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Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020.

Guimarães, NA; Hirata, HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial, 2020

A obra Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades11 Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020., publicada em 2020, emerge como um marco, justamente em tempos em que a palavra cuidado elevou-se - na emergência pandêmica - quase como palavra de ordem. Nestes tempos, evocar o cuidado em suas versões teóricas, históricas e sociológicas, contribui com o campo da saúde coletiva como leitura obrigatória. Ao tensionar o cuidado como campo relacional, nas relações materiais de produção, reconhecemos as assimetrias de poder e dominação que o atravessam. Nesse sentido, na urgência de memorializar os quase 700 mil mortos no Brasil, em virtude da pandemia, precisamos perguntar quem são estes mortos, e como o Cuidado precisa ser reconhecido como política e direito. Cabe interrogar a presença das pessoas ausentes, nas mortes inventariadas, nas desigualdades e nos descuidos, quase como um testemunho à la Luc Boltansky22 Boltansky L. A presença das pessoas ausentes. Parágrafo 2015; 2(3):147-156..

Urge interpretar a pandemia nas relações entre cuidado e interseccionalidade33 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019.. A interseccionalidade remete aos efeitos transversais “do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo”33 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019.(p.23), e também da corponormatividade, como estruturas de desumanização. A leitura interseccional faz-se necessária para fazer os mortos falarem, e perguntar sobre as expressões de discriminação que interferem no cuidado. O conceito de “fato social total”44 Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. In: Maus M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif; 2003. p. 183-184., nas análises sobre a Pandemia de COVID-1955 Santos RV, Pontes AL, Coimbra Jr. C. Um "fato social total": COVID-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):e00268220. e sobre a Epidemia de Zika66 Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia Política do Zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Rev Anthropol 2017; 28(1):223-246., exige atualizações críticas em seus efeitos interseccionais, produtores de vulnerabilização.

Guimarães e Hirata11 Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020., já na “Apresentação”, nos reenviam à imagem de obra: expressão de grandeza, organicidade, labor, artesanato, agenciamento. As autoras construíram uma trajetória - no sentido Bourdieusiano - de intersecções entre sociologia, economia, ciência política, para retirar o Cuidado de perigosas leituras essencialistas, reificadoras de supostas “naturezas”, das armadilhas do “bom em si”. Há que equivocar o Cuidado, interrogá-lo, encarná-lo em lugares sociais, nos planos das relações sociais, das desigualdades que sustentam a sociedade capitalista, e suas gramáticas de exclusão. A obra renova e aquece o debate sobre Cuidado, em tempos muitos e de pandemia, onde “internalização do trabalho (daqueles que puderam se confinar) no âmbito do domicílio, jogaram luz sobre múltiplas relações e contradições no provimento do cuidado e sobre a necessidade de pensarmos o futuro das nossas sociedades, fundadas num outro tipo de regime moral que tenha no cuidado um valor universal”11 Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020.(p.22). Iluminamos dois aspectos: (1) o Cuidado como valor universal, fundante de um outro regime moral; (2) o confinamento para agenciar a interseccionalidade como lente interpretativa e analítica do fato social pandemia.

Para questionar “o” Cuidado como um valor universal, devemos interrogá-lo como gramática, em seus idiomas e trânsitos. Nessa transitoriedade, talvez possamos valorizar os seus “circuitos” como referem as autoras no capítulo 3. Viviana Zelizer77 Zelizer VA. Dualidades Perigosas. Mana 2009; 15(1):237-256. nos faz atentar para isso que nomeia como “dualidades perigosas”, das esferas separadas e dos mundos hostis. Sinteticamente, tais teorias sustentam o capitalismo industrial do século XIX, e se organizam complementarmente. A teoria das esferas separadas opera com organizações ou domínios antinômicos: racionalidade, eficiência e planejamento em oposição a solidariedade, sentimento e impulso. Tal teoria em diálogo com a dos mundos hostis, enuncia que se esses mundos entrarem em contato, haveria uma contaminação de uma pela outra. Ou seja, relações intimas e transações econômicas não devem moralmente se comunicar, mas há que zelar por sua separação. No entanto, Zelizer (op. Cit) nos alerta para o quanto tais teorias são falhas, sustentando casos concretos, desde mercados de leilões até trabalhos domésticos, onde as redes de relações interpessoais, na intimidade e impessoalidade, convivem em um idioma próprio e legitimo.

O capítulo 1 da obra11 Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020. merece destaque. Para nós intelectuais orgânicas da saúde, aprendemos e refletimos com a revisão de fôlego empreendida. Revisar histórica e sociologicamente as Teorias do Care significa reconhecer economia e política, das desigualdades na dimensão relacional do cuidado, e no papel das ondas feministas que o interpretam.

O Cuidado como relacional, remete às localizações sociais de quem cuida e de quem recebe os cuidados. Por isso o Gênero do Cuidado11 Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020. comparece dialogado com raça, classe, e as desigualdades que se desvelam e interseccionam por meio das opressões e assimetrias. “Nomear, reconhecer e obscurecer”, título do capítulo 2, comparece como um trabalho sociológico e histórico, ao revisitar a emergência da palavra cuidador e suas flexões de gênero e número, no acervo de um jornal brasileiro de 1875 a 2019. Vale refletir como os anos 2000 do século 21, e sua primeira década revela-se um marco para agendas de cuidado na atenção à saúde, e marco de 80% dos anúncios identificados na pesquisa. Neste capítulo “Nomear, reconhecer, obscurecer” são menos movimentos contraditórios e mais de reintegração de lutas por reconhecimento, sem necessariamente corresponder à valorização. No capítulo 3, o Cuidado se configura o tema das interfaces, tencionando macro e microssociologia. As expressões “circuitos e cadeias” surgem como recursos para um diálogo tanto com a Sociologia das Emoções, quanto para uma Economia do Cuidado. Instiga o debate com a sobrevivência, na discussão sobre consubstancialidade e configurações mercantis e relacionais do Cuidado. No capítulo 4 as autoras nos presenteiam com análises dos dados do Censo de 2010, onde a nova Classificação Brasileira de Ocupações inclui na família das ocupações a de “Cuidadores de crianças, jovens, adultos e idosos”. O Cuidado domiciliar se configura nas mercantilizações e profissionalizações, preservando ainda uma clivagem de classe ao se analisar quem pode ter acesso ao trabalho profissional de Cuidado em domicílio. Isso nos fala não somente de gênero, mas de desigualdade de classe nas relações de Cuidado. Esse argumento nos lança ao capítulo 5, no Cuidado como “ajuda” - categoria êmica deveras presente nos estudos da saúde coletiva, nos cuidados com crianças com deficiências e condições de saúde crônicas, raras e complexas, nas quais se incluem as crianças atingidas pelo Vírus da Zika. Para as classes populares, das periferias, o cuidado ainda se sustenta pelas e nas redes de vizinhança, de pessoalidade. E aí ganham destaque as pesquisas de proximidade, onde os casos são mais que casos, e sim situações passíveis de generalização. Nos “esforços para ganhar a vida” ou nas diversas “formas de viração”, os significados remetem às retribuições em novos circuitos de trabalho relacional, os circuitos de “ajudas”. Essas reflexões nos preparam para que no capítulo 6 seja valorizada a perspectiva metodológica mais próxima às experiências, onde processos de construção narrativa são explorados. Não surpreende que para alcançar o trabalho de cuidado nas suas tessituras do corpo e sexualidade seja a “liberdade da palavra”77 Zelizer VA. Dualidades Perigosas. Mana 2009; 15(1):237-256.(p.212) a grande aposta. Para essa dimensão sensível, a sexualidade dentro das instituições dedicadas ao cuidado comparece, para reafirmar a importância do trabalho em equipes, onde a reflexividade, se valorizada, pode promover a competência profissional, na dimensão relacional de quem cuida e quem recebe. A Sociologia das Emoções, retorna como chave, para não produzir corpos assexuados ou naturalizar/banalizar o contato “com” e “entre” os corpos no cuidado. Para formar equipes precisamos retomar experiências produzindo reflexividade. No capítulo 7, o caso brasileiro emerge com pesquisas comparativas com França e Japão, tendo por centro o envelhecimento populacional e as demandas por cuidado. Para a autora o trabalho de cuidado precisa ser examinado de acordo com suas localizações de sexo, raça, classe, etnia, nacionalidade. Essas localizações nos reenviam às configurações distintas em cada país examinado, com pontos comuns que contrastam desvalorização desse trabalho e reconhecimento de que os sujeitos dele precisam para viver, e sustentar a reprodução material. O capítulo 8 encerra o livro, com as autoras nos apresentando o Cuidado e as Crises, flexionada no seu plural. Aqui a Pandemia comparece, sendo retomadas as perspectivas de desvalorização do trabalho de cuidado e de suas cuidadoras, no Brasil e no mundo. O paradoxo se estabelece: aplaudimos quem cuida e cuidou tão intensamente nas encruzilhadas da Pandemia, e ainda não temos desenvolvido pleno reconhecimento de nossa interdependência. Esta que nos re-situa como diferenciadamente vulneráveis, frente a um Estado que Des-Cuidado, ainda não remunera dignamente, como trabalho essencial, o trabalho de cuidado e de seus/suas cuidadores/as.

A obra de Nadya Guimarães e Helena Hirata se torna leitura obrigatória para pesquisadores da área de saúde coletiva, atualizando as discussões sobre o Cuidado não somente nas suas bases fenomenológicas, mas nas suas dimensões materiais. As gramáticas feministas e suas ondas, revisitadas pelas autoras, são um convite atual e importante para que a saúde coletiva encare o cuidado como política, interdependência constitutiva, e direito fundamental.

Referências

  • 1
    Guimarães NA, Hirata HS. O Gênero do Cuidado: desigualdades, significações e identidades. São Paulo: Atêlie Editorial; 2020.
  • 2
    Boltansky L. A presença das pessoas ausentes. Parágrafo 2015; 2(3):147-156.
  • 3
    Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019.
  • 4
    Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. In: Maus M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif; 2003. p. 183-184.
  • 5
    Santos RV, Pontes AL, Coimbra Jr. C. Um "fato social total": COVID-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):e00268220.
  • 6
    Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia Política do Zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Rev Anthropol 2017; 28(1):223-246.
  • 7
    Zelizer VA. Dualidades Perigosas. Mana 2009; 15(1):237-256.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022
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