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Funcionamento do prontuário eletrônico do cidadão no sistema prisional

Resumo

O artigo teve como objetivo descrever a implantação e funcionamento da estratégia e-SUS AB nas Equipes de Atenção Primária Prisional na Paraíba. Foi realizado estudo de abordagem qualitativa, por meio de entrevistas semiestruturadas, com 21 profissionais, médicos e enfermeiros, de 11 equipes de atenção básica prisionais da Paraíba, além da gerência de saúde da Secretaria de Administração Penitenciária. Para as entrevistas, adotou-se um roteiro semiestruturado, elaborado a partir do roteiro previamente estabelecido pelo Ministério da Saúde para implantação do sistema e-SUS AB. Após transcritas e analisadas segundo a proposta de análise de conteúdo de Bardin, resultaram em três categorias temáticas: o sistema de informação em saúde e o cenário prisional; ações da gestão para implantação do e-SUS AB; e habilidades e competências dos profissionais para manuseio do sistema e-SUS AB. O e-SUS AB foi implantando no sistema prisional com alguns entraves relacionados à estrutura física e tecnológica do cenário, à insuficiência de capacitações profissionais, além da falta de habilidade com tecnologias da informação destacadas pelos entrevistados. As pessoas sentem a necessidade de implantação do prontuário eletrônico do cidadão para garantir a continuidade do cuidado às pessoas privadas de liberdade.

Palavras-chave:
Prisioneiros; Atenção primária à saúde; Sistema de informação em saúde

Abstract

This paper aimed to describe the implementation and operation of the e-SUS AB strategy in the Prison Primary Care Teams in Paraíba. A qualitative study was conducted through semi-structured interviews with 21 professionals, doctors, and nurses, from 11 primary care teams in prisons in Paraíba and the health management of the Penitentiary Administration Secretariat. A semi-structured roadmap was adopted for the interviews from the script previously established by the Ministry of Health for the implementation of the e-SUS AB system, which resulted in three thematic categories after being transcribed and analyzed per Bardin’s content analysis proposal: the health information system and the prison setting; management actions for the implementation of the e-SUS AB and; skills and competencies of professionals to use the e-SUS AB system. The e-SUS AB was implemented in the prison system with some obstacles concerning the physical and technological structure of the setting, the insufficient professional training, and the lack of skills with information technologies highlighted by the respondents. People feel the need to implement the citizen’s electronic medical records to ensure continuity of care for people deprived of liberty.

Key words:
Prisoners; Primary health care; Health information systems

Introdução

O sistema de informações de saúde (SIS) não é um componente separado e independente do sistema de saúde e deve ser projetado de acordo com o sistema de prestação de serviços. É utilizado para coletar, processar, armazenar, recuperar e transferir as informações necessárias, visando a melhoria do tratamento de dados, a fim de extrair informações úteis para o planejamento de saúde, a tomada de decisão e a alocação de recursos por meio de diferentes fontes para fornecer serviços de qualidade e garantir um sistema de saúde integral, com melhoria da saúde da população11 Yazdi-Feyzabadi V, Emami M, Mehrolhassani MH. Health information system in primary health care: the challenges and barriers from local providers' perspective of an area in Iran. Int J Prev Med 2015; 6:57..

A estrutura do SIS deve permitir a geração das informações necessárias para a tomada de decisões em cada nível do sistema de saúde com um determinado montante de recursos, sendo agrupada em dois componentes: o do processo de informação e o da estrutura de gerenciamento. O primeiro envolve os componentes de coleta, transferência, processamento e análise de dados e apresentação de informações para uso em decisões gerenciais. A estrutura de gestão da informação engloba componentes como os recursos dos sistemas de informação e insumos que são utilizados de forma a produzir alta qualidade e informações oportunas para a tomada de decisão11 Yazdi-Feyzabadi V, Emami M, Mehrolhassani MH. Health information system in primary health care: the challenges and barriers from local providers' perspective of an area in Iran. Int J Prev Med 2015; 6:57..

Especificamente no âmbito da atenção primária à saúde (APS), um sistema de informação bem estruturado pode contribuir para melhores resultados de saúde, com maior equidade e menores custos de atendimento, desde que seja projetado de forma a cobrir todos os serviços essenciais prestados nesse nível de assistência, melhorando o acesso aos serviços, a eficiência destes e fornecendo informações de saúde confiáveis ​​para uso em nível local22 Fajdar D, Sahay S, Singh T, Jindal H, Kumar R. Public health information systems for primary health care in India: a situational analysis study. J Family Med Prim Care 2019; 8(11):3640-3646..

Dessa forma, o Ministério da Saúde brasileiro instituiu, em 2013, a estratégia e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB), na intenção de informatizar a APS em todo o território nacional. O e-SUS propõe o incremento da gestão da informação, a automação dos processos, a melhoria das condições de infraestrutura e a melhoria dos processos de trabalho por meio do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC), da Coleta de Dados Simplificada (CDS) e de aplicativos (App) para dispositivos móveis33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 1.412, de 10 de julho de 2013. Institui o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB). [acessado 2021 nov 20]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1412_10_07_2013.html
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Em 2017, com a publicação da nova Política Nacional de Atenção Básica, o Ministério da Saúde incorpora as Equipes de Atenção Primária Prisional ao elenco de equipes destinadas a populações específicas, com o objetivo de garantir maior acesso aos serviços de saúde às pessoas privadas de liberdade44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2017; 22 set., conforme previa a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), publicada em 2014. A PNAISP tem o objetivo de garantir às pessoas privadas de liberdade no sistema prisional o cuidado integral no SUS, prevê que os serviços de saúde no sistema prisional passem a ser ponto de atenção da Rede de Atenção à Saúde (RAS) do SUS e dessa forma estabelece a atenção primária no âmbito prisional como porta de entrada do sistema para as pessoas privadas de liberdade (PPL)55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Brasília: MS; 2014..

Nesse sentido, a necessidade de informações de saúde precisas e confiáveis desse público qualifica sua assistência, ao passo que o seu registro atualizado proporciona o cuidado longitudinal, tanto fora quanto no interior do sistema prisional, fornecendo a oportunidade para os trabalhadores de saúde garantirem a continuidade do cuidado. Considerando esses aspectos, o estudo teve como objetivo descrever a implantação e o funcionamento da estratégia e-SUS AB nas Equipes de Atenção Primária Prisional na Paraíba.

Metodologia

Estudo transversal, de abordagem qualitativa, realizado com profissionais de saúde de 11 equipes de atenção primária prisionais da Paraíba, além da gerência de saúde da Secretaria de Administração Penitenciária no período de agosto a dezembro de 2019.

Inicialmente, solicitou-se na Secretaria de Administração Penitenciária do Estado (SEAP) a identificação das unidades prisionais com equipe de saúde implantada e autorização para realização do estudo. Após trâmite administrativo, apresentamos pessoalmente o projeto para os profissionais que trabalhavam há pelo menos seis meses nas unidades e com cadastro regular no CNES como membro de equipes de atenção primária prisional, o que totalizaria 22 profissionais, médicos e enfermeiros. Identificamos, para exclusão, um profissional que estava de férias. Nos turnos indicados pela equipe, a pesquisadora esteve na unidade, aguardando momento oportuno para realização da entrevista. Assim, o fechamento da amostra se deu por exaustão, abordando todos os profissionais elegíveis (21), além da coordenadora de saúde do sistema prisional, finalizando com um total de 22 pessoas.

Durante as entrevistas, que foram gravadas em áudio e tiveram duração média de 30 minutos, alguns cuidados foram tomados: a observância do funcionamento do gravador e o conforto/inviolabilidade do ambiente; a adequação e clareza na linguagem do entrevistador; e a atenção aos gestos, entonação de voz e/ou momentos de silêncio do entrevistado.

Para as entrevistas, adotou-se um roteiro semiestruturado, elaborado a partir do roteiro previamente estabelecido pelo Ministério da Saúde para implantação do sistema e-SUS AB, o qual foi divido em seis seções66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. e-SUS Atenção Básica: manual de implantação. Brasília: MS; 2014.: experiência prévia do profissional com o sistema de saúde; diagnóstico da capacidade de recursos humanos nas equipes; capacidade tecnológica disponível; qualificação dos profissionais em relação à tecnologia; equipe de suporte à informatização; e estratégia de implantação. As entrevistas foram transcritas, apresentadas, em momento oportuno, aos profissionais para comentários, acréscimos ou supressões. Posteriormente, as falas foram sistematizadas, submetidas à análise de conteúdo, conforme recomendações de Bardin77 Rumisha SF, Lyimo EP, Mremi IR, Tungu PK, Mwingira VS, Mbata D. Data quality of the routine health management information system at the primary healthcare facility and district levels in Tanzania. BMC Med Inform Decis Mak 2020; 20(1):340., sendo extraídas as categorias, analisadas com base nos pressupostos do referencial teórico metodológico.

Conforme recomendações do Conselho Nacional de Saúde, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UEPB, CAEE 16301319.2.0000.5187. Antes da coleta de dados, os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização para Gravação de Voz. A fim de preservar o anonimato, utilizou-se a letra “P” para identificar os profissionais (do serviço e o gestor), seguida dos algarismos arábicos na sequência da realização das entrevistas.

Resultados e discussão

Das 22 pessoas entrevistadas, dez eram médicas, com médias de idade de 48 anos e de tempo de trabalho de 4,5 anos, sendo cinco do sexo masculino e cinco do feminino; 11 enfermeiros, com médias de idade de 38,4 anos e de tempo de trabalho de 5,5 anos, sendo três do sexo masculino e cinco do feminino e; uma gestora do sexo feminino, 27 anos, psicóloga, cinco anos em atividade relacionada à administração penitenciária e sem experiência prática com o e-SUS. Quanto a possuir outros vínculos, 76,2% dos entrevistados responderam positivamente, 66,6% trabalham ou já trabalharam na atenção primária à saúde e apenas 23,8% já tiveram experiência com o e-SUS.

Das falas dos entrevistados emergiram três categorias de análise: o sistema de informação em saúde e o cenário prisional; ações da gestão para implantação do e-SUS AB; e habilidades e competências dos profissionais para manuseio do sistema e-SUS AB.

O sistema de informação em saúde e o cenário prisional

A baixa qualidade dos dados dos sistemas de informação em saúde no geral está relacionada a diversos fatores que incluem desde recursos humanos insuficientes com competência central em gestão de dados, baixa motivação e falta de incentivos, até infraestrutura deficiente, recursos inadequados para conduzir supervisão de apoio abrangente e falta de procedimentos operacionais padrão77 Rumisha SF, Lyimo EP, Mremi IR, Tungu PK, Mwingira VS, Mbata D. Data quality of the routine health management information system at the primary healthcare facility and district levels in Tanzania. BMC Med Inform Decis Mak 2020; 20(1):340.. Essa realidade foi relatada também no cenário prisional, conforme a fala a seguir.

O cenário prisional desafia. A população carcerária é uma população que só cresce e nós ficamos sempre com a mesma quantidade de profissionais, poderia ter mais uma pessoa só pra digitar produção, outro para auxiliar a equipe na condução da gestão dos fluxos de atenção à saúde. Além do que a quantidade de computadores não é suficiente [...] em algumas unidades a gente tem uma série de dificuldades, tem unidade que não tem internet, ou o local de saúde não pega internet, a maioria dos profissionais não tem computador próprio (P1).

O cenário prisional apresenta características estruturais que não favorecem a implementação de um sistema de informação bem estruturado. Embora exista a formação das equipes de APS nas unidades prisionais estudadas, elas parecem não estar aptas às realidades de um processo de trabalho informatizado, conforme algumas falas:

A população é sob tutela. Aqui acontece tudo como na atenção primária, mas não somos preparados para atuar neste cenário. As doenças não mudam, mas a organização e estruturação do serviço faz diferença (P6).

A capacidade tecnológica disponível não é suficiente. Não tem computadores. Os prontuários (fichas de atendimento) ficam com a gente e não são digitalizados, e em caso de transferência o prontuário acompanha o apenado, e em caso de soltura o prontuário continua na unidade. Mas como não está com o e-SUS implantado, as informações se perdem se o sujeito recebe alvará de soltura (P8).

No momento, a gente apresenta determinadas limitações (não tem computador, impressora nem internet). Todos os nossos dados são manuais, e mensalmente, bem como trimestralmente, a gente mantem o sistema alimentado (P15).

Nada me garante que vai ser informada exatamente como eu passei. Para a gente, o ideal seria que tivesse o computador com o prontuário eletrônico, para você mesmo fazer a sua digitação e não passar para um terceiro. Porque um material desse pode ser extraviado no percurso (P18).

Estudo realizado em território palestino evidencia que em muitas instituições de saúde os dados ainda são coletados manualmente, em vez de serem digitalizados. A consequência desse processo é a inconsistência de dados ou incompletude, assim como maior dificuldade no monitoramento dos pacientes e na análise dos dados epidemiológicos88 Jabareen H, Khader Y, Taweel A. Health information systems in Jordan and Palestine: the need for health informatics trainin. EMHJ 2020; 26(11):1323-1330..

A precariedade das informações inseridas as torna pouco úteis para programar ações de saúde dirigidas à população na qual se baseiam os dados do sistema. Além disso, questiona-se até que ponto os SIS contemplam as reais necessidades dos profissionais assistenciais para a análise, a investigação e a estruturação das ações em saúde. O bom uso dos sistemas de informação possibilita a criação de relatórios consistentes, que nos darão uma imagem nítida e correta da situação do serviço que temos, facilitando atividades de monitoramento99 Santos TO, Pereira LP, Silveira DF. Implantação de sistemas informatizados na saúde: uma revisão sistemática. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude 2017; 11(3)..

Estudo de revisão sistemática1010 Tummers J, Tekinerdogan B, Tobi H, Cacal C, Schalk B. Obstacles and features of health information systems: a systematic literature review. Comput Biol Med 2021; 137:104785. reuniu cinco grupos diferentes de obstáculos relacionados à implantação e funcionamento dos SIS: problemas técnicos, de uso, de qualidade, de funcionalidade operacional e de manutenção e suporte. Os problemas técnicos incluem obstáculos relacionados à instalação de SIS, disponibilidade de hardware e velocidade e disponibilidade da rede. A raiz desses problemas possivelmente está na infraestrutura inadequada de tecnologias de informação e comunicação1010 Tummers J, Tekinerdogan B, Tobi H, Cacal C, Schalk B. Obstacles and features of health information systems: a systematic literature review. Comput Biol Med 2021; 137:104785..

O uso da informação será tão importante e rotineiro quanto melhor a tecnologia embutida na máquina representar a realidade do trabalho do profissional de saúde. O registro eletrônico reduz os erros e padroniza conceitos que podem ser agrupados em um conjunto de dados, dando visibilidade às ações que facilitam diagnósticos para a gestão, para o monitoramento da linha de cuidado de saúde dos indivíduos, que possibilitam o planejamento e a tomada de decisão em saúde. Além disso, a incorporação tecnológica dos SIS na saúde torna a produção de informações mais próxima do profissional que registra os dados, o que tende a refletir de forma mais verdadeira a realidade vivenciada1111 Gava M, Ferreira LS, Palhares D, Mota ELA. Incorporação da tecnologia da informação na atenção Básica do SUS no Nordeste do Brasil: expectativas e experiências. Cien Saude Colet 2016; 21(3):891-902..

Ações da gestão para implantação do e-SUS AB

Em julho de 2013, por meio da Portaria 1.412, o Ministério da Saúde instituiu o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) para todas as modalidades de equipes de atenção básica no território brasileiro. O SISAB passa a ser o sistema de informação vigente para fins de financiamento e adesão aos programas e estratégias da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 1.412, de 10 de julho de 2013. Institui o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB). [acessado 2021 nov 20]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1412_10_07_2013.html
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Considerando a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) e a atualização da PNAB em 2017, que integram as equipes de Atenção Básica Prisionais como ponto de atenção e porta de entrada da Rede de Atenção à Saúde do SUS, essas equipes também devem utilizar o sistema de informação em saúde vigente para registro das ações de saúde na AB, visando subsidiar a gestão, o planejamento, a investigação clínica e epidemiológica e a avaliação dos serviços de saúde44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2017; 22 set..

Sobre o processo de implantação do sistema e-SUS AB nas unidades prisionais, as pessoas afirmaram:

Para implantação, o pessoal da Secretaria deu apoio. Um dia de explicação e outro dia de treinamento no prontuário eletrônico na própria Secretaria, mostrando o passo a passo. Mas não lembro mais. Mas a Secretaria de Saúde fez (P2).

A gente teve uma convocação para apresentar o sistema, nada mais que isso, uma capacitação em forma de palestra (P10).

A ação para implantação que teve foi essa de um mês. Trouxeram uma pessoa do ministério para treinar a equipe de atenção básica do estado, mas precisaria ter sido uma estratégia muito mais afinada e teríamos que ter os materiais para operacionalizar, isso e não tivemos (P1).

Segundo a PNAISP, entre as atribuições de cada entidade federativa na implantação das equipes de APS prisional, é função do gestor municipal planejar a capacitação das equipes de saúde e dos profissionais de suporte para tecnologia da informação55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Brasília: MS; 2014.. Os gestores precisam se inteirar das experiências em outras secretarias municipais, estaduais e no ministério, e dividir dificuldades e conquistas, para colaboração e até mesmo propiciar pactuações intergestoras nesse processo, além de, junto à academia, fomentar nos profissionais a troca de conhecimentos com relação à tecnologia da informação em saúde, por meio de rodas de conversa e atividades que possam auxiliar os profissionais a conhecer as ferramentas que possuem para tomadas de decisões99 Santos TO, Pereira LP, Silveira DF. Implantação de sistemas informatizados na saúde: uma revisão sistemática. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude 2017; 11(3)..

A implementação de um SIS é complexa e depende de fatores organizacionais, estruturais, tecnológicos e humanos para que seja bem-sucedida. A realidade de estudos em países árabes aponta para algumas barreiras que interferem no bom funcionamento de um SIS em hospitais, como a falta de equipe bem treinada, má gestão e burocracia, bem como a desvalorização de sua importância88 Jabareen H, Khader Y, Taweel A. Health information systems in Jordan and Palestine: the need for health informatics trainin. EMHJ 2020; 26(11):1323-1330..

Na realidade brasileira, o e-SUS AB representa possibilidades de avanços e qualificação no uso da informação. Entretanto, seu sucesso não depende apenas de suas características técnicas, mas da aceitação entre os diversos atores envolvidos e suas mobilizações1212 Cavalcante RB, Esteves CJS, Gontijo TL, Brito MJM, Guimarães EAA, Barbosa SP. Informatização da atenção primária à saúde no Brasil: a rede de atores. Rev Bras Enferm 2019; 72(2):354-361.. Sobre a estratégia e-SUS AB, nenhuma das unidades pesquisadas alcançou a etapa de implantação do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC), conforme as falas a seguir:

Não há prontuário eletrônico. Não utiliza o sistema e-SUS PEC para fornecer atestados, para solicitar exames, para prescrever medicamentos, para realizar encaminhamentos para profissionais da sua equipe ou de outras unidades, é tudo manuscrito (P1).

É preferível que a gente pudesse utilizar de fato o prontuário eletrônico, facilitaria muito a vida da gente. Em hospitais a gente já utiliza o prontuário eletrônico, então é tudo mais simples, porque, tudo que você precisa do paciente, é só entrar no arquivo e está à disposição (P3).

O que eu posso acrescentar é que seria de grande importância ao sistema prisional como um todo a implantação do prontuário eletrônico, porque a grande maioria dos pacientes não tem conhecimento da sua história prévia de atendimento (P8).

No Prontuário Eletrônico do Cidadão, todas as informações clínicas e administrativas do paciente ficam armazenadas no contexto da Unidade Básica de Saúde (UBS), tendo como principal objetivo informatizar o fluxo de atendimento ao cidadão realizado pelos profissionais de saúde, possibilitando: acesso rápido às informações de saúde e das intervenções realizadas; melhoria na efetividade do cuidado e possível redução de custos, graças à otimização dos recursos, além de aprimorar e automatizar o processo de envio de informações da atenção básica para o Ministério da Saúde, impactando a qualificação dos sistemas de informações1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). e-SUS Atenção Primária à Saúde: Manual do Sistema com Prontuário Eletrônico do Cidadão PEC. Brasília: MS; 2020..

Estudos realizados a respeito da implantação do prontuário eletrônico do paciente no Brasil mostram que essa ferramenta tem sido implementada em diversos segmentos dos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, com prevalência de resultados positivos, apesar de diversos entraves decorrentes das dificuldades relacionadas ao sistema de saúde brasileiro. Entre os resultados, pode-se destacar: melhoria do acesso e da qualidade das informações; organização das tarefas e facilidades no monitoramento do paciente, contribuindo para melhoria da qualidade na assistência; ganhos no conteúdo das informações e redução de custo no manuseio de prontuários em papel, além de agilizar o acesso às informações1414 Loureção LG, Ferreira Júnior CJ. Implantação do prontuário eletrônico do paciente no Brasil. Enfermagem Brasil 2016; 15(1):44-53..

Habilidades e competências dos profissionais para manuseio do sistema e-SUS AB

A Política Nacional de Informação e Informática em Saúde, instituída pelo Ministério da Saúde em 2015, tem como uma de suas diretrizes implementar soluções de tecnologia de informação e comunicação que possibilitem a melhoria na organização do processo de trabalho em saúde, e nesse sentido deve apoiar a prática profissional, facilitando e organizando os registros rotineiros, propiciando a realização de consultas e relatórios sobre as informações produzidas, o que facilita o agendamento, a referência e a contrarreferência de usuários e potencializa o uso da informação e da informática em saúde1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Informação e Informática em Saúde. Brasília: MS; 2016.. Para tanto, os profissionais precisam estar habilitados a desenvolver essa prática, de forma que os dados inseridos nos SIS sejam de fato transformados em informações úteis. Sobre esse aspecto, pôde-se extrair das entrevistas:

Mas eu acredito que a capacitação pode não ter sido suficiente. As fichas eles entenderam. Mas a habilidade técnica para registro no computador é visivelmente comprometida pela pouca habilidade de manuseio tecnológico, ou embora tenham habilidade e competência, resistem e inviabilizam o uso (P1).

Essas capacitações não capacitam nem garantem habilidades se você não usar diariamente. Houve uma amostragem, uma apresentação do sistema. Mostrou-se todos os impressos e como a gente atuaria, mas no prontuário eletrônico ninguém teve acesso (P4).

A única habilidade necessária é saber clinicar. Manusear sistema ou implantar não impacta assistência. Se assim fosse, nenhuma criança teria mais doenças imunopreveníveis, afinal o sistema do PNI é do século passado (P7).

Além da falta de capacitações necessárias para que os profissionais desenvolvessem habilidades técnicas suficientes para o manuseio do sistema e-SUS, observa-se ainda resistência, especialmente dos médicos, em adotar tecnologias de informação para qualificar sua assistência.

Um estudo de revisão sistemática sobre a adoção do prontuário eletrônico por médicos concluiu que a falta de conhecimento técnico e habilidades do médico para lidar com essa ferramenta é uma das barreiras importantes para sua adoção. Como os médicos são um grupo de usuários significativo do atendimento aos pacientes, sua intenção de adotar a tecnologia à assistência à saúde determina o sucesso geral de sua implementação1616 Dutta B, Hwang HG. The adoption of electronic medical record by physicians: a PRISMA-compliant systematic review. Medicine (Baltimore) 2020; 99(8):e19290..

Em 2019, a Organização Mundial de Saúde lançou um projeto de estratégia global de saúde digital, com o objetivo de avançar e aplicar tecnologias digitais de saúde para alcançar a visão de saúde para todos. Nesse ínterim, os profissionais de saúde precisam estar preparados para implantar ou usar as tecnologias de saúde em seu trabalho, e para tanto, faz-se necessário o planejamento de capacitações que incluam a capacitação da força de trabalho, variando de profissionais em tecnologias de informação e comunicação a profissionais de saúde que prestam cuidados e serviços de saúde, a fim de instilar capacidades, atitudes e habilidades que podem variar de ciências da computação e planejamento estratégico a finanças e gestão1717 World Health Organization (WHO). Global strategy on digital health 2020-2024 [Internet]. 2019. [cited 2021 out 18]. Available from: https://saluddigital.com/wp-content/uploads/2019/09/Draft-Global-Strategy-on-Digital-Health.pdf
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Considerações finais

O e-SUS AB foi implantado no sistema prisional com alguns entraves relacionados à estrutura física e tecnológica do cenário, à insuficiência de capacitações profissionais, além da falta de habilidade com tecnologias da informação destacadas pelos entrevistados. Vale ainda destacar a insatisfação das pessoas no que diz respeito à ausência do software do Prontuário Eletrônico do Cidadão, que facilitaria a coordenação do cuidado à pessoa privada de liberdade, e também a falta de habilidade e resistência de alguns profissionais em trabalhar com um serviço informatizado.

(Re)conhecer os entraves que caracterizam a implantação e o funcionamento do e-SUS AB no sistema prisional pode contribuir para um olhar diferenciado por parte da gestão, em uma realidade divergente das Unidades Básicas de Saúde tradicionais, proporcionando melhores condições para que o efetivo uso do sistema de informação em saúde possa levar à melhor qualificação do atendimento à pessoa privada de liberdade, à medida em que garante que os atributos essenciais da atenção primária à saúde sejam contemplados.

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Editores-chefes:

Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2021
  • Aceito
    13 Jul 2022
  • Publicado
    15 Jul 2022
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