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Repercussões para o trabalho, a saúde e as relações familiares dos policiais feridos por arma de fogo em face

Resumo

O objetivo deste artigo é identificar o perfil dos pacientes operados em decorrência de ferimentos na face por arma de fogo (FAF), a distribuição anatômica destes ferimentos e conhecer as repercussões sobre a saúde, o trabalho e as relações familiares dos policiais atingidos. Foi realizado um estudo epidemiológico retrospectivo a partir de dados secundários referentes aos policiais militares que foram operados no Hospital Central da Polícia Militar do Rio de Janeiro em decorrência de FAF em face, no período de junho de 2003 a dezembro de 2020 (N=87). Agregam-se dados de abordagem qualitativa oriundas de respostas abertas e fechadas fruto de aplicação de questionário (N=37) posteriormente aos ferimentos, indagando sobre as repercussões do acidente violento vivido para o exercício do trabalho, na família e para a saúde do policial. O perfil dos policiais operados evidencia: sexo masculino, idade média de 34,9 anos, praças e feridos em serviço. As fraturas mandibulares foram as mais encontradas. Houve piora nas condições de saúde física após os ferimentos com aumento de casos de hipertensão, insônia (59,4%) e cefaleia (51,3%). Os danos nas relações familiares demonstraram uma maior tendência de autoisolamento do policial e sentimento de medo vivenciada por seus parentes.

Palavra-chave:
Policiais; Ferimento por arma de fogo; Saúde do trabalhador

Abstract

This article aims to identify the profile of police officers who underwent surgery due to gunshot wounds to the face, to survey the anatomical distribution of injuries and the repercussions on their health, work and family relationships. We conducted a retrospective epidemiological study based on secondary data of police officers who underwent surgery at the Central Military Police Hospital of the state of Rio de Janeiro due to gunshot wounds to the face from June 2003 to December 2020 (N=87). We also adopted a qualitative approach by applying a questionnaire with open and closed questions (N=37) to survey repercussions of the violent event on police officers’ work, families and health. The profile of police officers who underwent surgery showed that they were exclusively males, aged 34.9 years on average, privates, and injured in the line of duty. Fractures of the mandibular region were the most frequent injuries. After the accident, physical health conditions of police officers deteriorated, including an increase in cases of hypertension, a high frequency of insomnia (59.4%), and headache (51.3%). Damaged family relationship included an increasing trend of self-isolation and a feeling of fear experienced by police officers’ family members.

Key words:
Police officers; Gunshot wound; Occupational health

Introdução

O Brasil é um país marcado historicamente pela violência11 Da Matta R. As raízes da violência no Brasil: reflexões de um antropólogo social. In: Pinheiro PS. Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense; 1982. p. 12-43.. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública22 Lima RS, Bueno S. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: Anuário brasileiro de segurança pública; 2020., em 2020, 47.773 pessoas sofreram mortes violentas intencionais no Brasil; 72,5% destas mortes foram perpetradas por arma de fogo. A arma de fogo é o principal mecanismo de lesão em serviço entre policiais em todo mundo33 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML. Ferimentos por arma de fogo em profissionais de segurança pública e militares das forças armadas: revisão integrativa. Rev Bras Saude Ocup 2019; 44:e9.. No estado do Rio de Janeiro (RJ), os elevados níveis de criminalidade, a existência de confrontos armados contra grupos de narcotráfico e o elevado número de armas de fogo em circulação têm resultado num alto número de policiais atingidos por projétil de arma de fogo, produzindo lesões fatais e/ou incapacitantes e agravando as condições de risco para saúde desta população44 Minayo MCS, Souza ER, Constantino P. Riscos percebidos e vitimização de policiais civis e militares na (in) segurança pública. Cad Saude Publica 2007; 23:2767-2779..

É conhecido que os riscos inerentes à profissão e à violência vivenciada cotidianamente pelos profissionais de segurança pública têm produzido graves repercussões na sua saúde mental e física55 Hall AB, Qureshi I, Wilson RL, Glasser JJ. Timeline of Psychological and Physiological Effects Occurring During Military Deployment on a Medical Team. J Spec Oper Med 2021; 21:118-122.

6 Guerrero-Barona E, Guerrero-Molina M, Chambel MJ, Moreno-Manso JM, Bueso-Izquierdo N, Barbosa-Torres C. Suicidal Ideation and Mental Health: The Moderating Effect of Coping Strategies in the Police Force. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(15):8149.
-77 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Wernersbach L. Non-fatal gunshot wounds among military police in Rio de Janeiro: health as a field of emergency against the naturalization of violence. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1911-1922.. Para Dejours88 Dejours C. Subjetividade, trabalho e ação. Production 2004; 14:27-34. o trabalho interfere na construção da subjetividade e a coloca à prova podendo gerar aspectos construtivos e ou destrutivos na subjetividade do trabalhador. Trabalhar não se resume a produzir, mas é transformar a si mesmo. Estudos têm apontado que estes impactos na saúde dos policiais decorrem de condições insalubres de trabalho com alimentação precária, sobrecarga de trabalho, ambiente constante de violência com confrontos armados produzindo alta taxa de vitimização, uma organização do trabalho muitas vezes conflitante nas relações dos policiais com seus pares e superiores hierárquicos, baixo reconhecimento da sociedade pelo trabalho policial e o medo constante quanto a segurança de sua vida77 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Wernersbach L. Non-fatal gunshot wounds among military police in Rio de Janeiro: health as a field of emergency against the naturalization of violence. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1911-1922.,99 Bezerra CDM, Assis SGD, Constantino P, Pires TO. Fatores associados ao sofrimento psíquico de agentes penitenciários do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Rev Bras Saude Ocup 2021;46:e17.. As consequências desta forma de trabalho têm interferido também na saúde mental de seus familiares1010 Paixão CC. Transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes filhos de policiais militares do estado do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013. com desdobramentos em suas relações sociais1111 Oliveira TS, Faiman CJS. Ser policial militar: reflexos na vida pessoal e nos relacionamentos. Rev Psicol Organiz Trab 2019; 19:607-615..

A despeito do aumento na produção acadêmica na última década de estudos que analisem a relação do trabalho do policial militar e seus impactos na saúde1212 Brito HPP. Sofrimento psíquico em policiais militares: um estudo de revisão [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2020., e de ser conhecido que é alta a ocorrência de morbidade por arma de fogo entre os policiais militares (PM) no estado do RJ, há uma escassez de pesquisas que discutam as repercussões da ocorrência deste tipo de morbidade no trabalho, saúde e relações familiares, constituindo-se uma lacuna de pesquisa1313 Maia ABP, Assis SG, Minayo C. Systematic review on firearm injuries in the face: state of the art and existing gaps. J Braz Oral Maxillofacial Surgery 2021; 7(1):15-22..

Dessa forma, este artigo realizou um levantamento sobre os pacientes operados em decorrência de FAF não fatais em face que atingiram PM da ativa do estado RJ e apresenta as repercussões deste tipo de ferimento para a vida do policial nos aspectos relacionados a sua saúde, ao trabalho policial e suas relações familiares.

Materiais e métodos

Para obter as respostas aos objetivos propostos neste artigo foram utilizadas abordagens quantitativa e qualitativa1414 Deslandes SF, Assis SG. Abordagens quantitativa e qualitativa em saúde: o diálogo das diferenças. Caminhos Pensam Epistemol Metodo 2002; 2:195-223.. As análises foram realizadas a partir de dois instrumentos obtidos no Serviço de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial (CTBMF) do Hospital Central da Polícia Militar (HCPM). O primeiro deles (instrumento 1) é fruto de informações do prontuário de evolução dos pacientes, com todos os 87 policiais da ativa feridos por arma de fogo em face que acessaram o serviço entre junho de 2003 a dezembro de 2020, o que corresponde a 16,1% em relação ao total de PM atendidos no hospital por todas as causas; foram excluídos pacientes civis, e os militares reformados. As informações epidemiológicas incluíram: idade, gênero, raça/cor, data do trauma, posto ou patente militar no momento do ferimento. Os ferimentos maxilofaciais foram classificados segundo sua localização, se os ferimentos produziram fraturas de ossos da face e sua localização, distribuídos por região: mandibular, maxilar, zigomático-orbital, nasal e frontal. São ainda apontados, a condição de saúde geral do militar antes do ferimento, o número de cirurgias realizadas após o trauma, as complicações e sequelas mais encontradas e as especialidades em saúde envolvidas na reabilitação. Os dados foram inseridos em ficha padronizada a partir das variáveis existentes no documento disponíveis do serviço, digitada em banco de dados (Programa Epidata 3.0). Foram incluídos nesta etapa de análise apenas os policiais com agressões por FAF em face que não faleceram imediatamente em decorrência do ferimento e, portanto, necessitaram atendimento bucomaxilofacial.

O segundo instrumento utilizado corresponde ao questionário implementado no serviço em 2019 para levantamento das repercussões dos FAF em face. Foi aplicado a 37 policiais feridos em face no HCPM entre dezembro 2019 e setembro de 2021, contendo perguntas abertas e fechadas. O tempo médio entre o FAF em face e o preenchimento do instrumento 2 foi de 7,1 anos. Todos os 87 policiais foram convidados a atendimento no serviço, alcançando uma taxa de resposta de 42,5% em relação ao total de FAF em face atendidos no hospital no período investigado. As perdas decorreram sobretudo da dificuldade de contato, já que muitos telefones registrados nos prontuários não correspondiam mais ao número atual do policial. Vinte policiais não possuíam qualquer contato telefônico, 4 foram excluídos a bem da disciplina, 6 faleceram, 1 encontrava-se em licença ex ofício, 1 se recusou em decorrência de restrições na saúde e 18 não atenderam às ligações realizadas. Estes policiais não entrevistados (N=50) eram militares do sexo masculino e praças (100%), com idade média de 33,7 anos e feridos em serviço em 89%. As perdas foram crescentes a medida do maior tempo da ocorrência do ferimento. Entre os anos de 2003-2007 foram 68% de perdas; 2008-2012 66,7%; 2013-2017 57% e 2018-2020 35,8%.

O instrumento 2 contém perguntas relacionadas à: a) identificação do perfil do paciente; b) atendimento em saúde recebido; c) repercussões na saúde geral e oral após o FAF, doenças adquiridas após o ferimento, índice de massa corpórea (IMC / peso, dividido pela estatura elevada ao quadrado, considerando obesidade ≥30 kg/m²), frequência de atividade física praticada, hábitos como tabagismo; d) repercussões nas relações sociais e familiares; e) repercussões no exercício do trabalho e dificuldades enfrentadas; f) limitações funcionais e ou estéticas decorrentes do trauma. Os dados foram processados em banco de dados (Programa Microsoft Office Excel 2019). Para o processamento e análise de todas as informações foi usado o pacote estatístico SPSS versão 19.0, realizando-se análise descritiva com apresentação de frequências e percentuais.

Para a análise qualitativa, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo, na modalidade de análise temática e cumpriu as seguintes etapas1515 Minayo MCS, Assis SG, Oliveira RVC. Impacto das atividades profissionais na saúde física e mental dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2011; 16(4):2199-2209.: (1) digitação das anotações das entrevistas; (2) atribuição de blocos temáticos; (3) leitura compreensiva dos textos digitalizados visando a detectar tanto as particularidades quanto aos relatos coincidentes entre os depoimentos; (4) agrupamento dos trechos de depoimentos mais ilustrativos; (5) identificação das ideias centrais; (6) identificação dos sentidos atribuídos às ideias; (7) elaboração de sínteses interpretativas. As análises buscaram conhecer, interpretar e sintetizar os impactos vivenciados pelos PM em suas relações laborais, familiares, no seu jeito de ser e o que consideravam como o melhor e o pior de ser policial após o ferimento sofrido.

A pesquisa foi submetida e autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz (CAAE 31541320.8.0000.5240).

Resultados

Durante o período de junho de 2003 a dezembro de 2020 foram realizadas 196 cirurgias decorreram de FAF em face em 87 PM da ativa representando uma média de 2,2 cirurgias por paciente ferido por arma de fogo. Todos os pacientes nessa análise eram do sexo masculino (N=87), com idades entre 24 e 49 anos e média de 34,9 anos, 51,5% foram identificados como cor da pele branca, seguidos por preta (28,5%) e parda (20%).

O perfil profissional do policial foi constituído predominantemente por praças (97,7%), em especial soldados (40,1%); feridos durante o período laboral (73,5%). Entre as circunstâncias envolvidas nos acidentes durante a folga, o assalto ou a tentativa de assalto foi a ocorrência mais relatada (73,2%), seguida por tentativa de suicídio (9,6%).

No que se refere aos ferimentos bucomaxilofaciais analisados 82,7% sofreram fraturas faciais. Constatando a amplitude das lesões, 72 pacientes apresentaram 122 regiões da face fraturadas, com maior acometimento da região da mandíbula (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição das fraturas maxilofaciais em decorrência de trauma por arma de fogo entre 87 policiais militares da ativa, operados em virtude de FAF (junho de 2003 a dezembro de 2020).

Em virtude da gravidade dos ferimentos por arma de fogo, 18,4% dos baleados precisaram ser submetidos a traqueostomia. Constam nos prontuários 282 ocorrências de sequelas e complicações advindas do trauma entre os 87 pacientes da amostra conforme a Tabela 2.

Tabela 2
Distribuição das sequelas e complicações faciais advindas do trauma sofrido por policiais militares do Estado do Rio de Janeiro (junho de 2003 a dezembro de 2020, N=87).

Com relação aos “impactos na saúde”, ao avaliar a anamnese do Instrumento 1 (N=87) preenchidos no primeiro atendimento 6,9% dos pacientes apresentavam hipertensão e 1,1% gastrite, dor articular e diabetes. Quando analisamos as respostas do questionário sobre as repercussões dos ferimentos sofridos (Instrumento 2, N=37), encontramos posterior agravamento das condições de saúde dos pacientes (Tabela 3).

Tabela 3
Respostas às perguntas fechadas sobre as condições de saúde dos policiais militares feridos por arma de fogo em face no estado do Rio de Janeiro de junho de 2003 a dezembro de 2020, N=87 e dezembro de 2019 a setembro de 2021, N=37.

Os “impactos no trabalho” variaram de afastamento completo das atividades laborais, mudanças na forma de atuação e na função do trabalho. De acordo com a Junta Médica de Saúde da Secretaria de Estado de Polícia Militar1616 Rio de Janeiro. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Portaria nº 346, de 12 de maio de 2010. Aprova as novas Instruções Reguladoras das Inspeções de Saúde e das Juntas de Inspeção de Saúde no âmbito da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro; 2010., 20 policiais foram classificados como aptos para o trabalho e 17 inaptos. O tempo médio de afastamento por motivos de saúde foi de 15,4 meses (N=29). Nesse total não foram considerados os oito policiais que ainda estavam em licença no dia da entrevista para a pesquisa.

Quanto à forma de trabalhar, apenas dois não mencionaram alguma mudança após o acidente. As mudanças relatadas demonstraram um comportamento que oscilava entre atitudes de maior cautela ou de maior exposição laboral na busca por vingança, ambos permeados pelo sentimento de medo. Alguns policiais feridos desempenhavam funções táticas de conduzir as operações e após o acidente não se viram mais em condição de desempenhá-las:

No início fiquei querendo vingança, queria vingança! Tratei com psicólogo por 4 anos para me sentir melhor.

Muito medo, antes eu sabia que tem risco, agora tenho certeza e dá muito medo.

Precisei para sair da ponta da operação em virtude do medo.

Foi recorrente o relato de que logo após retornarem ao trabalho vários tiveram um comportamento mais impulsivo e reativo. A maioria dos militares (N=34) respondeu que o trabalho representava um risco constante. Quanto às condições de trabalho ao longo do tempo, 21 policiais reconheceram melhorias na condição de trabalho, em especial numa melhor oferta de viaturas (N=10), armas e coletes de proteção (N=11). Os que consideraram que as condições pioraram queixaram-se da falta de camaradagem entre pares no trabalho e a falta de respeito da sociedade em relação ao policial.

Quando perguntados sobre o que consideravam o pior de ser policial militar, as ideias centrais das respostas abertas demonstraram uma forte insatisfação com a forma de relação com os superiores hierárquicos (N=17) e o baixo reconhecimento do trabalho das praças pela SEPM (N=13). Ressaltamos que a falta de reconhecimento pela sociedade (N=6) e o risco da profissão (N=6) foram menos citados:

O pior acho que é a falta de apoio pelas autoridades dentro da própria instituição.

A falta de apoio da corporação em tudo. Numa ocorrência, quando você está numa situação que aperta, quando há uma denúncia contra você. Você já é considerado culpado e depois que tem que mostrar que não é. Isto já aconteceu comigo, já fui injustiçado e tive que provar que não era culpado. Isto foi há muito tempo. Foi um momento muito difícil pela insegurança do que aconteceria.

O pior é....acho que o nosso comando geral, os superiores. A sociedade agente entende não ter reconhecimento, mas dos superiores, da própria instituição é o pior.

O constante risco de vida por ser policial, inclusive na folga.

Quando perguntados sobre o que consideravam o melhor de ser policial, encontramos uma demonstração de grande satisfação em poder ajudar as pessoas e servir a sociedade (N=15). Os entrevistados também expressaram satisfação com o fato de terem estabilidade financeira (N=6) e possibilidade de construir relações de amizade ao longo da carreira policial (N=4):

Possibilidade de carreira para melhora financeira.

Sentir que é útil quando atende uma demanda da sociedade, gosto de radiopatrulha de interagir com as pessoas.

Eu gosto de ser policial, de ajudar, de ser útil.

Satisfação em retirar da sociedade um bandido, fazer algo bom para a sociedade.

Acerca das “repercussões na família”, os policiais apontaram impactos no convívio social, em perdas financeiras e na saúde de integrantes da família. Quanto ao contexto familiar, 30 eram casados e sete eram solteiros; tinham uma média de 1,6 filhos; moravam em casa própria quitada (N=14), própria financiada (N=9), alugada (N=12) e de favor (N=2). Houve relatos sobre a falta de segurança para viver no bairro onde residem e dois casos muito graves em que o policial precisou sair de sua casa em decorrência de ordens do tráfico local. Apesar das dificuldades, a família constitui a principal rede de apoio para superação das dificuldades para 29 militares:

Não saio de casa quase, não saio de noite. A minha esposa também adoeceu, principalmente quando fomos expulsos de casa. Quando tem alguma festa dependendo do lugar não vai de jeito nenhum.

Minha filha tinha medo de tudo, de ficar sozinha, de pegar ônibus, medo de tudo, ela começou um atendimento na psicologia no Batalhão, mas houve uma mudança de política e a psicóloga foi retirada e minha filha não pode continuar o tratamento.

Não durmo, direito, parei de interagir socialmente com outras pessoas. Para ter uma ideia, nunca mais pude retornar na casa da minha mãe que mora no bairro onde fui assaltado.

A partir do acidente minha esposa ficou muito mais preocupada, se estou na rua ela fica nervosa, se demoro, a pressão dela aumenta. Ela precisou buscar ajuda psicológica.

Entre os policiais casados (N=30), 22 identificaram impactos do acidente violento na vida dos cônjuges. Foram relatados aumento da irritabilidade e impaciência para com a esposa ou companheira, de forma mais recorrente; três policiais se separaram em virtude desses impactos. Houve um aumento do sentimento de medo e ansiedade das esposas e maior preocupação com a segurança da família, assim como casos de depressão e hipertensão após o acidente de seu marido. Mas também foi reportada melhora na qualidade do relacionamento após o acidente (N=2) pela solidariedade gerada pelo sofrimento. O medo foi o sentimento mais citado para descrever os impactos entre os filhos após o acidente, assim como depressão e necessidade de acompanhamento psicológico de alguns filhos.

Os relatos que afirmaram “mudanças no jeito de ser” (N=32) abrangeram perdas no convívio social que resultaram em comportamento de autoisolamento:

Um trauma né! Se eu puder não andar de ônibus eu não ando. Também tive medo de ficar deformado e aprendi a não sorrir mais por cauda da perda dos dentes. Quase não saio de casa, me relaciono com poucas pessoas. Nunca mais consegui ter uma vida normal, tive depressão, fui internado. Aí tive problemas na psiquiatria da PMERJ, não conseguia ser atendido e tive que fazer tratamento particular.

As mudanças ocorreram em virtude de limitações na saúde física, emocional, medo de revitimização e perdas na condição financeira familiar. As dificuldades físicas envolveram insatisfação com a estética facial e limitações funcionais adquiridas como perda da acuidade visual, auditiva e limitações para mastigar. Os impactos financeiros decorreram de: impossibilidade de fazer o trabalho extra dos agentes de segurança em dias de folga ou de férias de forma a complementar sua renda; gastos extras para cuidados com a saúde; perda de gratificações por estarem em regime diferencial de saúde; perda de salário das esposas que tiveram de parar de trabalhar para cuidar da saúde do marido.

Discussão

Os FAF em face produzem lesões perfuro-contundentes e avulsivas de segmentos maxilofaciais que, normalmente, resultam em ferimentos associados a graves riscos à saúde física e emocional dos pacientes em virtude do frequente comprometimento estético e funcional, constituindo-se em desafio para o cirurgião1717 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Pinto LW. The marks of gunshot wounds to the face. Braz J Otorhinolaryngol 2019; 87:145-151.. O perfil profissional do paciente baleado em face encontrado foi de militares praças, em especial soldados, do sexo masculino, com idade média de 34,9 anos, atingidos em serviço. A idade média dos feridos em face encontrados é mais elevada entre os militares quando comparados aos pacientes civis1818 Lima CHR, Ranúzia I, Pereira IF, Vasconcelos BCE. Lesão por arma de fogo no rosto: revisão da literatura e relato de caso. Acta Sci Dental Sci 2018; 2:37-40.,1919 Liu FC, Halsey JN, Hoppe IC, Ciminello FS, Lee ES, Granic MS. Uma revisão unicêntrica de fraturas faciais como resultado de lesões por projéteis de alta velocidade. Eplasty 2018; 9:18-20.. O fato de os feridos serem constituídos apenas por homens pode ser explicado pela baixa representatividade de policiais femininas na Secretaria de Estado de Polícia Militar e maior quantidade de praças nas operações de confronto, o que os expõe a mais violência por efeito da divisão de trabalho corporativo e também dos permanentes conflitos sociais.

As cirurgias realizadas em decorrência de arma de fogo entre os policiais constituíram 16,2% das realizadas no Serviço de CBMF no HCPM, um índice muito elevado se comparado a população civil que oscila de 1%2020 Scannavino FLF, Santos FDSAD, Novo Neto JP, Novo LP. Análise epidemiológica dos traumas bucomaxilofaciais de um serviço de emergência. Rev Cirurg Traumatol Buco-maxilo-facial 2013; 13:95-100., 2%2121 Santos CML, Oliveira MJ, Silva CI, Nascimento MTM. Estudo epidemiológico dos traumas bucomaxilofaciais em um hospital público de Feira de Santana, Bahia de 2008 a 2009. Rev Baiana Saude Publica 2012; 36:502. a 6%2222 Pereira C, Boyd JB, Dickenson B, Putnam B. Gunshot Wounds to the Face. Ann Plastic Surgery 2012; 68:378-381. dos traumatismos maxilofaciais operáveis. A despeito de os PM incluídos neste estudo não comporem a totalidade das ocorrências da corporação, o HCPM é o principal hospital de assistência dos PM em todo estado, representando 35% dos atendimentos emergenciais dos acometidos por FAF77 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Wernersbach L. Non-fatal gunshot wounds among military police in Rio de Janeiro: health as a field of emergency against the naturalization of violence. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1911-1922.. É conhecido que os profissionais de segurança pública possuem maior risco de morte se comparados a outras profissões2323 Blair JM, Fowler KA, Betz CJ, Baumgardner JL. Occupational homicides of law enforcement officers, 2003-2013: data from the National Violent Death Reporting System. Am J Prev Med 2016; 51(5 Supl. 3):S188-S196.

24 Violanti JM, Hartley TA, Gu JK, Fekedulegn D, Andrew ME, Burchfiel CM. Life expectancy in police officers: a comparison with the US general population. Int J Emerg Ment Health 2013; 15(4):217-228.
-2525 Swedler DI, Kercher C, Simmons MM, Pollack KM. Occupational homicide of law enforcement officers in the US, 1996-2010. Inj Prev 2013; 20(10):35-40.. Isso acontece em virtude da natureza e das atribuições da profissão. Apesar dessa contingência, os índices encontrados entre os PM no Rio de Janeiro são extremamente elevados77 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Wernersbach L. Non-fatal gunshot wounds among military police in Rio de Janeiro: health as a field of emergency against the naturalization of violence. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1911-1922.,1616 Rio de Janeiro. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Portaria nº 346, de 12 de maio de 2010. Aprova as novas Instruções Reguladoras das Inspeções de Saúde e das Juntas de Inspeção de Saúde no âmbito da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro; 2010.. As fraturas de mandíbula foram o tipo mais frequente, assim como relatado na literatura1313 Maia ABP, Assis SG, Minayo C. Systematic review on firearm injuries in the face: state of the art and existing gaps. J Braz Oral Maxillofacial Surgery 2021; 7(1):15-22.,1717 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Pinto LW. The marks of gunshot wounds to the face. Braz J Otorhinolaryngol 2019; 87:145-151.,2121 Santos CML, Oliveira MJ, Silva CI, Nascimento MTM. Estudo epidemiológico dos traumas bucomaxilofaciais em um hospital público de Feira de Santana, Bahia de 2008 a 2009. Rev Baiana Saude Publica 2012; 36:502., seguidas por aquelas que ocorrem na região de maxila e na região zigomático-orbital. Em média, cada paciente apresentou 1,4 regiões com fraturas maxilofaciais. Essas fraturas foram acompanhadas por extensas perdas de dentes, segmentos ósseos e disestesias, o que pode ser explicado pelo alto potencial avulsivo e destrutivo do projétil de arma de fogo.

Estudos têm demonstrado ao longo das últimas duas décadas problemas na condição de saúde dos profissionais de segurança pública no país2626 Ferreira DKS, Augusto LGS, Silva JM. Condições de trabalho e percepção da saúde de policiais militares. Cad Saude Colet 2008; 16(3):403-420.

27 Pinto LW, Figueiredo AEB, Souza ER. Sofrimento psíquico em policiais civis do Estado do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2013; 18(3):633-644.

28 Minayo MCS, Adorno S. Risco e (in)segurança na missão policial. Cien Saude Colet 2013; 18(3):585-593.

29 Minayo MCS, Souza ER, Constantino P. Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.
-3030 Minayo MCS, Souza ER. Missão investigar: entre o ideal e a realidade de ser policial. Rio de Janeiro: Garamond; 2003.. Este, em particular, corrobora com esta problemática mostrando que após a ocorrência dos FAF em face, houve um agravamento da condição de saúde entre os policiais analisados, com elevada frequência de doenças cardiovasculares e gastrointestinais; problemas articulares/coluna; crescimento dos casos de diabetes e elevada queixa de insônia, cefaleia e dor crônica. A alta frequência de obesidade e sobrepeso somados ao sedentarismo, superiores à média da população brasileira3131 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Plano Nacional de Saúde 2020-2023. Brasília: MS; 2020., constituem fatores de risco adicionais preocupantes.

Os fatores associados aos impactos danosos produzidos pelos FAF em face nas relações familiares e no trabalho apontam para três aspectos causais, a saber: a) as queixas com a estética facial e visibilidade dos ferimentos produzidos e a perspectiva que considera a alta representatividade da face nos nossos dias; b) a alta percepção de risco e sentimento de medo encontrada entre os feridos e seus familiares; e c) as condições e a divisão de trabalho desses profissionais.

Sobre a alta representatividade e visibilidade da face precisamos considerar que ela desempenha tanto funções físicas tais como: fala, mastigação, respiração, sentidos gustativos, visão; como participa da construção e desenvolvimento da subjetividade e das relações3232 Elias N. A sociedade dos indivíduos. São Paulo: Zahar; 1994.,3333 Le Breton D. A Sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes; 2012.. O aumento do poder destrutivo das armas de fogo tem contribuído para uma maior dificuldade de tratamento e agravamento das sequelas produzidas, representando um entrave para recuperação não apenas funcional como também da estética facial destes pacientes. No sentido contrário e alheia a esta dificuldade, Elias3232 Elias N. A sociedade dos indivíduos. São Paulo: Zahar; 1994. e Le Breton3333 Le Breton D. A Sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes; 2012. mostraram o crescimento da importância da representação da face no indivíduo ao longo dos tempos desde o século XV e De Vihena34 explicou o crescimento da exigência social com a estética facial. À vista disso, apesar dos avanços nas técnicas reconstrutivas, os relatos de comprometimento estético facial foi a principal ocorrência descrita nos prontuários analisados, pois eles produziram dificuldades psicológicas e de sociabilidade. Implicações essas já descritas por Goffman3535 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. 4ª ed. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC; 2017. ao pesquisar o estigma social como atributo depreciativo e suas consequências na deterioração da identidade dos sujeitos.

O tratamento desse tipo de morbidade demandou equipes multidisciplinares, múltiplas cirurgias reconstrutivas, extensos períodos de recuperação e limitações físicas que, invariavelmente, repercutem social e emocionalmente na vida do paciente. Acompanhando outros estudos, os cuidados com os pacientes deste estudo demonstram o longo caminho de recuperação, marcado pela dor crônica que esgota o ânimo e interfere na estabilidade emocional prejudicando a qualidade de vida dos pacientes1717 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Pinto LW. The marks of gunshot wounds to the face. Braz J Otorhinolaryngol 2019; 87:145-151..

Para analisar as repercussões dos FAF em face para o exercício do trabalho, consideramos a construção teórica proposta por Dejours3636 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez Editora; 2015. ao definir condições de trabalho e divisão de trabalho e sua relação de como os trabalhadores lidam com o sofrimento causado no trabalho. Para Dejours3636 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez Editora; 2015. a condição do trabalho está relacionada às questões que atingem o corpo do trabalhador afetando exclusivamente sua condição física. Neste estudo encontramos que os confrontos armados em serviço produziram acidentes violentos que agravaram as condições de saúde destes profissionais de segurança pública no RJ, consequência esta das desfavoráveis condições de trabalho que estão submetidos.

Quanto a divisão de trabalho, Dejours3636 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez Editora; 2015. definiu como:

...o conteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade3636 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez Editora; 2015.(p.29).

Esta organização do trabalho pode conflitar com o funcionamento psíquico dos trabalhadores de tal forma a neutralizar as estratégias defensivas sejam elas coletivas ou individuais produzindo um sofrimento patológico. Antunes3737 Antunes EJF. Hierarquia na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro: uma análise crítica de seus impactos na saúde [dissertação] Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2019., em revisão de literatura sobre o tema, concluiu que a hierarquia fundamenta a organização do trabalho das polícias militares e é considerada um fator colaborador na emergência de sofrimento e implicações na saúde. A alta frequência de sintomas não psicóticos encontrados neste artigo como insônia, irritabilidade, dor de cabeça e gastrite podem ser manifestações ou respostas a um tipo de sofrimento psicológico como descrito por Bezerra et al.99 Bezerra CDM, Assis SGD, Constantino P, Pires TO. Fatores associados ao sofrimento psíquico de agentes penitenciários do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Rev Bras Saude Ocup 2021;46:e17.. As recorrentes narrativas entre os entrevistados atribuindo o funcionamento problemático na hierarquia da instituição ao pior de ser policial apontaram para essa realidade de a organização do trabalho da instituição como fator de risco para o sofrimento psíquico dos policiais feridos. Outrossim, a camaradagem e a satisfação em ajudar as pessoas podem funcionar como estratégias neutralizadoras deste sofrimento.

É relatado na literatura nacional e internacional que o trabalho dos profissionais de segurança pública representa um alto risco para a produção de doenças físicas e psicológicas2323 Blair JM, Fowler KA, Betz CJ, Baumgardner JL. Occupational homicides of law enforcement officers, 2003-2013: data from the National Violent Death Reporting System. Am J Prev Med 2016; 51(5 Supl. 3):S188-S196.

24 Violanti JM, Hartley TA, Gu JK, Fekedulegn D, Andrew ME, Burchfiel CM. Life expectancy in police officers: a comparison with the US general population. Int J Emerg Ment Health 2013; 15(4):217-228.
-2525 Swedler DI, Kercher C, Simmons MM, Pollack KM. Occupational homicide of law enforcement officers in the US, 1996-2010. Inj Prev 2013; 20(10):35-40.,3838 Sherwood L, Hegarty S, Vallières F, Hyland P, Murphy J, Fitzgerald G, Reid T. Identificando os principais fatores de risco para resultados psicológicos adversos entre policiais: uma revisão sistemática da literatura. J Traumatic Stress 2019; 32(5):688-700.,3939 Stevelink SAM. Provável PTSD, depressão e ansiedade em 40.299 policiais e funcionários do Reino Unido: prevalência, fatores de risco e associações com a pressão arterial. PloS One 2020; 15:e0240902.. Em virtude dos altos índices de confrontos armados na cidade do RJ, mantidos pela lógica de guerra as drogas como principal estratégia de segurança pública, os PM têm apresentado índices ainda mais elevados de perdas na qualidade da saúde física e mental77 Maia ABP, Assis SG, Ribeiro FML, Wernersbach L. Non-fatal gunshot wounds among military police in Rio de Janeiro: health as a field of emergency against the naturalization of violence. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1911-1922.,1515 Minayo MCS, Assis SG, Oliveira RVC. Impacto das atividades profissionais na saúde física e mental dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2011; 16(4):2199-2209.,2828 Minayo MCS, Adorno S. Risco e (in)segurança na missão policial. Cien Saude Colet 2013; 18(3):585-593.. Ao analisarmos os impactos dos FAF em face para o exercício da profissão vimos que eles produziram grandes períodos de afastamento das atividades laborais para tratamento de saúde e elevado percentual de afastamento da atividade de policiamento ostensivo. Dessa forma, as repercussões oriundas do modelo de organização de trabalho nas polícias militares somaram-se ao evento violento sofrido e agiram como catalizadores dos fatores de risco já existentes, produzindo uma degradação da condição de saúde mental dos policiais operados.

Este artigo demonstrou que este tipo de ferimento inviabilizou com frequência (75,7%) o retorno do militar as atividades de policiamento ostensivo. Azevedo4040 Azevedo CRN. Vocações violadas? A identidade e a motivação dos policiais militares afastados das ruas [dissertação] Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas; 2021. em estudo realizado com PM afastados de sua atividade fim apontou que a maioria das frustrações e insatisfações estava ligada à violação da vocação e demonstrava uma aspiração pela preservação da identidade policial ao declarar o desejo de retorno à condição inicial, mostrando inconformidade pelas restrições e limitações. Este alto índice de afastamento das atividades laborais requer atenção redobrada dos profissionais de saúde que lidam com essas pessoas, a fim de auxiliá-las a lidar com as mudanças no modo de vida anterior. Mesmo os policiais que retornaram ao trabalho de policiamento ostensivo precisam repensar a carreira e mudar a forma de atuação.

As narrativas sobre os impactos nas relações e no trabalho demonstram que o sentimento de medo e a alta sensação de risco estão imbricadas e são as principais percepções envolvidas na produção de mudanças das relações e da forma de viver do policial, assim como do exercício do trabalho. Oliveira et al.1111 Oliveira TS, Faiman CJS. Ser policial militar: reflexos na vida pessoal e nos relacionamentos. Rev Psicol Organiz Trab 2019; 19:607-615. encontraram que o sentimento de medo extrapola o período em que o profissional está em atividade, e a necessidade de cautela constante produz impactos na forma como estabelecem e mantêm suas relações sociais. Minayo et al.1515 Minayo MCS, Assis SG, Oliveira RVC. Impacto das atividades profissionais na saúde física e mental dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2011; 16(4):2199-2209.,2828 Minayo MCS, Adorno S. Risco e (in)segurança na missão policial. Cien Saude Colet 2013; 18(3):585-593. evidenciaram que os policiais com elevada percepção de risco do trabalho são aqueles que mais vivenciam violências, como as produzidas por arma de fogo. Isso explica a elevadíssima consciência de risco encontrada entre os policiais com FAF em face entrevistados. Para eles, o medo de ser vitimado não representa uma possibilidade distante, mas uma realidade cotidiana do trabalho, o que interfere produzindo comportamentos ora mais agressivos, ora de maior cautela durante o policiamento ostensivo.

Acerca dos impactos na família do militar, são conhecidas as repercussões na saúde, qualidade de vida e relacionamento conjugal de esposas de policiais em virtude do trabalho de seus companheiros4141 Derenusson FC, Jablonski B. Sob fogo cruzado: o impacto do trabalho policial militar sobre a família do policial. Aletheia 2010; 32:22-37.,4242 Soares K, Souza R, Melo SMV. Experiência de ser esposa de policial militar: um estudo fenomenológico. Phenomenological Stud 2020; 26:242-252.. Esta relação familiar muitas vezes já fragilizada pelas repercussões do dia a dia da profissão precisa, após a ocorrência de um acidente violento como FAF, encontrar meios e força para superar as dificuldades. Os desdobramentos danosos aos familiares do policial abrangem, como visto, prejuízos financeiros produzidos pela redução da renda familiar; alteração do jeito de ser do policial com mudança de rotina e na forma de viver da família e prejuízo à saúde mental dele e dos filhos e da esposa ou companheira. Tais desdobramentos por vezes levam à ruptura irreversível dos laços interpessoais entre os conjugues.

Paixão1010 Paixão CC. Transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes filhos de policiais militares do estado do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013. encontrou elevada prevalência de transtornos entre os filhos dos PM no estado do RJ. O medo relacionado aos riscos da profissão, sobre eles, estava mais presente nas famílias que vivenciaram violência1010 Paixão CC. Transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes filhos de policiais militares do estado do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013.. Entre PM com FAF em face, o medo foi o sentimento mais citado quando o policial descreveu os impactos nos cônjuges e filhos. Este medo estava relacionado a insegurança dele próprio quanto à profissão e à realidade da morte muito presente na vida de seus familiares. As marcas do ferimento, sempre visíveis ao paciente e a seus parentes apontam diariamente para a finitude e para a realidade de alto risco de vitimização dos policiais no estado do RJ.

Os resultados expostos neste estudo apontam para a necessidade da articulação de políticas públicas que promovam melhores condições de trabalho e suporte aos policiais vitimizados. No tocante aos profissionais de saúde que lidam com os policiais feridos, por mais circunscrito que esteja do ponto de visto anatômico, sua área de atuação está irremediavelmente engendrada a questões que escapam aos limites de saúde e doença física. Frente a essa realidade, tais profissionais precisam estar atentos e preparados para lidar com questões psicossociais envolvidas, reconhecendo precocemente a necessidade de atenção à saúde mental dos pacientes feridos por arma de fogo em face e também de seus familiares. Conhecendo a abrangência dos impactos gerados na família, apontada como a principal rede de sustentação para superação das dificuldades, é urgente a elaboração de medidas que lhe assegurem suporte mais adequado e eficaz durante o período de recuperação do policial. Ademais, é preciso iluminar, a partir da perspectiva da saúde do trabalhador, os motivos da alta morbidade por arma de fogo e as condições de trabalho ora vigentes que predispõem tais profissionais a tão elevada vitimização.

O artigo possui limitações, como não contar com uma amostra representativa do total de PM acometidos por FAF em face no estado do Rio de Janeiro, já que existem PM que podem ter sido atendidos em outros hospitais, ou pela reduzida taxa (42,5%) de adesão para resposta do questionário sobre as repercussões dos FAF em face. Apesar dessas limitações, os dados apresentados apontam para um problema de saúde relevante para esta categoria profissional, para a qual não há qualquer informação de magnitude e extensão das repercussões deste tipo de morbidade no exercício do trabalho e nas relações familiares.

Conclusão

O perfil dos PM operados em virtude de FAF em face encontrado foi de pacientes do sexo masculino, com idade média de 34,9 anos e praças. Os ferimentos e fraturas na região mandibular foram as mais encontradas. Os FAF em face produziram longos períodos de afastamento do trabalho para tratamento de saúde, altas taxas de afastamento definitivo do serviço e limitações para o exercício do trabalho entre os que retornaram a atuar como policiais.

As mudanças no jeito de viver e no convívio social foram motivadas pela alta percepção de risco policial e pela alta visibilidade de seus ferimentos. O sentimento de medo produzido após o acidente violento produziu repercussões que abrangeram uma maior tendência de autoisolamento. Nas relações familiares encontramos perdas na saúde física, mental e na renda familiar do policial de seus familiares.

A alta ocorrência deste tipo de morbidade entre os PM do RJ tem chamado a atenção para a necessidade de discutir e repensar a forma de atuação dos profissionais de segurança pública e suas condições de trabalho. Por se tratar de um campo caracterizado pela intersetorialidade, estudos que abordem os impactos na saúde destes trabalhadores podem contribuir para a elaboração de medidas que visem ao aprimoramento da forma de atuação dos profissionais, deslocando o olhar para uma abordagem preventiva e de inteligência em detrimento da atual lógica baseada em confrontos armados.

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Editado por

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2022
  • Aceito
    28 Mar 2022
  • Publicado
    30 Mar 2022
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