPA - http://www.capa.ufpr.br) da Universidade Federal do Paraná pela tradução do manuscrito.

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Editado por

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2019
  • Aceito
    29 Jan 2020
  • Publicado
    31 Jan 2020
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