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Teorização sobre os limites à inserção da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família

Resumo

Este estudo objetivou construir teorização a partir da concepção de atores sociais acerca das razões da não inserção da atenção à saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família (ESF) no município de Juiz de Fora, Minas Gerais. Trata-se de um estudo qualitativo, fundamentado no referencial teórico construído com base na Política Nacional de Saúde Bucal e metodológico na Teoria Fundamentada nos Dados (TFD). Foram realizadas 11 entrevistas intensivas com atores sociais da gestão, do controle social e cirurgiões-dentistas do serviço público do município. Os dados foram categorizados segundo a TFD e a partir do processo de análise dos dados, construiu-se a teorização do estudo e obteve-se como categoria central “Consequência de uma concepção hegemônica doença-centrada da saúde para o modelo de atenção à saúde bucal”. A concepção de saúde dos atores sociais do município contribuiu para a não inserção da atenção à saúde bucal na ESF. A teorização permitiu a identificação da origem das condições do fenômeno estudado e poderá contribuir para tomada de decisões dos atores sociais em futuras ações políticas.

Palavras-chave:
Saúde bucal; Estratégia Saúde da Família; Teoria Fundamentada; Políticas de Saúde

Abstract

This study aimed to theorize, by means of social actors’ conception, about the reasons for the non-inclusion of oral health in the Family Health Strategy (FHS) in the city of Juiz de Fora, Minas Gerais, Brazil. This is a qualitative, exploratory, descriptive, and analytical study based on the grounded theory methodology and the National Oral Health Policy. Eleven interviews were performed with public managers, delegates who participate in the municipal health council, and dental surgeons who belong to the public health service. The theorization of the study was created through the data analysis process, which resulted in “a consequence of the dominant disease-centered oral health care model” as the main category. Data were categorized according to a methodological framework. The health concept set forth by local social actors contributed to the non-inclusion of oral healthcare teams (OHTs) in the FHS. This theorization identified the origins of the studied phenomenon and can aid in future policy decision-making carried out by local social actors.

Key words:
Oral Health; Family Health Strategy; Grounded Theory; Health Policies

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) resultou do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) pela superação do modelo assistencial hegemônico biomédico11 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377(9779):1778-1797.. A luta pelo direito universal à saúde, a determinação social da saúde, o conceito de saúde a partir dos determinantes sociais, a descentralização da gestão, e o controle social compunham o rol de reivindicações do movimento e propiciaram a sua incorporação constitucional22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 394(10195):345-356.,33 Souto LRF, Oliveira MHB. Movimento da Reforma Sanitária Brasileira: um projeto civilizatório de globalização alternativa e construção de um pensamento pós-abissal. Saude Debate 2016; 40(108):204-218.. O desenvolvimento das políticas de saúde evidenciou o protagonismo da Atenção Primária à Saúde (APS) e da adesão à Saúde da Família na reorientação do cuidado22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 394(10195):345-356. em saúde em resposta às necessidades de saúde da população11 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377(9779):1778-1797..

Apesar da garantia constitucional o SUS não foi consolidado, sendo seu principal desafio de caráter político44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728.. A saúde pública brasileira vem sendo conduzida pela perspectiva neoliberal, desde a sua criação. Medidas de austeridade contribuíram para o subfinanciamento crônico resultando em um SUS não universal, restrito e excludente. A Emenda Constitucional nº 9555 Brasil. Presidência da República. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2015; 15 dez., é uma ameaça aos pressupostos constitucionais do SUS e instala-se um cenário de desfinanciamento do sistema66 Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública - austeridade versus universalidade. Saude Debate 2019; 43(n. esp. 5):58-70.. São muitos os obstáculos e ameaças ao SUS, de cunho ideológico, político, econômico, cultural e organizacional44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728.. Entre eles, destacam-se: a reprodução do modelo hegemônico de atenção à saúde com enfoque na doença e em procedimentos, as dificuldades na construção das Redes de Atenção à Saúde, a precariedade na infraestrutura dos serviços, “a desvalorização dos trabalhadores de saúde, através das terceirizações e da precarização do trabalho”44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728. e o privilégio do Estado ao setor privado da saúde por meio de subsídios, desonerações e sub regulamentação22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 394(10195):345-356.,44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728.. Esses retrocessos afetam a saúde da população brasileira e a garantia de seus direitos fundamentais44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728.,66 Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública - austeridade versus universalidade. Saude Debate 2019; 43(n. esp. 5):58-70..

Em 2004, a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) reorientou o modelo de atenção à saúde bucal incorporando o conceito ampliado de saúde, o componente social do processo saúde-doença, o fortalecimento do SUS e os princípios da integralidade do cuidado e da promoção da saúde77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.

8 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98.
-99 Pucca Jr GA, Gabriel M, Araujo ME, Almeida FC. Ten years of a National Oral Health Policy in Brazil: innovation, boldness, and numerous challenges. J Dent Res 2015; 94(10):1333-1337.. Na reorientação do modelo, incluíram-se as equipes de saúde bucal (eSB) na Estratégia Saúde da Família (ESF). Foram destinados recursos financeiros para as ações de saúde bucal, incentivo à educação em saúde, utilização de indicadores epidemiológicos, estabelecimento de uma rede de atenção por meio dos Centros de Especialidade Odontológicas (CEO) e a criação dos Laboratórios Regionais de Prótese Dentária (LRPD)77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.,99 Pucca Jr GA, Gabriel M, Araujo ME, Almeida FC. Ten years of a National Oral Health Policy in Brazil: innovation, boldness, and numerous challenges. J Dent Res 2015; 94(10):1333-1337.. Nos anos seguintes a 2004, apesar dos incentivos financeiros, a continuidade e a manutenção da sustentabilidade da política foram afetadas por problemas de subfinanciamento, limites na coordenação política e gerencial e na governabilidade nos níveis estaduais e municipais1010 Chaves SCL, Almeida AMFL, Rossi TRA, Santana SF, Barros SG, Santos CML. Oral health policy in Brazil between 2003 and 2014: scenarios, proposals, actions, and outcomes. Cien Saude Colet 2017; 22(6):1791-1803.. A prática odontológica tradicional permaneceu predominante marcada por conflitos e contradições1111 Soares CL, Paim JS. Critical issues for implementing oral health policy in the city of Salvador, Bahia State, Brazil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):966-974.,1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.. Além disso, os profissionais não assumiram como sua a PNSB desobrigando-se da responsabilidade de fazê-la efetiva no cuidado à saúde1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021..

Entre os anos de 2015 e 2017, houve um cenário restritivo político para as ações de saúde bucal com redução da inserção das eSB na ESF, crescimento da oferta de serviços odontológicos privados, restrição no financiamento público, queda em indicadores de saúde bucal1414 Chaves SCL, Almeida AMFL, Reis CS, Rossi TRA, Barros TRA. Política de Saúde Bucal no Brasil: as transformações no período 2015-2017. Saude Debate 2018; 42(n. esp. 2):76-91. e dificuldades na implantação da PNSB nos municípios88 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98.,1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878.. O processo de implementação de políticas públicas em saúde bucal é objeto de estudo de diversos autores1111 Soares CL, Paim JS. Critical issues for implementing oral health policy in the city of Salvador, Bahia State, Brazil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):966-974.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878.

16 Aquilante AG, Aciole GG. Building a "Smiling Brazil"? Implementation of the Brazilian National Oral Health Policy in a health region in the State of São Paulo. Cad Saude Publica 2015; 31(1):82-96.
-1717 Caldas AS, Cruz DN, Barros SG, Rossi TRA, Chaves SCL. The oral health policy in a municipality of Bahia: the agents of state bureaucracy. Saude Debate 2018; 42(119):886-900.. Contudo, são escassos os trabalhos sobre a concepção dos sujeitos envolvidos na sua implantação em diferentes contextos políticos.

A reorientação do modelo de atenção à saúde bucal com inserção na ESF77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004. não ocorreu em parte dos municípios brasileiros1818 Mattos GC, Ferreira EF, Leite IC, Greco RM. The inclusion of the oral health team in the Brazilian Family Health Strategy: barriers, advances and challenges. Cien Saude Colet 2014; 19(2):373-382., sendo necessário que os motivos sejam investigados. Este estudo objetivou construir teorização acerca da não inserção da atenção à saúde bucal na ESF, num município brasileiro, a partir da concepção de atores sociais: gestores em saúde, cirurgiões-dentistas (CD) inseridos no SUS municipal e membros do Conselho Municipal de Saúde (CMS). O ineditismo deste estudo reside na teorização sobre o fenômeno da não inserção da saúde bucal na ESF a partir da concepção de atores sociais, sendo a sua compreensão fundamental para o desenvolvimento das políticas de saúde. A teorização poderá contribuir com a tomada de decisão dos gestores públicos em relação à melhoria da atenção à saúde bucal em consonância com os princípios da PNSB e para o fortalecimento da saúde bucal no SUS.

Método

Desenho do estudo

Trata-se de um estudo qualitativo realizado por meio do referencial metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD)1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.. A TFD tem a finalidade de gerar uma explicação teórica para um processo, uma ação ou uma interação a partir das concepções que os sujeitos expressam sobre o fenômeno estudado2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.. É adequada por possuir caráter exploratório, quando pouco se sabe sobre o objeto do estudo, por possuir capacidade de gerar uma teoria com forte embasamento na realidade local2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009. e por ter seu foco na compreensão interpretativa dos significados e nas experiências dos sujeitos1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.. O resultado encontrado é uma teorização de nível substantivo2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.. Essa pesquisa, por ser derivada de dados, oferece melhor discernimento e entendimento sobre o fenômeno1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008..

O referencial teórico foi elaborado com base na análise crítica e sistemática da PNSB constituindo um eixo básico político para reorientação do modelo assistencial na micropolítica77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.. Oriunda do campo da saúde bucal coletiva1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,2121 Roncalli AG. Epidemiologia e saúde bucal coletiva: um caminhar compartilhado. Cien Saude Colet 2006; 11(1):105-114., ela busca romper com o paradigma biomédico operante, por meio da incorporação da epidemiologia, da promoção da saúde, em defesa da cidadania e da saúde bucal como um direito. A qualificação da atenção básica é apresentada como pressuposto fundamental para a reorientação do modelo, com a incorporação da saúde bucal na ESF, bem como o estabelecimento da coordenação do cuidado e da Rede de Atenção à Saúde Bucal. Os CEO configuram a atenção secundária devendo ser referenciados pelas eSB. A PNSB evidencia que a atuação da eSB não deve se limitar ao campo técnico odontológico, devendo se pautar no conceito ampliado de saúde centrado no cuidado, na prevenção e na promoção da saúde. Orienta a construção da consciência sanitária em profissionais do SUS e usuários, entendendo que a saúde bucal é um direito de cidadania. A gestão dos serviços de saúde bucal deve definir democraticamente a política, assegurando a participação da população, por meio dos Conselhos de Saúde, e de trabalhadores, pois desse modo há uma melhor identificação dos problemas e um delineamento de estratégias de ações que respondam as necessidades reais de saúde da população77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.,99 Pucca Jr GA, Gabriel M, Araujo ME, Almeida FC. Ten years of a National Oral Health Policy in Brazil: innovation, boldness, and numerous challenges. J Dent Res 2015; 94(10):1333-1337.,1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878..

Local do estudo

O estudo foi realizado no município de Juiz de Fora (JF), Minas Gerais, região Sudeste do Brasil. JF possui população estimada de 573.285 habitantes, e Índice de Desenvolvimento Humano de 0,7782222 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Juiz de Fora - População estimada [Internet]. 2020 [acessado 2021 fev 11]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/juiz-de-fora/panorama.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ju...
. É um polo regional de provimento de serviços essenciais na área da saúde, educação, comércio e indústria2323 Chaves ST. Estudo de caso a cidade de Juiz de Fora, MG: sua centralidade e problemas socioeconômicos. Rev GEOMAE 2011; 2(n. esp. 1):155-170.. O município é sede da Macrorregião Sudeste de Saúde do estado com extensa rede de serviços de alta densidade tecnológica, atendimento ambulatorial e hospitalar2424 Minas Gerais. Secretaria Municipal de Saúde de Juiz de Fora. Plano de Saúde 2014-2017 [Internet]. 2012 [acessado 2021 ago 10]. Disponível em: https://www.pjf.mg.gov.br/conselhos/cms/arquivos/plano_saude_2014_2017.pdf.
https://www.pjf.mg.gov.br/conselhos/cms/...
.

Em dezembro de 2020, o município apresentava cobertura estimada da população por serviços de saúde bucal de 11,35% na atenção básica, com nenhuma eSB inserida na ESF. JF conta com cinco CEO distribuídos nas regiões de saúde centro, oeste, norte e sul e 183 dentistas atuando no SUS. Em relação a condição de saúde bucal da população, não foram identificados dados epidemiológicos representativos.

Sujeitos do estudo

Os sujeitos são atores sociais membros do CMS, gestores municipais e estaduais de saúde e CD inseridos no SUS. Foram escolhidos informantes capazes de fornecer informações relevantes, com base em suas concepções e experiências vividas2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.,2525 Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. no processo da não-inserção da atenção à saúde bucal na ESF. Um informante-chave indicou sujeitos que poderiam contribuir. Na medida em que foram sendo contactados, os entrevistados foram indicando novos informantes que se relacionavam com o tema. A inclusão dos sujeitos foi realizada de forma intencional mediante deliberação do grupo de pesquisadores. Essa técnica foi adequada, visto que o objeto do estudo implica em questões sensíveis e obscuras de âmbito privado, requerendo o conhecimento de pessoas pertencentes ao grupo envolvido no contexto do fenômeno2525 Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009.,2626 Moser A, Korstjens I. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 3: Sampling, data collection and analysis. Eur J Gen Pract 2018; 24(1):9-18..

A caracterização dos participantes fora abordada de forma a preservar a identidade e garantir o sigilo. Foram realizados 13 convites. Dois sujeitos recusaram participar: um por motivo de doença na família e outro por considerar que sua experiência não contribuiria com a pesquisa. Ao final, 11 foram entrevistados. Não houve perda de dados. Alguns sujeitos foram atuantes como gestores e trabalhadores do serviço, outros como trabalhadores e do controle social. A gestão municipal de saúde bucal foi representada por 7 participantes, a gestão no nível estadual, o controle social e os trabalhadores do serviço por 2 cada um.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista intensiva2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009., no período de novembro de 2020 e maio de 2021, de forma remota, por meio da plataforma Google meet, devido aos cuidados de distanciamento social tendo em vista a pandemia de COVID-192727 Sah LK, Singh DR, Sah RK. Conducting Qualitative Interviews using Virtual Communication Tools amid COVID-19 Pandemic: A Learning Opportunity for Future Research. J Nepal Med Assoc 2020; 58(232):1103-1106.. Uma pesquisadora principal conduziu as entrevistas e outra como suporte técnico. Um dos participantes solicitou que a entrevista fosse presencial, fora do horário comercial, nas dependências da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). A solicitação foi atendida considerando a relevância da contribuição do participante. Nesse caso, foram adotadas as medidas de biossegurança recomendadas na prevenção à COVID-19. As entrevistas foram agendadas em momentos confortáveis para os participantes. A duração média foi de 40 minutos.

As impressões iniciais e insights foram registrados imediatamente após o término das entrevistas por meio de memorandos intuitivos, a fim de permitir comparações sucessivas e a não perda dos fatos notáveis2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.,2626 Moser A, Korstjens I. Series: Practical guidance to qualitative research. Part 3: Sampling, data collection and analysis. Eur J Gen Pract 2018; 24(1):9-18.. As entrevistas foram gravadas no computador pelo aplicativo Open Broadcaster Software e transcritas em documento de Word (Microsoft Office®).

O grupo de pesquisa produziu um roteiro norteador com base nas informações de domínio público sobre o fenômeno estudado e no conhecimento de conceitos prévios sobre o tema1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.,2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.. A entrevista foi dividida em três momentos: questões abertas iniciais com foco na trajetória profissional dos participantes; intermediárias, em que buscou-se compreender o funcionamento, características e organização da saúde pública e da atenção à saúde bucal no município, concepção dos sujeitos em relação à não-inserção da atenção à saúde bucal na ESF; e questões finais, relacionadas às expectativas da inserção da saúde bucal na ESF, além de configurar um momento de abertura para os sujeitos exporem suas percepções sobre a entrevista e se havia algo a ser acrescentado. No decorrer das entrevistas e da análise foram incluídas novas questões emergidas pelos dados1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.,2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009. consideradas necessárias para a compreensão do fenômeno. O roteiro norteador pode ser consultado no material complementar (https://doi.org/10.48331/scielodata.5DRGF9).

Análise dos dados

A análise e a coleta dos dados foram concomitantes, assim como a elaboração de sucessivos memorandos1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.. A análise ocorreu de forma livre e criativa, utilizando as ferramentas e procedimentos analíticos sistematizados provenientes do método permitindo a emersão de categorias, códigos e conceitos1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.,2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.. A revisão da literatura foi realizada durante o percurso da pesquisa e os pesquisadores mantiveram a “mente aberta” em relação aos dados e para os seus significados1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008..

Após a transcrição, foi iniciado o processo de análise dinâmico e fluido por meio da codificação. Seguiu o método comparativo de análise indutiva, marcada pela comparação entre dados, códigos e categorias1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.. A codificação foi realizada em três etapas; codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva. Essas etapas têm como objetivo encontrar a conceituação e a categorização dos dados que representam o fenômeno1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.. Podem ser consultados no material suplementar um exemplo de análise de dados da etapa de codificação aberta e um exemplo de memorando da codificação axial (https://doi.org/10.48331/scielodata.5DRGF9).

A categoria central do estudo foi elaborada e discutida pelos pesquisadores de forma a refinar a teorização1919 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.,2020 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. São Paulo: Artmed; 2009.. A formulação da teorização sobre a não inserção da atenção à saúde bucal na ESF foi ordenada e integrada a partir das conexões teóricas entre as categorias. A categoria central explica como o problema desse estudo é abordado.

As recomendações da Resolução nº 466, de 2012, do Conselho Nacional de Saúde foram respeitadas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (protocolo 35791320.2.0000.5149) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

A TFD resultou como categoria central: Consequência de uma concepção hegemônica doença-centrada da saúde para o modelo de atenção à saúde bucal. A ela, estão relacionadas as categorias: 1) modelo assistencial hegemônico biomédico; 2) modelo assistencial defendido pela gestão centrado na clínica odontológica; 3) diferentes concepções do modelo de atenção à saúde bucal; 4) perda de janela de oportunidade proporcionada pela PNSB (Quadro 1).

Quadro 1
Categoria central e demais categorias e subcategorias da teorização.

A categoria Modelo assistencial hegemônico biomédico faz referência à organização da prestação de serviços da saúde, disponibilidade de unidades de atenção à saúde e equipamentos, concepção de saúde e ações assistenciais centradas na produção de procedimentos. Foram associadas as subcategorias: a) modelo assistencial historicamente centrado na alta e média complexidade; b) financiamento da saúde do município comprometido com a média e alta complexidade; c) maioria das UBS possuem infraestrutura inadequada.

De acordo com os participantes da pesquisa, historicamente, o município configurava-se como um polo tecnológico de saúde, ofertando, até os dias atuais, muitos serviços de alta e média complexidade. A “herança da municipalização” é apresentada pelos sujeitos como uma das condições responsáveis pela manutenção do modelo biomédico, centrado na alta e média complexidade. O financiamento da saúde do município responde a essas prioridades restando insuficientes recursos para a atenção primária. Em função disso, a atenção básica obteve um crescimento tímido ao longo do tempo e apresenta infraestrutura inadequada em grande parte das Unidades Básicas de Saúde (UBS), dificultando a organização da atenção à saúde bucal na ESF. Na atenção primária, a atenção à saúde bucal é precarizada e é descrita como onerosa e de difícil manutenção.

A segunda categoria Modelo assistencial defendido pela gestão centrado na clínica odontológica diz respeito ao processo de gestão e de tomada de decisão em relação aos serviços de saúde bucal. As subcategorias que explicam esta categoria são: a) modelo assistencial da saúde bucal na atenção primária organizado segundo polos regionais; b) gestão da saúde bucal verticalizada e desarticulada; c) a proposta de inserção da eSB na ESF defendida pela gestão não busca a reorientação do modelo assistencial.

Na gestão da atenção à saúde bucal a oferta de serviços odontológicos na atenção básica foi organizada em polos regionais com Unidades Odontológicas Regionais (UOR), localizadas nos mesmos espaços físicos dos CEO. A justificativa para essa decisão foi aproveitar os espaços com boa infraestrutura com direcionamento de recursos adicionais. Essas unidades de produção de serviços, na perspectiva de alguns atores da gestão, garantiriam o cuidado integral e continuado com a ampliação do acesso à população para áreas do município não cobertas pela atenção básica. A organização dos polos regionais se colocou em contraposição à expectativa de alguns gestores e do CMS pela inserção da atenção à saúde bucal na ESF.

A proposta de inserção da atenção à saúde bucal na ESF é colocada como uma possibilidade, haja vista as iniciativas da gestão como estudo de impacto financeiro e no campo burocrático. Entretanto, ela não busca a superação do modelo, uma vez que carece de uma perspectiva universal e mantém a centralidade da atenção na clínica odontológica.

Com a teorização foi possível fundamentar que a gestão da saúde bucal na SMS do município é verticalizada e desarticulada. A atenção secundária e a terciária são de responsabilidade do Departamento de Saúde Bucal (DSB) e a atenção primária submete-se à Gerência de Atenção Primária da Subsecretaria de Atenção à Saúde. Foram identificados problemas de comunicação entre setores e níveis de gestão quanto a proposição e acompanhamento dos programas e ações.

A categoria Diferentes concepções do modelo de atenção à saúde bucal mostra a disposição presente no CMS pela inserção da saúde bucal na ESF e a posição crítica em relação à implantação dos polos regionais. A categoria apresenta três subcategorias: a) a concepção de modelo assistencial do CMS é contra hegemônica; b) a expectativa do CMS pela inserção das eSB na ESF não encontra respaldo na população e entre os CD do serviço; c) modelo assistencial na saúde bucal atende ao perfil profissional e às expectativas dos CD do serviço.

Os resultados indicam que o CMS possui uma concepção de modelo assistencial orientada pelo princípio da integralidade do cuidado e defesa do fortalecimento da saúde bucal na APS. Essa concepção é contra hegemônica e oposta à organização dos polos regionais, o que tem levado a embates com a gestão municipal. Entretanto, há dúvida quanto à existência de uma posição consolidada no CMS sobre a questão. A posição não seria do CMS, mas de alguns representantes atuantes no Conselho e em composição com o sindicato dos odontologistas.

A proposta de inserção da saúde bucal na ESF, apresentada pelo CMS em 2001 se mantem há 20 anos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, na Lei Orçamentária Anual e nas Programações Anuais de Saúde. Em 2016 o legislativo municipal aprovou a inserção da atenção à saúde bucal na ESF e a extensão de jornada dos CD para 40 horas. Em 2019 houve um estudo do impacto orçamentário da implantação de algumas eSB na ESF que não resultou em um movimento efetivo da gestão pela mudança do modelo. A não ocorrência de registros em relação à saúde bucal na ouvidoria municipal indicaria ausência de demanda pela melhoria ou mudança nos serviços de saúde bucal.

Não há mobilização entre os CD pela inserção da atenção à saúde bucal na ESF, e transparece um certo comodismo dos profissionais em não se engajarem em mudanças na atenção à saúde bucal. Essa concepção é reforçada pelo fato desses profissionais terem alcançado a redução de jornada de trabalho semanal de vinte horas para doze horas e trinta minutos, sem perda de vencimentos.

A categoria Perda de janela de oportunidade proporcionada pela PNSB apresenta fatores internos do município que resultaram na perda de oportunidade do fortalecimento da saúde bucal na APS e de financiamento para a implantação da política. Também apresenta fatores externos relacionados à conjuntura macropolítica e econômica do país, como dificultadores do processo de inserção da saúde bucal na ESF. A conjuntura do desfinanciamento recente foi mais sentida porque faltou o investimento em períodos anteriores. A essa categoria foram associadas como subcategorias: a) escolhas da gestão quanto a aplicação dos recursos oriundos da PNSB e b) Emenda Constitucional 95: do subfinanciamento crônico ao desfinanciamento da saúde.

A PNSB permitiu ao município a compra de equipamentos odontológicos e de insumos e a implantação de novos CEO. Embora com maior aporte de recursos financeiros do governo federal, a proposta de inserção da saúde bucal na ESF não avançou em função dos custos municipais com insumos e mão de obra profissional. A partir da Emenda Constitucional 95 houve uma redução do financiamento da saúde dificultando ainda mais o projeto de inserção da saúde bucal na ESF em tramitação na administração municipal.

Percebe-se que ao longo do período estudado (2001-2020) ocorreram mudanças na organização da SMS e os setores relacionados à saúde bucal e à APS mudaram de nomenclatura e de posição na estrutura administrativa. O organograma (Figura 1), construído a partir dos dados, apresenta a atenção à saúde bucal na estrutura organizacional da SMS.

Figura 1
Organograma construído a partir dos dados, representa a Atenção à Saúde Bucal na estrutura organizacional da Secretaria Municipal de Saúde do município.

Discussão

A teorização emergente permitiu a compreensão do fenômeno da não inserção da atenção à saúde bucal na ESF no município estudado. Os elementos que permitiram essa teorização foram identificados a partir da concepção de agentes sociais que protagonizaram relações conflituosas nos processos de organização da assistência à saúde bucal no município, nos últimos 21 anos. A não adesão do serviço de saúde bucal à ESF vai na contramão do que é preconizado pela PNSB77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004. tendo em vista que a Saúde da Família é uma estratégia para a qualificação e reorganização da atenção básica. A dificuldade nessa adesão é compartilhada por outros municípios brasileiros88 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98.,1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,1717 Caldas AS, Cruz DN, Barros SG, Rossi TRA, Chaves SCL. The oral health policy in a municipality of Bahia: the agents of state bureaucracy. Saude Debate 2018; 42(119):886-900.,1818 Mattos GC, Ferreira EF, Leite IC, Greco RM. The inclusion of the oral health team in the Brazilian Family Health Strategy: barriers, advances and challenges. Cien Saude Colet 2014; 19(2):373-382..

Municípios de médio e grande porte, que constituíam polos regionalizados do sistema assistencial do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), com um aparato de serviços de média e alta complexidade2828 Teixeira CF. Municipalização da saúde: os caminhos do labirinto. Rev Bras Enferm 1991; 44(1):10-15. e contratualizações com a iniciativa privada2929 Marques R. Notas exploratórias sobre as razões do subfinanciamento estrutural do SUS. PPP 2017; 49:35-53., passaram pelo processo da municipalização sem que houvesse uma mudança de modelo dos serviços de saúde2828 Teixeira CF. Municipalização da saúde: os caminhos do labirinto. Rev Bras Enferm 1991; 44(1):10-15.. O município estudado foi um polo do INAMPS, permanece como referência na oferta de serviços de saúde pública e privada de alta e média complexidade e compartilha com outros municípios brasileiros a experiência de hegemonia da reprodução de práticas do modelo biomédico. A não superação desse paradigma tem consequências para a organização dos serviços e a prática dos profissionais de saúde1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878..

A reprodução do modelo assistencial biomédico ocorre pela interação entre condições econômicas, políticas e sociais que favorecem sua manutenção1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878.. Para romper com essa hegemonia é preciso o fortalecimento do papel do Estado e um projeto político que reoriente a organização do sistema em favor das necessidades de saúde da população3030 Teixeira CF, Solla JP. Modelo de atenção à saúde: vigilância e saúde da família. Salvador: EDUFBA; 2006.. O ponto de partida para a mudança é assumir o conceito ampliado e a promoção da saúde na reorientação do modelo com adesão à ESF77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.,1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878.,3131 Bezerra IMP, Sorpreso ICE. Concepts and movements in health promotion to guide educational practices. J Hum Growth Dev 2016; 26(1):11-20..

No município, o modelo assistencial biomédico é reproduzido na atenção à saúde bucal em desalinho ao que foi proposto originalmente nas diretrizes da PNSB. Segundo a PNSB77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004. o conceito de cuidado e a concepção ampliada de saúde devem ser o eixo da atenção à saúde com ações de proteção e promoção da qualidade de vida.

A atenção à saúde bucal no município está organizada prioritariamente em polos regionais de atendimento clínico em UOR localizadas nos espaços ocupados pelos CEO e as equipes de saúde bucal estão presentes em menos da metade das UBS. A atenção à saúde bucal deve assumir um compromisso com a qualificação da atenção básica e garantir o princípio da integralidade, articular o cuidado individual com o coletivo, promoção e prevenção, o tratamento e a recuperação da saúde no território77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.. A organização segundo polos regionais concentra o atendimento clínico odontológico em equipamentos distantes das comunidades. Assim, não se promove a qualificação da atenção primária pelas ausências de vínculo e presença no território, trabalho multiprofissional e de ações de caráter intersetorial. Nos polos regionais, o cuidado à saúde bucal está reduzido ao atendimento centrado na clínica. A atenção à saúde bucal não deve se limitar ao atendimento clínico, mas considerar as necessidades de saúde, atuação na comunidade, ações preventivas e de educação em saúde3232 Antunes JLF, Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saude Publica 2010; 44(2):360-365.. A centralidade na clínica significa a não superação do modelo biomédico hegemônico e a concepção de saúde centrada na doença e em procedimentos1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878..

No município, a implantação dos CEO foi prioritária para a gestão, entretanto não houve esforço correspondente na inserção da saúde bucal na ESF. Chaves et al.3333 Chaves SC, Barros SG, Cruz DN, Figueiredo AC, Moura BL, Cangussu MC. Brazilian Oral Health Policy: factors associated with comprehensiveness in health care. Rev Saude Publica 2010; 44(6):1005-1013., no estado da Bahia, verificou que em municípios com a ESF há maior possibilidade de garantir a integralidade do cuidado. Nesse sentido, fica configurada a necessidade de a atenção primária na saúde bucal anteceder a implantação dos CEO.

Os municípios, proporcionalmente, têm maior gasto em saúde dentre as três esferas de governo3434 Santos JLD, Ferreira RC, Amorim LP, Santos ARS, Chiari APG, Senna MIB. Oral health indicators and sociodemographic factors in Brazil from 2008 to 2015. Rev Saude Publica 2021; 55:25.. O subfinanciamento crônico do SUS impacta na manutenção da oferta do cuidado em saúde onde se inclui a remuneração dos profissionais44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728., com diminuição significativa nas perspectivas de ampliação de serviços de saúde bucal no país66 Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública - austeridade versus universalidade. Saude Debate 2019; 43(n. esp. 5):58-70.,3333 Chaves SC, Barros SG, Cruz DN, Figueiredo AC, Moura BL, Cangussu MC. Brazilian Oral Health Policy: factors associated with comprehensiveness in health care. Rev Saude Publica 2010; 44(6):1005-1013.,3535 Rossi TRA, Lorena Sobrinho JE, Chaves SCL, Martelli PJL. Crise econômica, austeridade e seus efeitos sobre o financiamento e acesso a serviços públicos e privados de saúde bucal. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4427-4436.. O cenário da precarização da infraestrutura das UBS está presente em todo o território brasileiro3636 Bousquat A, Giovanella L, Fausto MCR, Medina MG, Martins CL, Almeida PF, Campos EMS, Mota PHS. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad Saude Publica 2019; 35(2):e00099118. e impede a ampliação da atenção à saúde bucal na atenção primária.

Com a PNSB77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004., a gestão da saúde bucal no município teve a oportunidade de obter incentivos financeiros para implementação e expansão dos serviços de saúde bucal88 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98.,99 Pucca Jr GA, Gabriel M, Araujo ME, Almeida FC. Ten years of a National Oral Health Policy in Brazil: innovation, boldness, and numerous challenges. J Dent Res 2015; 94(10):1333-1337.,3434 Santos JLD, Ferreira RC, Amorim LP, Santos ARS, Chiari APG, Senna MIB. Oral health indicators and sociodemographic factors in Brazil from 2008 to 2015. Rev Saude Publica 2021; 55:25.. Ao passo que muitos municípios brasileiros inseriram a saúde bucal na ESF com qualificação da atenção básica99 Pucca Jr GA, Gabriel M, Araujo ME, Almeida FC. Ten years of a National Oral Health Policy in Brazil: innovation, boldness, and numerous challenges. J Dent Res 2015; 94(10):1333-1337.,1010 Chaves SCL, Almeida AMFL, Rossi TRA, Santana SF, Barros SG, Santos CML. Oral health policy in Brazil between 2003 and 2014: scenarios, proposals, actions, and outcomes. Cien Saude Colet 2017; 22(6):1791-1803.,1616 Aquilante AG, Aciole GG. Building a "Smiling Brazil"? Implementation of the Brazilian National Oral Health Policy in a health region in the State of São Paulo. Cad Saude Publica 2015; 31(1):82-96.,3434 Santos JLD, Ferreira RC, Amorim LP, Santos ARS, Chiari APG, Senna MIB. Oral health indicators and sociodemographic factors in Brazil from 2008 to 2015. Rev Saude Publica 2021; 55:25., o município em estudo direcionou recursos para o fortalecimento e implementação dos CEO e consolidação das UOR, apesar de haver uma proposta oriunda do DSB, com apoio do CMS, para a inserção da saúde bucal na ESF.

No município não há mobilização dos CD vinculados ao serviço pela inserção da saúde bucal na ESF. Parece haver conformidade desses profissionais em relação ao modelo assistencial estabelecido pela gestão. Essa postura pode estar associada à formação profissional marcada pela especialização onde prevalece a prática curativista e tecnoassistencial55 Brasil. Presidência da República. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2015; 15 dez.,88 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98.,1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,3737 Narvai PC. Collective oral health: ways from sanitary dentistry to buccality. Rev Saude Publica 2006; 40(n. esp.):141-147.. Nesse sentido, o CD pode apresentar baixa adesão para o serviço público pois essa ocupação não responderia às expectativas de realização profissional3838 Chaves SC, Silva LMV. As práticas profissionais no campo público de atenção à saúde bucal: o caso de dois municípios da Bahia. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1697-1710.. É preciso que haja uma formação pautada nos fundamentos da ESF e na produção do cuidado, em que a centralidade na clínica seja o usuário1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,3939 Graff VA, Toassi RFC. Produção do cuidado em saúde com foco na Clínica Ampliada: um debate necessário na formação em Odontologia. Rev ABENO 2018; 17(4):63-72.. Chaves e Silva3838 Chaves SC, Silva LMV. As práticas profissionais no campo público de atenção à saúde bucal: o caso de dois municípios da Bahia. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1697-1710. apontam que a hegemonia do setor privado parece influenciar a prática dos CD no setor público. A redução de carga horária semanal concedida em 2016 aos CD no município, pode indicar uma predileção de atuação profissional na clínica privada, estando de acordo com o modus operandi da prática odontológica no Brasil1212 Pires FS, Botazzo C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saude Soc 2015; 24(11):273-284.,1414 Chaves SCL, Almeida AMFL, Reis CS, Rossi TRA, Barros TRA. Política de Saúde Bucal no Brasil: as transformações no período 2015-2017. Saude Debate 2018; 42(n. esp. 2):76-91.,3737 Narvai PC. Collective oral health: ways from sanitary dentistry to buccality. Rev Saude Publica 2006; 40(n. esp.):141-147. e no mundo1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021., onde a oferta de serviços de mercado e a forte influência do modelo liberal na Odontologia ainda é predominante1313 Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, Pimenta RMC, Bastos RS, Warmling CM. Diálogos bucaleiros. Reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Editorial Pimenta; 2021.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878..

O projeto da gestão municipal de inserção da atenção à saúde bucal na ESF restrita às eSB em UBS de bairros com maior vulnerabilidade social e periféricos, com a manutenção da assistência odontológica nos polos regionais, é dissonante com o princípio da universalidade do cuidado77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004. e da forma como está proposto reforça o modelo de atenção à saúde bucal centrado na clínica odontológica. Sua compreensão remete à discussão sobre APS seletiva trazida por Mendes4040 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: OPAS; 2012. como um programa focalizado, específico, destinado a populações e regiões pobres, oferecendo um conjunto de tecnologias simples e de baixo custo. A concepção de APS deve superar esse conceito restritivo para tornar-se espaço ordenador da atenção à saúde em Rede4040 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: OPAS; 2012.. Este projeto está sendo discutido com o CMS e elaborado desde o ano 2001, demonstrando morosidade na tomada de decisão. Em parte, isso pode ser explicado pela desarticulação entre os setores da gestão da saúde bucal no município. O fato de a atenção à saúde bucal ser gerida por dois setores na gestão municipal dificulta os processos de planejamento, monitoramento e avaliação. A qualificação da APS, como parte da PNSB, exige forte engajamento e decisão de gestores e profissionais da equipe88 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98.,1515 Fertonani HP, Pires DE, Biff D, Scherer MD. The health care model: concepts and challenges for primary health care in Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(6):1869-1878..

A gestão verticalizada, além de comprometer a proposição participativa e democrática das políticas públicas77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004., pode ocasionar a desmotivação, falta de comprometimento dos profissionais e falhas na oferta dos serviços4141 Andraus SHC, Ferreira RC, Amaral JHL, Werneck MAF. Organization of oral health actions in primary care from the perspective of dental managers and dentists: process of work, planning and social control. Rev Gaucha Odontol 2017; 65(4):335-343.. No município, além da gestão ser exercida de forma centralizada e desarticulada, também existe o distanciamento em relação ao controle social. Essa condição dificulta a participação popular na gestão do SUS, respostas efetivas aos problemas de saúde, e a definição de modelos de atenção e gestão segundo as demandas sociais e necessidades de saúde88 Scherer CI, Scherer MD. Advances and challenges in oral health after a decade of the "Smiling Brazil" Program. Rev Saude Publica 2015; 49:98..

A cultura participativa e os conselhos como inovação na governança da saúde no Brasil22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 394(10195):345-356.,44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728., apresentam desafios em relação a sua representatividade e à comunicação entre atores e instituições4242 Paiva FS, Van Stralen, CJ, Costa PH. A. Participação social e saúde no Brasil: revisão sistemática sobre o tema. Cien Saude Colet 2014; 19(2):487-498.,4343 Ventura CAA, Miwa MJ, Serapioni M, Jorge MS. Participatory culture: citizenship-building process in Brazil. Interface (Botucatu) 2017; 21(63):907-920.. No município, a cristalização das posições de conselheiros dificulta a publicização dos interesses da população. O vínculo frágil entre representados e representantes fragiliza a defesa de interesses comuns e dificulta a construção coletiva de um projeto social e político4242 Paiva FS, Van Stralen, CJ, Costa PH. A. Participação social e saúde no Brasil: revisão sistemática sobre o tema. Cien Saude Colet 2014; 19(2):487-498..

O posicionamento institucional do CMS é contrário ao modelo de atenção à saúde bucal centrado na clínica odontológica e defendido pela gestão municipal. Esse posicionamento poderia fortalecer as posições favoráveis à inserção da saúde bucal na ESF77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.. Entretanto, o consenso dessa posição no CMS é incerto e frágil. A inserção da saúde bucal na ESF é defendida por um dos integrantes do controle social e compartilhada por profissionais vinculados ao sindicato dos odontologistas. Magalhães e Xavier4444 Magalhães FGGP, Xavier SX. Processo participativo no controle social: um estudo de caso do Conselho Municipal de Saúde de Juiz de Fora (MG). REAd 2019; 25(1):179-212. encontraram como ponto crítico na atuação do CMS de JF a assimetria discursiva entre atores do controle social e a necessidade de maior engajamento da sociedade em relação aos seus reais interesses.

No município não foram registradas iniciativas da população que reivindicassem mudanças nos serviços de saúde bucal o que aponta para a necessidade de ampliar o debate da valorização da saúde bucal como um direito a ser reivindicado junto às estruturas da governança do serviço público4545 Godoi H, Castro RG, Santos JLGD, Moyses SJ, Mello ALSF. Obstacles to public governance and their influence on oral healthcare in the state of Santa Catarina, Brazil. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00184719.. Sugere-se o desenvolvimento de novos estudos que indiquem estratégias para sustar a reprodução do modelo de atenção à saúde bucal vigente, engajar a governança municipal com as orientações da PNSB e o exercício da gestão participativa. No mesmo sentido, constitui um desafio o fortalecimento do controle social em direção ao reconhecimento da saúde bucal como um direito.

O estudo apontou a necessidade de se estabelecer a Rede de Atenção à Saúde Bucal4040 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: OPAS; 2012., pois a implantação das eSB na ESF não pode ser burocrática, mas parte de um conjunto de iniciativas na consecução da PNSB. Embora o cenário de desfinanciamento federal da saúde22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 394(10195):345-356.,66 Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública - austeridade versus universalidade. Saude Debate 2019; 43(n. esp. 5):58-70.,44 Paim JS. Thirty years of the Unified Health System (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1723-1728. prejudique a manutenção e ampliação dos serviços de atenção à saúde bucal3535 Rossi TRA, Lorena Sobrinho JE, Chaves SCL, Martelli PJL. Crise econômica, austeridade e seus efeitos sobre o financiamento e acesso a serviços públicos e privados de saúde bucal. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4427-4436., o município deve estabelecer prioridades para a garantia da atenção à saúde com qualidade. Mobilizar atores sociais e fortalecer o controle social em direção a uma consciência sanitária é fundamental para o exercício da cidadania, do enfrentamento das iniquidades e desigualdades e manutenção da saúde como um direito.

Conclusão

A teorização permitiu a identificação da origem das condições do fenômeno estudado e poderá contribuir para tomada de decisões dos atores sociais em futuras ações políticas. A concepção hegemônica doença-centrada dos atores sociais do município contribuiu para a não inserção da atenção à saúde bucal na ESF. As consequências dessa concepção são observadas na orientação do modelo de atenção à saúde bucal, que está em desalinho histórico com o preconizado pelas políticas nacionais antes da aprovação da EC 95.

O estudo aponta a reprodução do modus operandi da prática tecnicista que espelha a clínica e o modelo liberal de odontologia observado, hegemonicamente, inclusive em países que possuem sistemas universais e tratam a saúde como um direito. Nesta direção, se faz necessário que a PNSB se torne uma política de Estado, a fim de consolidar o modelo de atenção à saúde pautado na defesa da vida, dos determinantes sociais, e que a saúde bucal seja entendida como um direito social para toda a população, dentro de um sistema universal, público e de qualidade. É preciso um projeto político que contraponha o desfinanciamento da saúde e o desmonte do SUS. A saúde bucal coletiva deve ser norteadora nos processos de formação profissional, sendo imprescindível o trabalho em equipe, o cuidado integral, o direcionamento trazido no conceito ampliado de saúde e a promoção da saúde.

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2021
  • Aceito
    26 Set 2022
  • Publicado
    28 Set 2022
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