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Invisibilidade social das doenças profissionais no Brasil (1919-2019)

Social invisibility of occupational diseases in Brazil (1919-2019)

Resumo

Verifica-se no Brasil e no mundo uma discrepância entre as estimativas dos efeitos da exposição aos riscos ocupacionais sobre a saúde e as estatísticas oficiais de doenças profissionais. Em que pese as inovações nas listas oficiais, principalmente, no período 1999-2007, a subestimação estatística não foi modificada. A análise documental forneceu elementos para identificar a produção da ignorância científica, o ordenamento jurídico vigente e o funcionamento das entidades médico-administrativas que produzem a invisibilidade social das doenças profissionais. Discutiu-se de que maneira essa invisibilidade é produzida por diferentes estruturas lógicas e horizontes normativos que fundamentam o diagnóstico, comunicação e registro dessas doenças. As hipóteses foram desenvolvidas em linha com os constructos da sociologia da ciência e inação pública.

Palavras-chave:
Doenças profissionais; Legislação; Saúde do trabalhador; Previdência social

Abstract

In Brazil, and indeed worldwide, one encounters a discrepancy between estimates of the effects of exposure to occupational risks on health and official statistics on professional diseases. Despite the innovations in the official lists, mainly in the period from 1999 to 2007, the statistical underestimation has not changed. The documentary analysis provided elements to identify the production of scientific ignorance, the current legal order and the functioning of the medical-administrative entities that produce the social invisibility of occupational diseases. It was discussed how this invisibility is produced by different logical structures and normative horizons that underlie the diagnosis, communication, and registration of these diseases. The hypotheses were developed in line with the constructs of the sociology of science and public inaction.

Key words:
Occupational diseases; Legislation; Worker health; Social security

Cem anos atrás

No Brasil, o primeiro diploma legal relacionado aos acidentes de trabalho foi aprovado em 1919. O Decreto-Lei no 3.724 estabeleceu cláusulas de proteção aos trabalhadores incapacitados em decorrência das sequelas dos acidentes ou das doenças provocadas por agentes patogênicos (Quadro 1). O mecanismo estabelecido para garantir indenização ao trabalhador acometido foi a contratação de seguradoras privadas pelo empregador11 Brasil. Senado Federal. Coordenação de Edições Técnicas. Doença ocupacional [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/521487/001069010_Doenca_ocupacional_1ed.pdf?sequence=1&isAllowed=y.. No plano jurídico, desde então, as doenças profissionais são consideradas um tipo de acidente de trabalho, reproduzindo a tendência transnacional na matéria.

Quadro 1
Instrumentos jurídicos relacionados às doenças do trabalho, de acordo com o ano da publicação no Brasil.

No referido instrumento de 1919, não se viu definir, tampouco fornecer elementos para esclarecer quais seriam as doenças profissionais. Em 1934, o Congresso promulgou o Decreto no 24.637, em substituição à Lei no 3.724, estabelecendo passível de indenização o empregado vítima de doença profissional inerente a determinadas atividades.

Passados 23 anos até que, por meio do Decreto-Lei no 4.449, explicita-se pela primeira vez os agentes físico-químicos relacionados às doenças profissionais de notificação obrigatória (Quadro 1).

Mudanças conceituais e estruturais ocorreram em 1967. O Decreto-Lei no 293 fez uma distinção entre as doenças profissionais, causadas por agentes físicos, químicos ou biológicos, peculiares a determinadas funções ou diretamente resultantes de condições especiais ou excepcionais do tipo de trabalho; e as doenças do trabalho que resultam direta e exclusivamente do exercício do trabalho e de características especiais ou excepcionais em que esse trabalho é realizado. Naquele ano, o seguro acidentário foi estatizado e integrado ao sistema previdenciário oficial. As indenizações foram substituídas por um rol de prestações pecuniárias sob gestão do órgão previdenciário. No novo sistema, os benefícios acidentários passam a ser custeados pela contribuição obrigatória do empregador calculada em percentual sobre a folha de salários de sua empresa. Tem-se assim a transformação do direito à proteção em casos de acidente de trabalho e doença profissional em direito previdenciário. Nesse novo ordenamento, definições de acesso e procedimentos para reconhecimento e registro das doenças profissionais adquirem caráter administrativo e ótica pecuniária, como será examinado mais à frente (Quadro 1).

Em 1976, a doença profissional foi considerada aquela inerente ou peculiar a determinado ramo de atividade e constante de relação organizada pelo extinto Ministério da Previdência e Assistência Social. Em 1992, a lista do organismo previdenciário constava de 27 quadros de riscos ocupacionais (coluna da esquerda) e respectivas situações, predominantemente industriais, em que esses riscos (coluna da direita) estavam presentes (Quadro 1). Seguindo convenções da OIT, à semelhança de outros países, a lista brasileira foi regulamentada no quadro dos dispositivos legais de proteção ao trabalho11 Brasil. Senado Federal. Coordenação de Edições Técnicas. Doença ocupacional [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/521487/001069010_Doenca_ocupacional_1ed.pdf?sequence=1&isAllowed=y.. Foi em 1999 que o sistema de reconhecimento sofreu uma profunda reforma.

Michel Foucault quando analisou o poder disciplinar baseado na vigilância e no controle, desenvolveu a ideia das relações entre visibilidade, invisibilidade e poder. Para o filósofo, as práticas sociais de invisibilidade fazem parte do sistema cuja estratégia é exercer o poder de forma menos custosa possível “por sua discrição, sua fraca exteriorização, sua relativa invisibilidade”22 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987.(p.241).

O termo invisibilidade social foi usado, em 1963, por autores da psicologia, para se referir à situação em que o sujeito é percebido por outros como uma mera presença e não como um ator social, em que pese compartilhar o mesmo espaço. Já em 1982, se referindo à invisibilidade da classe trabalhadora, o termo designa uma realidade oculta que é difícil de estudar e interpretar. Nos anos 1990, em publicações de diferentes afiliações disciplinares, é considerado sinônimo de discriminação, exploração, racismo e ocultamento33 Tomás J. La notion d'invisibilité sociale. Cult Soc 2010; 16:103-109.. Na área da saúde pública, Annie Thébaut - Mony44 Thébaud-Mony A. De la connaissance à la reconnaissance des maladies professionnelles en France: acteurs et logiques sociales. Paris: la Documentation française; 1991. foi pioneira ao desenvolver a noção para apresentar os resultados sobre a invisibilidade dos canceres ocupacionais, principalmente no grupo dos empregados em regime terceirizado.

A noção de invisibilidade social é central neste estudo que examina o ordenamento jurídico e as abordagens técnico-científicas para compreender o sistema brasileiro de reconhecimento das doenças profissionais decorridos cem anos da primeira regulamentação (1919-2019).

Percurso metodológico

A investigação foi conduzida em uma perspectiva analítica fundada na noção de invisibilidade social das doenças profissionais. Elementos da análise documental aliados aos constructos teóricos da sociologia da ciência e da inação pública, notadamente a obra de Emmanuel Henry55 Henry E. Ignorance scientifique et inaction publique. Paris: Presses de Sciences Po; 2017., deram o suporte necessário para a investigação. De acordo com esse aporte, a invisibilidade em matéria de reconhecimento das doenças profissionais é sustentada por três pilares: ignorância científica, ordenamento jurídico e entidades médico-administrativas.

Argumentos científicos são respostas aos questionamentos sobre a origem ocupacional das doenças nas arenas de negociação, principalmente os conhecimentos em epidemiologia e toxicologia. Essas duas disciplinas são a base para se estabelecer a relação de causalidade entre uma exposição e uma doença. De acordo com estudos aprofundados, a mobilização de conhecimentos nesse âmbito funciona também como uma estratégia dos agentes responsáveis pela definição dos casos. Além da intenção em promover a importância de suas decisões, esperar os resultados “consistentes” na identificação do câncer ocupacional, por exemplo, serve de estratégia para justificar o adiamento das decisões66 Henry E. The new dynamics of knowledge and the persistence of power relations. Rev Fr Sci Pol 2011; 61(4):707-726.. A seu turno, as empresas criam barreiras para retardar a produção de conhecimentos, por exemplo, o acesso a dados específicos é proibido sob pretexto de segredo industrial. Profissionais da medicina das empresas suscitam falsas controvérsias, de que é exemplo a necessidade de comprovação de marcadores inflamatórios em análises clínicas como critério para confirmação da origem ocupacional das doenças musculoesqueléticas dos membros superiores77 Assunção AA, Rocha LE. "Agora... até namorar fica difícil: uma história de lesões por esforços repetitivos". In: Buschinelli JT, Rocha LE, Rigotto RM, organizadores. Isto é Trabalho de Gente? Petrópolis: Vozes; 1994.. Além disso, não estão disponíveis informações fundamentais para esclarecimentos das relações saúde e trabalho88 Hess DJ. Alternative Pathways in Science and Industry: Activism, Innovation, and the Environment in an Era of Globalization. Cambridge: MIT Press; 2007.. Denominado “ciência não produzida (undone science)”, o fenômeno resulta também da falta de financiamento ou pouca relevância dada aos aspectos sociais99 Counil E, Henry E. Frontières disciplinaires et tensions entre savoirs académiques et connaissances issues du terrain dans la production de savoir et d'ignorance en santé et travail. Perspectives interdisciplinaires sur le travail et la santé 2018; 20-21:1-22., como se vê (ou não se vê) nos editais das agências de fomento. Os conflitos entre atores envolvidos no sistema de reconhecimento das doenças profissionais, em que se confrontaram argumentos científicos, foram abordados com a finalidade de identificar a dimensão da ignorância científica, primeiro pilar do problema, no processo de invisibilidade social desses eventos.

Para estudar como operam as instituições brasileiras no referido processo, o conjunto de elementos reunidos foi analisado com foco nas orientações epistêmicas que embasam a dinâmica das ações de reconhecimento, incluindo raciocínio clínico e os conceitos na esfera jurídica.

Assumindo que a lógica da invisibilidade é subterrânea aos instrumentos legais, segundo pilar do problema55 Henry E. Ignorance scientifique et inaction publique. Paris: Presses de Sciences Po; 2017.,66 Henry E. The new dynamics of knowledge and the persistence of power relations. Rev Fr Sci Pol 2011; 61(4):707-726., uma vez identificados os dispositivos constitucionais, foram examinadas as principais leis, desde a primeira, e as normas correlatas relevantes. O documento técnico Doenças Ocupacionais, publicado pelo Senado Federal do Brasil11 Brasil. Senado Federal. Coordenação de Edições Técnicas. Doença ocupacional [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/521487/001069010_Doenca_ocupacional_1ed.pdf?sequence=1&isAllowed=y., foi a fonte fundamental para essa etapa do estudo.

As reformas institucionais e a tendência temporal de diminuição da incidência de doenças profissionais foram interpretadas à luz de evidências sobre o funcionamento das entidades médico-administrativas1010 Dodier N. L'expertise médicale: essai de sociologie sur l'exercice du jugement. Paris: Editions Métailié; 1993.. Essas entidades, terceiro pilar da invisibilidade que se quer analisar, conferem a infraestrutura dos serviços onde se opera o fluxo do atendimento às solicitações de acesso ao benefício auxílio-doença (assim denominado até junho de 2020) durante o afastamento para recuperação da saúde. O Manual de Acidente de Trabalho, publicado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)1111 Instituto Nacional do Seguro Social. Previdência Social. Manual de Acidente de Trabalho [Internet]. Brasília; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: http://file.abiplast.org.br/download/2016/manualdeacidentedetrabalhoinss2016.pdf.
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, foi a fonte principal para extrair os elementos necessários à essa discussão.

Os resultados estão organizados em quatro seções. Inicialmente, são apresentadas, em ordem cronológica, as leis de acidentes de trabalho aprovadas e reformuladas até 1967. Na segunda seção, ainda na Introdução, enfoca-se a mudança ocorrida naquele ano, quando a concepção indenizatória do seguro foi transformada em ótica previdenciária. Na sequência, especial destaque será dado à reforma das listas de doenças do trabalho ocorrida no período de 1999 a 2007. O funcionamento das entidades médico-administrativas é objeto da terceira seção. A quarta seção se dedica a examinar os regimes epistemológicos que fundamentam maneiras distintas de mobilizar as ferramentas científicas no processo de reconhecimento.

No momento da finalização do presente artigo, uma ação do Estado reforçou as hipóteses da pesquisa. Em agosto de 2020, vinte e um anos após a publicação da primeira versão da lista de doenças relacionadas ao trabalho do Ministério da Saúde, que é reproduzida pelo organismo previdenciário, foi publicada a segunda versão, que totalizava 347 agravos (em 1999 eram 182), incluindo COVID-19, neoplasias, distúrbios vocais, entre outras doenças (Quadro 1). Cinco dias depois, o Ministério da Saúde revogou o seu ato1212 Masson MLV, Ferreira LP, Giannini SPP, Souza MT, Maeno M, Gândara MER, Sousa FNF. Distúrbio de Voz é incluído em lista de doenças relacionadas ao trabalho revogada pelo Ministério da Saúde. Editorial. Rev Bras Saude Ocup 2020; ;45:e32..

Esse episódio recente é mais um elemento para a reflexão sobre a configuração de atores institucionais, estruturalmente atravessada pelos interesses dos representantes patronais e o seu papel relevante para a invisibilidade das doenças profissionais1313 Henry E. Nouvelles dynamiques de savoirs et permanence des rapports de pouvoir. L'impact - limité - des transformations - importantes - de l'expertise en santé au travail. Rev Fr Sci Polit 2011; 61(4):707-726. durante um século desde o primeiro instrumento normativo na matéria.

Reformas ocorridas no período 1999-2007 e a tendência temporal de diminuição da incidência de doenças profissionais

Com conteúdo e estrutura originais, a lista de doenças relacionadas ao trabalho baseada na CID-10 foi produzida por uma comissão composta por médicos professores universitários, sendo aprovada em maio de 1999 (Quadro 1). Em 18 de novembro de 1999, foi objeto de outro instrumento, desta vez a Portaria do Ministério da Saúde. De forma que, até os dias que correm, o organismo previdenciário tem a seu dispor uma lista de doenças (CID-10) que reproduz a lista elaborada pelo Ministério de Saúde. Além de ampliar o leque para 182 doenças, a produção de listas “casadas” objetivou facilitar ações interssetoriais: no Sistema Único de Saúde (SUS), com fins clínicos e epidemiológicos; no organismo previdenciário, base para avaliação e reparação da incapacidade1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Doenças Relacionadas ao Trabalho: Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde [Internet]. Brasília: MS, OPAS; 2001 [citado 2020 set 23]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_relacionadas_trabalho_manual_procedimentos.pdf.
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O Anexo II do Regulamento da Previdência Social (Quadro 1) apresenta conteúdos separados, mas complementares na matéria. A lista A “agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional” (coluna da esquerda) e “doenças causalmente relacionadas com os respectivos agentes ou fatores de risco” (coluna da direita); e a lista B na qual são elencadas as doenças (coluna da esquerda) e os correspondentes agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional (coluna da direita) (Figura 1).

Figura 1
Esquema representativo das Listas de doenças relacionadas ao trabalho aprovadas no período 1999-2007.

Quanto a lista C, terceira lista, expressa um modelo especial de registro acumulado dos resultados das avaliações periciais. Atualizada em 2009 (Quadro 1), a lista C foi elaborada com base no Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP). Essa metodologia embasa a significância estatística da associação entre a entidade mórbida motivadora da incapacidade e a atividade econômica da empresa na qual o segurado é vinculado. A ideia do NTEP foi concebida e defendida por Oliveira1515 Oliveira PRA. Nexo técnico epidemiológico previdenciário - NTEP e o fator acidentário de prevenção - FAP: um novo olhar sobre a saúde do trabalhador [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008., engenheiro e funcionário do organismo previdenciário. Em sua tese de doutorado, o autor conduziu um estudo de coorte, de maneira a fornecer, a partir de abril de 2007, critérios epidemiológicos para a atuação dos médicos peritos em sua tomada de decisão. No plano prático, desde 2006, o médico perito do organismo previdenciário pode escolher ou não se referenciar na lista C para avaliar a etiologia ocupacional do quadro clínico apresentado pelo requerente do benefício por incapacidade.

A transformação da lógica centrada na identificação do agente causal é um avanço epistemológico admitido no que se refere tanto à utilização da Classificação Internacional das Doenças (CID-10) para elaborar a lista de doenças relacionadas ao trabalho, quanto na produção da lista que relaciona probabilidade de risco e atividade econômica1616 Todeschini R, Codo W. Uma revisão crítica da metodologia do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP). Rev Baiana Saude Publica 2013; 37(2):486-500..

As políticas de proteção ao trabalho que originaram as reformas citadas vinculam-se ao aumento da força das organizações sindicais no período. A Constituição de 1988, também denominada de “Constituição Cidadã”, assegurou uma série de direitos sociais aos brasileiros, como universalização da previdência, assistência social aos carentes, universalização da saúde e da educação básica, definição do piso de um salário mínimo para os benefícios constitucionais, além de restabelecer o direito de greve e a livre associação sindical e profissional1717 Kerstenetzky CL. O Estado do Bem-Estar Social na Idade da Razão: a reinvenção do estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier; 2012..

A regulamentação e implementação de um conjunto de dispositivos constitucionais transformaram tanto o sistema de saúde quanto o sistema previdenciário. Essas transformações estiveram conectadas aos modelos teóricos e metodológicos de examinar e interpretar a situação de saúde dos grupos populacionais1818 Gomez CM, Vasconcellos LCFD, Machado JMH. Saúde do trabalhador: aspectos históricos, avanços e desafios no Sistema Único de Saúde. Cien Saude Coletiva 2018; 23(6):1963-1970.. Foi nesse tempo e lugar que evoluíram processos de mudança no sistema de reconhecimento das doenças profissionais.

Mas, os resultados das reformas não foram suficientes para gerar transformações na subnotificação e sub-registro dessas doenças. Como ilustra a Figura 2, constata-se uma tendência temporal de queda na incidência de doenças profissionais registradas pelas estatísticas oficiais, sem que se tenham indícios de implantação de medidas de prevenção nos ambientes de trabalho1919 Pinto JM. Tendência na incidência de acidentes e doenças de trabalho no Brasil: aplicação do filtro Hodrick-Prescott. Rev Bras Saude Ocup 2017; 42:e10..

Figura 2
Nível e tendência da incidência de doenças ocupacionais no Brasil de janeiro de 2008 a dezembro de 2013.

Mutações nos processos produtivos em que são introduzidas tecnologias favorecedoras de menor exposição a atividades perigosas, aumento da população que compõem o denominador do cálculo (número de pessoas que se tornaram contribuintes da Previdência Social), medidas de prevenção no nível primário, entre outros fatores, não seriam suficientes para explicar a tendência de diminuição2020 Souza NSS, Santana VS, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A. Doenças do trabalho e benefícios previdenciários relacionados à saúde, Bahia, 2000. Rev Saude Publica 2008; 42(4):630-638.. Estimativas potentes indicaram, ao contrário, que em torno de 37% dos casos de dor nas costas, 16% de perda auditiva, 13% de doença pulmonar obstrutiva crônica e 11% de casos de asma diagnosticados em todos os países são atribuídos a exposições ocupacionais2121 Concha-Barrientos M, Nelson DI, Driscoll T, Steenland NK, Punnett L, Fingerhut MA, Prüss-Üstün A, Leigh J, Tak SW, Corvalan C. Selected occupational risk factors. In: Ezzati M, Lopez AD, Rodgers AA, Murray CJL, editores. Comparative quantification of health risks: global and regional burden of disease attributable to selected major risk factors. Geneva: WHO; 2004. p.1651-801.. Subnotificação e sub-registro fazem parte da interpretação consensual dos resultados convergentes obtidos por meio de diferentes cálculos estatísticos (a média móvel e a técnica de Hodrick Prescott)1919 Pinto JM. Tendência na incidência de acidentes e doenças de trabalho no Brasil: aplicação do filtro Hodrick-Prescott. Rev Bras Saude Ocup 2017; 42:e10.,2222 Souza NSS, Santana VS. Incidência cumulativa anual de doenças musculoesqueléticas incapacitantes relacionadas ao trabalho em uma área urbana do Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(11):2124-2134.. Vejam-se ainda mais resultados. Em um estado da federação constatou-se, em 2000, apenas 3,1% de etiologia ocupacional no total de casos registrados de afastamentos dos adultos por doença2020 Souza NSS, Santana VS, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A. Doenças do trabalho e benefícios previdenciários relacionados à saúde, Bahia, 2000. Rev Saude Publica 2008; 42(4):630-638.. Distorções na captura das informações dos eventos que não geraram incapacidade nos termos da avaliação médico-administrativa faz parte das interpretações2323 Santana VS, Araújo-Filho JB, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A. Acidentes de trabalho: custos previdenciários e dias de trabalho perdidos. Rev Saude Publica 2006; 40(6):1004-1012.. Analisando o impacto dos fatores de risco ocupacionais para o câncer, observou-se 2,3% e 0,3% entre os casos registrados em homens em mulheres, respectivamente, resultados nitidamente inferiores aos de outros países2424 Silva GA, Moura L, Curado MP, Gomes FS, Otero U, Rezende LFM, Daumas RP, Guimarães RM, Meira KC, Leite IC, Valente JG, Moreira RI, Koifman R, Malta DC, Mello MSC, Guedes TWG, Boffetta P. The Fraction of Cancer Attributable to Ways of Life, Infections, Occupation, and Environmental Agents in Brazil in 2020. PLoS ONE 2016; 11(2):e0148761..

O problema não se restringe, contudo, às barreiras para a notificação e registro. No caso das doenças relacionadas à exposição ao amianto, por exemplo, as manifestações surgem geralmente distante do local onde foram iniciadas, e, algumas vezes, muitos anos depois2525 Scavone L, Giannasi F, Thébaub-Mony A. Cidadania e doenças profissionais: o caso do amianto. Perspectivas 1999; 22:115-128.. Torna-se quase impossível dispor de evidências “concretas” da exposição ao patógeno no tempo e local em que ocorrem os sintomas clínicos comprovados aos exames laboratoriais que são investigados no momento da avaliação da incapacidade.

Papel das entidades médico-administrativas

Os dias de não comparecimento ao trabalho, quando os trabalhadores se defrontam com a diminuição das suas capacidades para desempenhar as suas funções, são compensados, se o empregado for filiado ao Regime da Previdência Social, por meio, em seus termos, de um benefício. Nesse caso, o benefício auxílio-doença é autorizado se comprovada a incapacidade provocada por uma doença profissional ou do trabalho, não sendo suficiente a confirmação do diagnóstico clínico2626 Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Manual Técnico de Perícia Médica Previdenciária. Brasília: Diretoria de Saúde do Trabalhador; 2018..

Conforme estabelece a legislação, o empregador doméstico e a empresa deverão comunicar o acidente ocorrido com o segurado empregado ou trabalhador avulso, por meio da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa. Em que pesem essas obrigações para o empregador, a ausência do formulário não é impedimento para a caracterização técnica do nexo (termo utilizado nos instrumentos normativos específicos do organismo previdenciário)2626 Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Manual Técnico de Perícia Médica Previdenciária. Brasília: Diretoria de Saúde do Trabalhador; 2018. entre o trabalho e o agravo, pois é facultado ao médico perito consultar a lista que relaciona diagnóstico clínico (CID-10) e atividade econômica. Nem todos os casos são comunicados, gerando a subnotificação.

O processo de registro segue um fluxo que depende, inicialmente, do ato voluntário da emissão do formulário, seja pela empresa, seja pelo empregado, médico ou autoridade pública. Em qualquer um desses casos, o campo atestado médico deve ser preenchido pelo médico que atendeu o segurado. De posse do documento, a etapa é procurar uma agência do INSS para marcar a avaliação da incapacidade que gerou a necessidade de afastamento laboral1111 Instituto Nacional do Seguro Social. Previdência Social. Manual de Acidente de Trabalho [Internet]. Brasília; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: http://file.abiplast.org.br/download/2016/manualdeacidentedetrabalhoinss2016.pdf.
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Uma vez comunicado ao INSS, o fluxo segue sob o controle da gestão dos serviços previdenciários que estabelece critérios e procedimentos de avaliação da incapacidade com vistas ao registro da doença profissional para acesso aos direitos de compensação1919 Pinto JM. Tendência na incidência de acidentes e doenças de trabalho no Brasil: aplicação do filtro Hodrick-Prescott. Rev Bras Saude Ocup 2017; 42:e10.. Como esclarecido acima, essas operações dependem de critérios clínicos que, por sua vez, estão sob orientação de regras administrativas2727 Siano AK, Ribeiro LC, Santiago AE, Ribeiro MS. Influência de alterações normativas da Previdência Social sobre o perfil de concessão de auxílio-doença relativo a transtornos mentais. Cien Saude Colet 2011; 16(4):2189-2198.,2828 Silva-Junior JS, Fischer FM. Adoecimento mental incapacitante: benefícios previdenciários no Brasil entre 2008-2011. Rev Saude Publica 2014; 48(1):186-190.. Então não se pode comparar esses procedimentos a uma avaliação clínica tradicional. Observou-se que o médico quando avalia a necessidade de um afastamento laboral não utiliza de procedimentos e raciocínio similares àqueles mobilizados nos exames de outros casos2929 Alexanderson K, Hensing G. More and better research needed on sickness absence. Scand J Public Health 2004; 32(5):321-323.. Para o Conselho Federal de Medicina, a atividade do médico-perito tem caráter judicante, entendimento que justifica a classificação da referida subespecialidade na área da Medicina Legal3030 Lise MLZ, El Jundi SARJ, Silveira JUG, Coelho RS, Ziulkoski LM. Isenção e autonomia na perícia médica previdenciária no Brasil. Rev Bioet 2013; 21(1):67-74..

A contratação temporária de médicos externos ao INSS entre 1999 e 2003 foi associada ao crescimento anual de 24,0% das despesas com os benefícios autorizados. Esse padrão se manteve no biênio 2004 e 2005, suscitando hipóteses sobre a abordagem menos conservadora na avaliação da incapacidade com finalidade de acesso aos referidos benefícios3131 Cechin J, Giambiagi F. O aumento das despesas do INSS com o auxílio-doença. Bol Conjuntura Ipea 2004; 66:81-90.. A repercussão provocou uma decisão judicial obrigando o organismo previdenciário a realizar concursos para ingresso de profissionais ao quadro do INSS, de maneira a evitar contratações temporárias porque menos suscetível ao controle3232 Brasil. Ministro da Previdência Social. Medidas de gestão para controle do auxílio-doença. Informe da Previdência Social 2006; 18(5):1-5..

A medida da gestão que modificou em 2006 o fluxo de acompanhamento do segurado afastado do trabalho para resolver o problema das longas filas de segurados à espera do agendamento da perícia em todo país é mais um fator a contribuir para a subnotificação e sub-registro. No ato de avaliação e definição da incapacidade, o perito passou a definir a data de cessação do benefício sem que seja necessária uma avaliação intermediária ao longo do processo de recuperação da doença3232 Brasil. Ministro da Previdência Social. Medidas de gestão para controle do auxílio-doença. Informe da Previdência Social 2006; 18(5):1-5..

Os sindicatos explicitam as pressões e constrangimentos que cercam os trabalhadores com sintomas, pois o conflito entre a necessidade de recuperar a saúde e a necessidade de garantir a produção gera impasses para o indivíduo manifestar o mal-estar, declarar o problema e buscar pela assistência3333 Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro da CUT (CONTRAF-CUT). Confederação do Ramo Químico também condena mudanças no FAP [Internet]. São Paulo: Boletim da CONTRAF; 2015 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: https://contrafcut.com.br/noticias/confederacao-do-ramo-quimico-tambem-condena-mudancas-no-fap-50a6/..

Para o empregador, por sua vez, diagnósticos de doenças profissionais no efetivo de empregados não é desejável por inúmeros fatores3434 Serviço Social da Indústria. Departamento Nacional. Manual NTEP e FAP: Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP) e suas implicações na composição do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) [Internet]. Brasília; 2011 [acessado 2020 set 23]. Disponível em http://www.sinaees-sp.org.br/arq/mntepfap.pdf.
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. As despesas trabalhistas durante o período do afastamento autorizado pelo organismo previdenciário continuam sob a sua responsabilidade, bem como, será obrigado a manter o empregado por 12 meses após o retorno à empresa. Além disso, os documentos gerados no processo de reconhecimento são peças nos casos de ações indenizatórias impetradas pelos trabalhadores nas instâncias da Justiça com o objetivo de reparação por danos patrimoniais, morais e estéticos3535 Oliveira SG. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. São Paulo: LTr; 2019.. Os argumentos dos representantes dos empregadores diante da nova versão da lista de doenças relacionadas ao trabalho, revogada imediatamente à sua publicação, são exemplos desse tipo de conflito3636 Plataforma de Negócios Digitais do Rio Grande do Sul (SEPRORGS). Portaria n° 2.345, de 02 de setembro 2020 "revoga a portaria n° 2.309 de 2020, que atualizava a lista de doenças relacionadas ao trabalho (LDRT)" | COVID-19 como doença ocupacional [Internet]. [acessado 2020 set 24]. Disponível em: https://bit.ly/39GHyb7.
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Resultados de pesquisas realizadas em outros países confirmam as influências externas sobre a decisão dos cidadãos cobertos pelo seguro em requerer benefícios por incapacidade laboral3737 Bourbonnais R, Vinet A, Vézina M, Gingras S. Certified sick leave as a non-specific morbidity indicator: a case-referent study among nurses. Br J Ind Med 1992; 49(10):673-678.,3838 Burkhauser R, Butler JS, Weathers RR. How policy variables influence the timing of applications for Social Security Disability Insurance. Soc Sec Bul 2002; 64(1):52-83.. Os trabalhadores são desencorajados a pleitear o reconhecimento da origem ocupacional da incapacidade laborativa, contentando-se em receber o benefício por doença comum. Observou-se maior chance de demanda pelo benefício à medida que aumenta o número de benefícios “concedidos”, independente do grau de incapacidade dos requerentes3737 Bourbonnais R, Vinet A, Vézina M, Gingras S. Certified sick leave as a non-specific morbidity indicator: a case-referent study among nurses. Br J Ind Med 1992; 49(10):673-678.,3838 Burkhauser R, Butler JS, Weathers RR. How policy variables influence the timing of applications for Social Security Disability Insurance. Soc Sec Bul 2002; 64(1):52-83.. Em suma, o julgamento que o próprio segurado faz das possibilidades de obter a aprovação do pedido de afastamento perante o organismo previdenciário é mais uma faceta da produção da invisibilidade das doenças profissionais. Mais uma vez, não se trata de uma realidade local, pois sub-registro em sistemas de compensação foram observados em outros países3737 Bourbonnais R, Vinet A, Vézina M, Gingras S. Certified sick leave as a non-specific morbidity indicator: a case-referent study among nurses. Br J Ind Med 1992; 49(10):673-678.

38 Burkhauser R, Butler JS, Weathers RR. How policy variables influence the timing of applications for Social Security Disability Insurance. Soc Sec Bul 2002; 64(1):52-83.

39 Oleinick A, Zaidman B. The law and incomplete database information as confounders in epidemiologic research on occupational injuries and illnesses. Am J Ind Med 2010; 53(1):23-36.

40 Boden LI, Ozonoff A. Capture-recapture estimates of nonfatal workplace injuries and illnesses. Ann Epidemiol 2008; 18(6):500-506.

41 Henry E. La production de l´invisibilité de la santé au travail. In: Ignorance scientifique & inaction publique. Paris: Presses de Sciences Po; 2017. p.29-77.
-4242 Duncan G. Workers' compensation and the governance of pain. Econ Soc 2003; 32(3):449-477..

Quanto aos elegíveis, a definição é de responsabilidade jurídico-administrativa, em vez de produto da vigilância aos ambientes de trabalho ou dos resultados de estudos que comparam efeitos entre expostos e não expostos aos riscos ocupacionais. Então, as estatísticas de doenças profissionais resultantes desses processos são limitadas, seja porque não abrangem o universo de expostos, seja porque são produzidas em cenários que reproduzem a lógica do dano individual relacionado a um agente causal2525 Scavone L, Giannasi F, Thébaub-Mony A. Cidadania e doenças profissionais: o caso do amianto. Perspectivas 1999; 22:115-128.,3939 Oleinick A, Zaidman B. The law and incomplete database information as confounders in epidemiologic research on occupational injuries and illnesses. Am J Ind Med 2010; 53(1):23-36.. Relações de força antagônicas atravessam não somente a construção da legislação, mas também a sua aplicação44 Thébaud-Mony A. De la connaissance à la reconnaissance des maladies professionnelles en France: acteurs et logiques sociales. Paris: la Documentation française; 1991.. Os desequilíbrios resultantes constituem barreira para o dimensionamento do problema que é essencial tanto para o acesso aos direitos quanto para a formulação de políticas públicas4242 Duncan G. Workers' compensation and the governance of pain. Econ Soc 2003; 32(3):449-477..

Definição clínica na avaliação do acesso aos benefícios de compensação

A regulamentação específica, conforme mencionado acima, incorporou as doenças profissionais entre os tipos de acidentes de trabalho com consequências no processo de avaliação para acesso ao direito de compensação, uma vez adotados procedimentos similares independentemente do tipo de evento (acidente ou doença). Em que pese as evoluções conceituais - doenças profissionais, doenças do trabalho ou doenças relacionadas ao trabalho - o critério espacial e o critério temporal, à semelhança das operações que avaliam as circunstâncias que concorrem para um acidente de trabalho, são reproduzidos para a fundamentação das avaliações da incapacidade em decorrência do adoecimento no trabalho. Nesses moldes, a avaliação remonta à tradição fundada por Ramazzini em seu método de buscar nos resultados da observação clínica a ligação de doenças específicas ao patógeno a que está exposto o trabalhador durante o exercício de sua profissão4343 Henry E. Rapports de force et espaces de circulation de discours, les logiques des redéfinitions du problème de l´amiante. In: Gilbert C, Henry E. Comment se construisent les problèmes de santé publique. Paris: Éditions La Découverte; 2009. p.155-174..

Ainda que a doença diagnosticada esteja reconhecida na lista de doenças relacionadas ao trabalho, o segurado é obrigado a comparecer para a avaliação do médico-perito quando requer o benefício por incapacidade. Diferentemente de outros países, a lista brasileira não cria presunção de nexo, ou seja, a relação automática entre o diagnóstico clínico e o ambiente de trabalho ou atividade profissional. Sendo assim, em termos jurídicos, é necessária a inequívoca comprovação do nexo causal. Como desdobramento desse preceito jurídico, os laudos médico-periciais prevalecem sobre os demais atestados médicos, como se lê no Manual de Acidente de trabalho: “A caracterização da natureza acidentária de um benefício se dará na Previdência Social por meio da análise técnica da Perícia Médica Previdenciária”1111 Instituto Nacional do Seguro Social. Previdência Social. Manual de Acidente de Trabalho [Internet]. Brasília; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: http://file.abiplast.org.br/download/2016/manualdeacidentedetrabalhoinss2016.pdf.
http://file.abiplast.org.br/download/201...
(p.17). Orienta-se o médico perito a desenvolver a avaliação clínica para identificar sinais e sintomas, buscar evidências nos resultados dos exames laboratoriais compatíveis com a provável etiologia laboral e nas observações obtidas à visita técnica ao local de trabalho. Quanto a essa, não é um procedimento obrigatório1111 Instituto Nacional do Seguro Social. Previdência Social. Manual de Acidente de Trabalho [Internet]. Brasília; 2016 [acessado 2020 set 23]. Disponível em: http://file.abiplast.org.br/download/2016/manualdeacidentedetrabalhoinss2016.pdf.
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Essa lógica que orienta a identificação do agente patogênico no posto de trabalho é afeita ao conceito das doenças profissionais “típicas”, ou seja, aquelas produzidas ou desencadeadas pelo exercício profissional peculiar a determinada atividade. Mas, como reproduzir a abordagem do agente patogênico quando for o caso das “moléstias profissionais atípicas”, também nominadas de doenças do trabalho, de acordo com o Regimento da Previdência Social? Dito de outro modo, se a lógica médico-administrativa seria adequada à investigação do “risco específico direto”, aquele relacionado ao ramo da atividade econômica e verificado por evidências materiais e temporais, conforme sustentam os médicos do trabalho4444 Silva-Junior JS, Almeida FSS, Morrone LC. Discussão dos impactos do nexo técnico epidemiológico previdenciário. Rev Bras Med Trab 2012; 10(2):72-79., são possíveis inconsistências no caso das doenças do trabalho, pois a “causa” ou “concausa” é um risco específico indireto. Tomando alcoolismo crônico ou depressão como exemplos de doenças nessa classificação, constatam-se limites das definições e procedimentos mencionados acima. O caso da perda auditiva induzida pelo ruído, em que o indivíduo não se encontra, pelo menos nas fases iniciais, incapacitado para exercer as suas atividades, apesar da constatação de lesões neurológicas, é o exemplo clássico das dissonâncias que se apresentam nos sistemas de reconhecimento. De fato, o funcionamento do sistema estruturado pelas entidades médico-administrativas reproduz o modelo unicausal, reconhecidamente limitado para abranger as doenças especificadas na própria lista. A regulamentação do sistema de reconhecimento circunscreve dúvidas quando a doença é de origem multifatorial. De fato, as condições de aplicação são extremamente restritivas, pois, independentemente da situação, o segurado deve comparecer ao organismo previdenciário para fornecer as provas do ocorrido, conforme indicado acima.

Em suma, o registro das doenças profissionais pelo organismo previdenciário é produto de uma avaliação da incapacidade, de maneira a não traduzir a relação de causalidade entre uma atividade profissional e uma doença. Em primeiro lugar, a maioria das doenças na atualidade resulta da combinação de múltiplos fatores de risco e seus sintomas aparecem após longos períodos de latência. Em segundo lugar, a exposição à introdução de novas tecnologias, novos procedimentos e novos processos de trabalho, bem como a trajetória profissional são instáveis ao longo do tempo para a maior parte da força de trabalho. A produção e disseminação do conhecimento sobre a relação entre esses riscos e a saúde, em terceiro lugar, nem sempre acompanha o ritmo acelerado das mudanças sociais e demográficas4545 Assunção AA, França EB. Anos de vida perdidos por DCNT atribuídos aos riscos ocupacionais no Brasil: estudo GBD 2016. Rev Saude Publica 2020; 54:28.. Em quarto lugar, permanecem inconciliáveis as diferenças epistemológicas entre o nexo causal doença e agente patogênico, de acordo com a lógica da medicina pericial, de caráter judicante3030 Lise MLZ, El Jundi SARJ, Silveira JUG, Coelho RS, Ziulkoski LM. Isenção e autonomia na perícia médica previdenciária no Brasil. Rev Bioet 2013; 21(1):67-74., e a causalidade estatística construída pela epidemiologia na perspectiva da saúde coletiva66 Henry E. The new dynamics of knowledge and the persistence of power relations. Rev Fr Sci Pol 2011; 61(4):707-726.,4343 Henry E. Rapports de force et espaces de circulation de discours, les logiques des redéfinitions du problème de l´amiante. In: Gilbert C, Henry E. Comment se construisent les problèmes de santé publique. Paris: Éditions La Découverte; 2009. p.155-174., desaconselhando tomar as estatísticas oficiais como indicador da saúde dos trabalhadores99 Counil E, Henry E. Frontières disciplinaires et tensions entre savoirs académiques et connaissances issues du terrain dans la production de savoir et d'ignorance en santé et travail. Perspectives interdisciplinaires sur le travail et la santé 2018; 20-21:1-22.,4545 Assunção AA, França EB. Anos de vida perdidos por DCNT atribuídos aos riscos ocupacionais no Brasil: estudo GBD 2016. Rev Saude Publica 2020; 54:28..

Sobre as debilidades dos sistemas de informação, as estatísticas oficiais são alimentadas por informações oriundas do sistema cuja lógica não é sanitária, conforme já mencionado. Além desses limites, dados essenciais permanecem ocultos, como é o caso das informações sobre as características sociais dos que sofreram acidentes ou foram diagnosticados com doenças profissionais. Ora, o estudo das relações saúde e trabalho requer conhecimento não exclusivamente biomédico, ao contrário, convém, entre outros procedimentos, colher registros documentais e de entrevistas que são amplamente utilizados na história ou na sociologia para reconstruir as carreiras profissionais de um coletivo de trabalhadores exposto aos riscos ocupacionais.

Considerações finais

Foram identificadas circunstâncias que explicam, ao menos em parte, a discrepância entre as estimativas dos efeitos da exposição aos riscos ocupacionais sobre a saúde e as estatísticas oficiais de doenças profissionais. Os elementos apresentados deixam entrever a lógica institucional e administrativa na definição de tempos, espaços e funções específicas que compõem o sistema de reconhecimento das doenças profissionais e das doenças relacionadas ao trabalho no Brasil. Observou-se que controle e regulação da força de trabalho são dimensões implicadas no processo de declaração, notificação e registro das doenças profissionais.

Em que pese as inovações no sistema de reconhecimento, principalmente, no período 1999-2007, durante um século foram mantidas as práticas de invisibilidade social das doenças profissionais sustentadas pelas entidades médico-administrativas. A definição científica continua desconectada da definição política e jurídica, como exemplifica, o vaivém da publicação da nova versão da lista de doenças relacionadas do trabalho, em 2020, quando, entre outras, estavam incluídas a COVID-19 e os distúrbios vocais.

Agradecimentos

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG PPM-00499-16).

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2020
  • Aceito
    07 Jun 2021
  • Publicado
    09 Jun 2021
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