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Trabalhadores de apoio de um hospital de referência na Bahia, Brasil, no enfrentamento da COVID-19: essenciais e invisíveis

Nonclinical support workers of a reference hospital in Bahia, Brazil, as being essential and invisible in the face of COVID-19

Resumo

No contexto do trabalho hospitalar durante a COVID-19, é preciso reconhecer que as atividades de apoio exercidas por maqueiros, agentes de limpeza e auxiliares administrativos são imprescindíveis para o processo de trabalho. Este artigo analisou resultados de uma etapa exploratória de uma pesquisa ampla com esses trabalhadores dentro de uma unidade hospitalar referência para COVID-19 no estado da Bahia. Foram selecionadas três entrevistas semiestruturadas produzidas a partir da perspectiva do “fazer falar” sobre o trabalho, utilizando pressupostos da etnometodologia e da ergonomia. A análise incidiu sobre as atividades de trabalho de um maqueiro, um agente de limpeza e uma auxiliar administrativa, problematizadas a partir da díade essencialidade-invisibilidade. O estudo demonstrou que esses trabalhadores são invisibilizados pela desvalorização social de suas atividades e nível de escolaridade e resistem apesar das circunstâncias e do sobretrabalho; e evidenciou a essencialidade desses serviços pela interdependência entre o trabalho de apoio e o trabalho assistencial e suas contribuições para a segurança do paciente e da equipe. Conclui-se que é necessário criar estratégias para que esses trabalhadores sejam valorizados social, financeira e institucionalmente.

Palavras-chave:
Saúde do trabalhador; COVID-19; Serviços hospitalares; Mão de obra em saúde; Pessoal de saúde

Abstract

In the context of hospital work during the COVID-19 pandemic, it should be acknowledged that the nonclinical support activities carried out by stretcher bearers, cleaning agents and administrative assistants were essential for the work process. This article analyzed the results of an exploratory stage of broader research with these workers in a COVID-19 hospital reference unit in the state of Bahia. Three semi-structured interviews were selected, using assumptions of ethnomethodology and ergonomics, to encourage these workers to talk about their work, The analysis concentrated on the work activities of stretcher-bearers, cleaning agents and administrative assistants from a visibility perspective. The study showed that these workers were rendered invisible by the scant social respect for their activities and level of schooling that prevailed despite the circumstances and excess workload; and revealed the essential nature of these services due to the interdependence between support work and care work and their contributions to patient and team safety. The conclusion drawn is that it is necessary to establish strategies such that these workers are valued socially, financially, and institutionally.

Key words:
Occupational health; COVID-19; Hospital services; Health workforce; Health personnel

Introdução

Durante a pandemia de COVID-19, os holofotes se voltaram principalmente para os trabalhadores da saúde, que responderam a uma multiplicação de demandas de trabalho, em um contexto de crise sanitária e social. Essa atuação em meio ao alto grau de transmissibilidade, ao limitado conhecimento acerca da doença e à gravidade dos casos conduziu ao amplo reconhecimento social dos trabalhadores da saúde e sua representação (controversa) como “heróis”. Quais são os trabalhadores assim representados? Certamente são os profissionais envolvidos com a assistência direta: médicos, enfermeiras, fisioterapeutas, todos portadores de diplomas universitários que ocupam as posições mais altas da pirâmide hierárquica ocupacional nas instituições de saúde11 Machado MH. ISC em Casa - trabalhadores da saúde no Brasil e os desafios da COVID-19 [Internet]. YouTube. 2021. [acessado 2022 jun 2]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HCipz3ZMuEM&t=380s
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Contudo, são muitos os trabalhadores de apoio presentes no ambiente hospitalar e também responsáveis pelo êxito do cuidado em saúde: maqueiros, motoristas de ambulância, agentes de limpeza, auxiliares administrativos, telefonistas, recepcionistas, copeiras, auxiliares de manutenção, vigilantes etc. No Brasil, estudo inédito desenvolvido recentemente pela Fiocruz22 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pandemia reafirma invisibilidade de 2 milhões de trabalhadores da área da saúde [Internet]. 2022. [acessado 2022 maio 10]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pandemia-reafirma-invisibilidade-de-2-milhoes-de-trabalhadores-da-area-da-saude
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constatou que, durante a pandemia, trabalhadores de serviços de saúde categorizados como “invisíveis e periféricos”, essenciais para a execução do processo de trabalho em saúde, não se sentem seguros ou protegidos para executarem seu trabalho (53%), não foram capacitados para lidar com o cenário novo a que estão expostos (54,4%) e convivem com o excesso de trabalho (50,9%).

Nesse sentido, torna-se imperativo descortinar a experiência desses trabalhadores para compreender seus modos de atuação e contextos de práticas em meio à pandemia. Ouvir esses homens e mulheres é tarefa imprescindível para identificar e dar visibilidade às suas contribuições para o trabalho em saúde, que ocorre a despeito do processo de precarização do trabalho em saúde por eles vivenciados, reduzindo seu acesso ao sistema de proteção ao trabalhador. A identificação e análise dessas experiências, situadas em contextos de vulnerabilização (trabalhista e pandêmico), fornece elementos relevantes para atuação dos gestores, trabalhadores e pesquisadores do campo da saúde.

Em uma revisão sistemática de literatura (em andamento, DOI: 10.17605/osf.io/kcedw) de artigos científicos que foram publicados entre janeiro de 2020 e maio de 2021 com resultados de pesquisas qualitativas sobre trabalhadores de saúde inseridos em hospitais, realizadas durante a pandemia de COVID-19, encontramos 50 artigos. Apenas seis deles incluíram trabalhadores não clínicos e sem nível de formação universitária: metade destes incluiu trabalhadores da limpeza, da manutenção e/ou da administração33 Blake H, Gupta A, Javed M, Wood B, Knowles S, Coyne E, Cooper J. COVID-Well Study: Qualitative Evaluation of Supported Wellbeing Centres and Psychological First Aid for Healthcare Workers during the COVID-19 Pandemic. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(7):3626.

4 Daphna-Tekoah S, Megadasi Brikman T, Scheier E, Balla U. Listening to Hospital Personnel's Narratives during the COVID-19 Outbreak. Int J Environ Res Public Health 2020;17(17):6413.
-55 Jeleff M, Traugott M, Jirovsky-Platter E, Jordakieva G, Kutalek R. Occupational challenges of healthcare workers during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. BMJ Open 2022; 12(3):e054516., e o resto não especificou as ocupações, designando-os como “outros trabalhadores”66 Hayirli TC, Stark N, Bhanja A, Hardy J, Peabody CR, Kerrissey MJ. Masked and distanced: a qualitative study of how personal protective equipment and distancing affect teamwork in emergency care. Int J Qual Health Care 2021; 33(2):mzab069.

7 McGlinchey E, Hitch C, Butter S, McCaughey L, Berry E, Armour C. Understanding the lived experiences of healthcare professionals during the COVID-19 pandemic: an interpretative phenomenological analysis. Eur J Psychotraumatol 2021; 12(1): 1904700.
-88 Vindrola-Padros C, Andrews L, Dowrick A, Djellouli N, Fillmore H, Bautista Gonzalez E, Javadi D, Lewis-Jackson S, Manby L, Mitchinson L, Mulcahy Symmons S, Martin S, Regenold N, Robinson H, Sumray K, Singleton G, Syversen A, Vanderslott S, Johnson G. Perceptions and experiences of healthcare workers during the COVID-19 pandemic in the UK. BMJ Open 2020; 10(11):e040503.. Nenhuma dessas publicações apresentou resultados específicos sobre as condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores de apoio. Esse resultado aponta para sua invisibilidade nas pesquisas científicas.

O uso do termo “invisível” como qualificador do trabalho conceitua o grupo de trabalhadores que desempenham atividades “que são negligenciadas, ignoradas e/ou desvalorizadas por empregadores, consumidores, outros trabalhadores e, em última análise, o próprio sistema” (legal, sanitário etc.)99 Poster WR, Crain M, Cherry M. Introduction: conceptualizing invisible work. In: Crain M, Poster WR, Cherry M, editors. Invisible labor: hidden work in the contemporary work. Oakland: University of California Press; 2016. p. 25-69.. Esse termo pode ser aplicado a atividades desvalorizadas social, política e economicamente, ou seja, em termos de recompensas materiais (remuneração), reconhecimento simbólico (prestígio) e condições de trabalho e proteção social (direitos trabalhistas e regulamentação mais amplos), como as que serão analisadas neste artigo. Em geral, tais trabalhadores são subordinados aos trabalhadores visíveis. O trabalho visível está mais relacionado a atividades que: alcançam altos níveis de criatividade e altos salários; estão bem posicionadas no mercado de trabalho; são respeitadas socialmente; e proporcionam plena realização pessoal1010 Budd J. The eye sees what the mind knows: the conceptual foundations of invisible work. In: Crain M, Poster WR, Cherry M, editors. Invisible labor: hidden work in the contemporary work. Oakland: University of California Press; 2016. p. 70-102..

Aqueles que empreendem trabalhos braçais são geralmente vistos como inferiores, por executarem tarefas marginalizadas, ainda que imprescindíveis à sociedade1111 Celeguim CRJ, Roesler HMKN. A invisibilidade social no âmbito do trabalho. Rev Interação 2009; 3(1):1-19.. Muitas vezes essas atividades são consideradas como “trabalhos sujos”1212 Hughes EC. Le regard sociologique: essais choisis. Paris: L'EHESS; 1996., pois envolvem tarefas desvalorizadas (máculas sociais), estigmatizantes (máculas morais) e degradantes (máculas físicas)1313 Simpson R, Simpson A. "Embodying" dirty work: a review of the literature. Sociol Compass 2018; 12(5). DOI: 10.1111/soc4.12581.
https://doi.org/10.1111/soc4.12581...
. Essa noção tem sido empregada para analisar atividades de coleta de lixo hospitalar e de preparação de corpos para os ritos funerários no contexto hospitalar1414 Lhuilier D. A invisibilidade do trabalho real e a opacidade das relações Saúde-Trabalho. Trabalho Educ 2012; 21(1):13-38..

Essa conotação estigmatizante pode aumentar a sensação de isolamento social sofrida por trabalhadores de saúde durante a pandemia, assim como o grau de sacrifício para se manter no trabalho. Um estudo com zeladores de um hospital de referência para a COVID-19 na Índia mostrou um senso de realização desses trabalhadores relacionado à contribuição de seu trabalho e ao sacrifício pessoal para se manterem em atividade, mesmo face ao estigma ocupacional e do isolamento social, intensificados no contexto da pandemia e dos impactos negativos dessas situações na sua qualidade de vida1515 Sharma D, Ghosh K, Mishra M, Anand S. You stay home, but we can't: invisible 'dirty' work as calling amid COVID-19 pandemic. J Vocat Behav 2022; 132:103667..

É nesse cenário que o objetivo deste artigo se dirige à compreensão das experiências de trabalhadores de apoio de um hospital de referência para COVID-19 na Bahia, com foco na problematização da díade essencialidade-invisibilidade como marcador de valorização e de subalternidade. Compreender a condição de trabalhador invisível, em suas múltiplas experiências, especialmente em uma situação crítica como é o caso do enfrentamento de uma pandemia, contribui para colocar em evidência o que está obscurecido nas instituições, nas pesquisas sobre o trabalho em saúde e na área de saúde do trabalhador. Nesse sentido, torna-se importante considerar as práticas e os contextos institucionais específicos em que se produz essa invisibilidade, das formas de contratação às interações produzidas no desenvolvimento das atividades de trabalho, passando pelo reconhecimento do trabalhador.

Métodos

Realizou-se uma pesquisa qualitativa sobre o trabalho feito por membros das equipes de transporte, higienização e apoio administrativo de um hospital público de grande porte do estado da Bahia. Trata-se de um hospital especializado em doenças infectocontagiosas com longa experiência na atenção a infecção geral, HIV e neuroinfecção. Devido à sua expertise, essa unidade foi eleita como referência estadual hospitalar no Plano de Contingência para Enfrentamento da COVID-19 na Bahia1616 Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). Plano Estadual de Contingências para Enfrentamento do Novo Coronavírus - SARS CoV2 [Internet]. 2020.. [acessado 2021 maio 12]. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Plano-de-Continge%CC%82ncia-Coronav%C3%ADrus-Bahia-2020-2606.pdf
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Para isso, o hospital precisou fazer adaptações e ampliações, que incluíram a suspensão de seus serviços ambulatoriais, a transformação dessas unidades e do centro cirúrgico em unidades de internação e a conversão de leitos de enfermaria em leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs), voltando-se exclusivamente para o atendimento de casos graves de COVID-19. Assim, os leitos de UTI passaram de 20 para cerca de 90, distribuídos em antigas e novas UTIs adultas. Além disso, houve modificação das lógicas de circulação interna do hospital e dentro das unidades, demandando a necessidade de apreensão rápida das novas formas de deslocamento, a fim de evitar cruzamento entre rotas sujas e rotas limpas e de isolar as equipes clínicas das UTIs.

Essas transformações envolveram a contratação temporária de muitos profissionais, a intensificação do ritmo de trabalho, a definição e adoção de novos protocolos e a remodelação dos espaços hospitalares. No que se refere aos trabalhadores de apoio, as contratações não se deram de maneira uniforme entre as categorias e foram efetuadas em menor intensidade e ritmo.

Os dados empíricos analisados foram produzidos mediante entrevistas, entre junho e dezembro de 2021, no formato online/virtual devido ao cenário epidemiológico. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. As entrevistas foram conduzidas por pesquisadores com experiência em pesquisa qualitativa, orientadas por um roteiro de perguntas e pelo princípio do “fazer falar” sobre o trabalho e a vida, proposto pela etnometodologia1717 Coulon A. Etnometodologia e pesquisa qualitativa em saúde: observar, ouvir e descrever. Rev. FAEEBA - Ed. e Contemp 2019; 28(56):33-43. e pela ergonomia1818 Guérrin, F, Laville, A, Daniellou, F, Durafourg, J. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Editora Edgard Blücher; 2001.. Nessas perspectivas, entende-se que os indivíduos sabem exatamente o quê estão fazendo e o porquê de estarem realizando determinada ação, e é por meio da linguagem que se torna possível comunicar a realidade social, descrevê-la e, ao mesmo tempo, constituí-la. Assim, as entrevistas serviram para a retomada e definição da própria realidade vivida pelos trabalhadores no contexto da COVID-19.

Foram feitas 22 entrevistas semiestruturadas com 7 maqueiros, 9 agentes de limpeza e 6 auxiliares administrativos, sendo 11 homens e 10 mulheres, de 22 a 53 anos de idade, 19 autodeclarados negros (pretos ou pardos), uma branca e dois sem informação. As entrevistas duraram entre 28 minutos e 1h49min, sendo todas gravadas e transcritas. As transcrições foram efetuadas por profissional contratado e verificadas por membros da equipe de pesquisa.

Para o desenvolvimento de pontos de discussão específicos, selecionamos três entrevistas representativas, priorizando: diversidade de ocupações; riqueza de descrições sobre o mundo do trabalho e presença de elementos de análise sobre a díade essencialidade-invisibilidade. A análise se orientou pelas perguntas: 1) quais performances e atividades do trabalhador não são postas em evidência para gestores, outros trabalhadores e usuários, permanecendo ocultas nos bastidores do processo de trabalho? 2) Quais impactos sobre o trabalhador são produzidos pela sustentação dessas performances e atividades?

As categorias de análise e interpretações aqui apresentadas foram discutidas pelo grupo de pesquisadores que compõem a autoria deste artigo. As entrevistas foram realizadas no âmbito da pesquisa “Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia do COVID-19 (2020-2022)”, financiada por: Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e aprovada em comitê de ética (CAAE: 36866620.2.0000.5030).

Resultados

Entre os entrevistados, encontram-se os seguintes perfis: maqueiro - homem pardo, 40 anos, renda familiar entre um e três salários-mínimos, ensino médio completo e quatro anos de experiência na instituição (MAQ5); auxiliar administrativa - mulher parda, 21 anos, renda familiar entre um e três salários-mínimos, nível superior incompleto e dois anos de experiência na instituição (ADM5); agente de limpeza - homem preto, 35 anos, renda familiar de até um salário-mínimo, ensino fundamental incompleto e oito anos de experiência na instituição (HIG5). A duração dessas entrevistas variou entre 1h10min e 1h24min.

No cenário de transformação da unidade hospitalar, o trabalho de apoio também passou por redefinições de atividades, processos e condições de trabalho, com aumento da carga laboral e diminuição de folgas, em meio a um contexto de pressão, ansiedade e medo, com repercussões na saúde e na vida pessoal. Os entrevistados demonstraram compromisso com a sustentação das atividades de trabalho e com o cumprimento das expectativas institucionais, e realçaram o acionamento de suas expertises para aumentar a viabilidade, segurança e eficácia de seu trabalho e das atividades realizadas por outros trabalhadores, em uma clara defesa da essencialidade de seu trabalho. Esse acionamento, no entanto, se deu em meio a conflitos e/ou processos de (des)legitimação relacionados à invisibilidade do trabalho de apoio. A partir da análise desses relatos, emergiram duas categorias principais: (des)valorização social do trabalho de apoio; e interdependência das atividades de apoio e de assistência.

(Des)valorização social do trabalho de “apoio”

Nos relatos de integrantes da equipe de higienização, transporte intra-hospitalar e serviços administrativos é possível observar distintas formas de valorização e desvalorização do lugar e das atividades empreendidas. Enquanto a valorização esteve limitada ao reconhecimento de habilidades pessoais e a agradecimentos pontuais, a desvalorização foi evidenciada em cenas de desqualificação dos saberes e experiências dos trabalhadores de apoio e pela ausência de contrapartidas materiais e simbólicas próprias ao reconhecimento formal e efetivo da essencialidade do seu trabalho.

Por vezes, o contato com as equipes assistenciais resultou em conflitos, envolvendo disputas de autoridade e hierarquias profissionais, em que o desprezo aparece como um sentido atribuído ao trabalho, à experiência e aos saberes dos trabalhadores de apoio.

A gente vê assim, na postura do enfermeiro ou do técnico... não sei se menospreza, porque é maqueiro… E [acredita que] o maqueiro não entende de nada, o maqueiro não sabe de nada, o maqueiro não estudou para aquilo… até vem pra cima de você falando até um pouco alterado (MAQ5).

Tem muitos outros, falam assim “é gari, não presta; trabalha na higienização, não presta”. E muitos sabem que se não fosse o gari, um depende do outro… Entenderam que você pode ter dinheiro, pode ter tudo, mas se você não tiver uma boa assistência, uma boa equipe de trabalho… um ambiente que você vai trabalhar direito, você não vai poder sobreviver com uma doença dessa (HIG5).

Os relatos acima apontam para o desprezo em relação ao trabalhador de apoio. O maqueiro indica que a desqualificação de seu conhecimento e de sua experiência se relaciona ao seu nível de formação. O agente de limpeza se sente desprezado por sua atividade de trabalho o aproximar do lugar social estigmatizado atribuído aos garis que executam a limpeza urbana, ainda que aponte para a coexistência de outras visões sobre seu trabalho.

O desprezo também se expressou em ações de outros profissionais que tomaram como irrelevante o produto do trabalho de apoio, mesmo quando este procurou atender o trabalho prescrito:

[...] a CCIH cobra da gente de estar forrando sempre o teclado, forrando a parte do telefone, essas coisas. E aí quando a gente forra deixa tudo forrado, às vezes muitos vêm e tira o plástico e diz que incomoda, não gosta. Mas a gente sempre procura manter o foco e deixar forrado (HIG5).

Diante das situações de sobrecarga, pressão e conflitos laborais, esses trabalhadores encontraram amparo em redes de apoio mútuo, entre colegas e chefias imediatas, de maneira a favorecer sua permanência no trabalho.

Eu acho que ela [a líder] entende muito e, durante a pandemia mesmo, ela deu muito suporte, assim de agradecimento, ela dizia: “Obrigada por você estar aqui”, porque ela sabia que a gente estava carregando como se fosse um peso ali, porque não estava uma coisa normal, tava uma coisa sobrecarregada, porque [novos profissionais para o] apoio só foram chegar depois… Enquanto isso era a gente, um só pra dominar tudo. Era muito sobrecarregado. Então ela entendia… e hoje em dia ela sempre pergunta: “Você tá bem? Está se sentindo bem? Você quer descer? Você quer ir pra noite ou você quer isso?” Então, eu só tenho a agradecer a ela, e aos encarregados também, que sempre participam com a gente, assim... tá bem mais perto da gente (ADM5).

A auxiliar administrativa faz esse comentário após descrever sua atuação intensa na organização de uma UTI que se tornou um problema institucional. Nota-se que a chefia imediata reconhece o valor daquela funcionária e da contribuição de seu trabalho, ao se interessar pelo seu estado de saúde física e mental, com uma atitude de escuta e negociação quanto a suas próximas tarefas e turnos de trabalho. Há uma contrapartida prática nesse reconhecimento, ainda que pontual e delimitada às relações interpessoais estabelecidas entre elas.

O agente de limpeza abaixo fornece um exemplo de solidariedade entre colegas, em que ressalta uma relação de cuidado ao orientá-los sobre medidas práticas importantes para que não se contaminem.

[...] a gente sempre mantém um foco de não prejudicar o colega, tanto na limpeza como em tudo, porque se você pega uma coisa infectada ali você tem que dizer: “Colega, cuidado porque essa bactéria é muito resistente e você não pode deixar aberto o saco, não pode tocar sem a luva, não pode pegar sem a luva… [vê] se a máscara tá no rosto” (HIG5).

A valorização do trabalho de apoio e as resistências à sua desvalorização ganham força diante do reconhecimento de sua contribuição para a realização de atividades assistenciais, conforme mostramos a seguir.

Interdependência das atividades de apoio e de assistência

A essencialidade das atividades de apoio ancora-se na interdependência entre diferentes processos de trabalho. Por exemplo, para que a atenção à saúde dos pacientes internados em UTI ocorra, a realização de exames de imagem para diagnóstico é um procedimento rotineiro. Durante a pandemia, o transporte do paciente da UTI para os serviços de bioimagem ocorreu com maior frequência e sob a vigência de diretrizes mais estritas de segurança, gerando novas demandas para os maqueiros. O serviço de limpeza hospitalar foi realizado sob protocolos mais rígidos de controle de infecção hospitalar, aumentando o número de tarefas e carga de trabalho envolvido em sua execução. A abertura de novas UTIs e remodelações sucessivas do espaço hospitalar ao longo da pandemia envolveu o trabalho imprescindível das equipes administrativas, em atividades de planejamento, monitoramento e avaliação, sem o qual os espaços, insumos e equipes não estariam disponíveis para a assistência.

Essa essencialidade do trabalho das equipes de apoio, no entanto, nem sempre é identificada pelos outros trabalhadores e pelos gestores. Um exemplo foi evidenciado no relato do trabalho necessário para a rápida ampliação dos leitos de UTI. A experiência da auxiliar administrativa foi posta em ação para organizar uma nova UTI que apresentava sérios problemas de funcionamento, não superados apesar de sucessivas tentativas pelas chefias desse serviço:

[Em uma UTI] era uma bagunça… a gente não tinha logística, não tinha quantitativo... [O almoxarifado] não quer saber que abriu uma UTI e você não está sabendo se organizar. Ele quer que você se organize para [pedir material para] aquela quantidade de leito… E eu disse a ela [coordenadora]: “A gente precisa arrumar esse setor, porque está bagunçado e a equipe está se apoiando na bagunça” [...] Comecei [a] alinhar com ela. Disse: “Olhe, crie fluxo, a equipe tem que pedir hoje, botar no DME [almoxarifado do setor] e amanhã abastecer. E a equipe tem que entender que esse quantitativo é pra esse dia” (ADM5).

Há uma preocupação com a disponibilidade de insumos e com o uso racional dos materiais, de maneira a garantir a atuação da equipe clínica com contenção de gastos desnecessários. Diante do nível de desorganização daquela UTI, a auxiliar administrativa apoiou a criação de fluxos de estocagem e de uso de materiais, um trabalho que extrapola suas funções precípuas. Essa profissional relata que chegou a ligar de casa para garantir que os acordos estavam sendo cumpridos. O dimensionamento inadequado de profissionais de apoio para a organização e monitoramento da UTI fez com que ela dedicasse diversos plantões extras para cumprir essa tarefa.

Eu ficava perturbando, porque senão o pessoal não mantinha… quando teve esse negócio das aberturas das UTIs, não tinha administrativo suficiente, então acabou que eu e outros colegas fizemos muitos extras. Eu, principalmente, eu todo dia tava aqui. Teve um mês aí durante a pandemia que só folguei quatro dias no mês inteiro. Era extra atrás de extra, extra de noite, extra de dia, eu já estava com o olho azul marinho (ADM5).

Isso, porém, não se dá sem consequências à saúde desses profissionais, esgotados diante de tantas pressões e exigências:

Quando acalmou tudo... esse negócio de arrumar setor, eu não quero mais, como se me traumatizasse (ADM5).

O sobretrabalho assumido por esses trabalhadores trouxe benefícios para a instituição, porém impactou negativamente a saúde mental deles. Os trabalhadores da higienização e maqueiros também relataram sofrer forte pressão de demanda e impactos emocionais relacionados aos procedimentos pós-óbito no contexto da pandemia, a exemplo da realização sucessiva de limpezas terminais e acompanhamento de familiares para identificação de corpos, respectivamente.

No caso dos maqueiros, a intensificação do trabalho e a inexperiência de alguns profissionais recém-contratados demandou o uso frequente de sua experiência profissional para garantir a segurança dos pacientes:

A gente encontrou muitas enfermeiras e técnicos que vieram sem experiência. A gente, como maqueiro, a gente já tinha experiência… Tem coisas que não são da minha alçada… Mas a gente chega lá e fala: “Ó, isso aqui é assim, o respirador vamos colocar desse lado”; “Ó, tem cuidado, está tracionando aqui a traqueo [traqueostomia] da paciente”. Muitas enfermeiras não tinham essa experiência e a gente percebia… e aí a gente dava uma ajuda no possível… Era muito complexo o transporte, sair da UTI para fazer exame da tomografia… mas pela nossa experiência, a gente já sabe… Mas quem tem que fazer isso é a enfermeira… fazer o checklist… [Mas] às vezes, esquece… é ser humano. Esquece de checar o torpedo e pedir a manutenção daquele torpedo… Mas a gente sempre olha. E tem umas que… [perguntam] “E aí, maqueiro, tá cheio o torpedo?” Eu falo: “Tá, ainda tá cheio” (MAQ5).

Quando esse apoio é entendido por outro profissional como uma performance não compatível com a formação e posição ocupada pelo maqueiro na hierarquia ocupacional do hospital, surgem conflitos, conforme já apontado anteriormente:

A gente vê… na postura do enfermeiro ou do técnico... não sei se menospreza porque é maqueiro. E o maqueiro não entende de nada, não estudou para aquilo. Tem coisas que a gente avisa por conta do paciente… a gente tem que ter todo cuidado com ele e deixar as diferenças de lado, as indiferenças de lado(MAQ5, grifo nosso).

O maqueiro descreve como e por que coloca em evidência sua experiência e saberes para a realização da tarefa: a segurança do paciente. Mesmo que isso envolva conflitos interprofissionais, colocando em causa jurisdições profissionais e regras institucionais. Conforme protocolo institucional de transporte seguro, essa ação não integra as atribuições vinculadas à função de maqueiro, pois cabe à equipe assistencial avaliar e testar os equipamentos e dispositivos utilizados no transporte dos pacientes. Ao maqueiro cabe atender às orientações da equipe assistencial. Porém, diante da falta de treinamento específico e da inexperiência demonstrada pelos trabalhadores recém-contratados, o maqueiro põe em evidência sua experiência como um recurso simbólico em prol da realização de cuidados necessários a um transporte seguro, rompendo assim hierarquias profissionais e regras institucionais (e sua invisibilidade!), expondo-se a conflitos no trabalho.

A equipe de higienização, por sua vez, também teve seu papel ampliado e o trabalho intensificado durante a pandemia, atuando de maneira fundamental para o êxito no controle dos riscos de infecção na unidade hospitalar:

Para alguém entrar nesse setor, na parte de uma sala, tocar em alguma coisa, a gente tinha que higienizar, se não higienizasse ele ficava com medo pegar COVID. Muitos entenderam nas enfermarias, técnicos de enfermagem, enfermeiro… [que] se não fosse a gente, [se] a equipe não limpasse superfícies… eles não tocavam em [muita coisa]: em material, porta, janela, em muitos lugares, na cama (HIG5).

Durante a pandemia de COVID-19, a limpeza de superfícies e materiais em ambientes hospitalares foi reforçada, considerando a possibilidade de transmissão do vírus por fômites. Além de ter a carga de trabalho aumentada, as equipes de higienização trabalharam sob vigilância mais intensa: A gente já era cobrado direto, tanto da diretoria e tudo… Então a gente mantinha o foco de sempre ter mais atenção… (HIG5). O conhecimento dos riscos de infecção e o medo de se contaminar, também aumentados durante a pandemia, contribuíram para que a equipe assistencial e de gestão observasse o caráter indispensável do trabalho invisível da limpeza, também assim considerado pela própria equipe de higienização.

Discussão

Tendo em perspectiva os resultados apresentados e as perguntas lançadas na seção metodológica, podemos dizer que o conjunto dos resultados reforça a relevância da díade essencialidade/invisibilidade como chave de análise para a compreensão das experiências relatadas, ao apontar contradições vivenciadas pelos trabalhadores de apoio de modo mais intenso no contexto da pandemia.

Foram identificados processos de desvalorização e de invisibilização das atividades descritas e dos próprios trabalhadores de apoio. Também foram descritas formas circunstanciais de valorização e de visibilização de seu trabalho, a partir do reconhecimento de sua essencialidade. Porém, tal reconhecimento não se expressou em melhorias concretas nas condições de trabalho e/ou ganhos nas recompensas materiais desses trabalhadores. Além disso, não obstante a piora de suas condições de trabalho, não foram relatadas ações institucionais programáticas de proteção e suporte especificamente dirigidas aos trabalhadores de apoio. Nesse sentido, podemos lançar a hipótese de que, na pandemia, a visibilização da essencialidade do trabalhador de apoio ficou limitada à esfera das relações interpessoais, sem gerar mudanças nas relações de poder estabelecidas no espaço hospitalar, melhorias nas condições de trabalho ou conquistas trabalhistas.

Essa situação é ainda mais problemática quando consideramos a contribuição efetiva dos trabalhadores de apoio no enfrentamento da pandemia, sem a qual não seria alcançado o padrão de excelência do referido hospital. O efeito negativo da invisibilidade desse trabalho sobre a saúde do trabalhador também fica reforçado quando consideramos o alto nível de pressão emocional e física sob o qual esses trabalhadores atuaram, mantendo forte compromisso institucional, mesmo diante da ampliação da quantidade e dos tipos de atividades a serem realizadas1919 Vieira M, Chinelli F. Relação contemporânea entre trabalho, qualificação e reconhecimento: repercussões sobre os trabalhadores técnicos do SUS. Cien Saude Colet 2013; 18(6):1591-1600., da supressão de folgas e da ampliação de seus turnos de trabalho, em vista do dimensionamento inadequado da força de trabalho. Essa situação envolveu forte senso de realização desses trabalhadores relacionado à contribuição de seu trabalho e ao sacrifício pessoal para se manterem em atividade, conforme já identificado na literatura1515 Sharma D, Ghosh K, Mishra M, Anand S. You stay home, but we can't: invisible 'dirty' work as calling amid COVID-19 pandemic. J Vocat Behav 2022; 132:103667..

Em um cenário de adaptações frequentes, muitos impactos nas rotinas de trabalho foram absorvidos pelo pessoal de apoio. Eles mobilizaram os saberes produzidos no cotidiano do trabalho para contribuir efetivamente com a qualidade, eficiência operacional, segurança e o planejamento estratégico do trabalho assistencial, protegendo as equipes clínicas e pacientes de acidentes, eventos adversos e contaminações.

Porém, em uma sociedade de matriz escravocrata como a brasileira, o trabalho executado em serviços braçais costuma ser visto como servil e os trabalhadores responsáveis por essas atividades recebem baixos salários, têm menos vantagens e proteções trabalhistas e menor reconhecimento do Estado (por meio de regulamentações e políticas públicas). Essas são características próprias ao trabalho formal invisível, reforçadas por desigualdades sociais mais amplas (gênero, raça, classe social) que dificultam ainda mais uma mudança de status ocupacional2020 Andrade CB, Bitencourt SM, Vedovato TG, Santos DL. Trabalhadoras da higiene e limpeza hospitalar na pandemia da COVID-19: entre as (in) visibilidades e o reconhecimento no trabalho. In: Iguti AM, Monteiro, I, organizadoras. Invisível, mas essencial: olhares sobre o trabalho pouco qualificado. Campinas: BFCM - Unicamp; 2020. p. 66-79..

Em consonância com a literatura científica sobre a invisibilidade do trabalho, identificamos a redução dos trabalhadores de apoio às funções que desempenham, abstraindo do processo as pessoas que as executaram, em uma espécie de deslegitimação da experiência desses trabalhadores99 Poster WR, Crain M, Cherry M. Introduction: conceptualizing invisible work. In: Crain M, Poster WR, Cherry M, editors. Invisible labor: hidden work in the contemporary work. Oakland: University of California Press; 2016. p. 25-69.. Essa desvalorização foi expressa por nossos entrevistados pela noção de desprezo. No caso dos trabalhadores de higienização, denota-se um processo de estigmatização relacionado à noção de “trabalho sujo” que opera a depreciação moral do trabalhador. Para os maqueiros, o desprezo esteve mais relacionado ao desprestígio ocupacional e à desvalorização do nível de formação desses trabalhadores. Já os trabalhadores administrativos precisaram lidar com um dimensionamento inadequado da força de trabalho, apesar da sobrecarga, sendo desconsiderados em suas necessidades.

Essas situações provavelmente também remetem a um “não lugar” desses trabalhadores como profissionais de saúde22 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pandemia reafirma invisibilidade de 2 milhões de trabalhadores da área da saúde [Internet]. 2022. [acessado 2022 maio 10]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pandemia-reafirma-invisibilidade-de-2-milhoes-de-trabalhadores-da-area-da-saude
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, que apaga a interdependência entre o trabalho clínico e de apoio.

Porém, o sentido de desprezo foi relativizado por reconhecimentos pontuais, presentes em apenas um relato. Resultado semelhante foi constatado entre trabalhadores de higienização hospitalar durante a pandemia: o aumento da carga de trabalho dissociado do reconhecimento para além de pequenas expressões de agradecimento1515 Sharma D, Ghosh K, Mishra M, Anand S. You stay home, but we can't: invisible 'dirty' work as calling amid COVID-19 pandemic. J Vocat Behav 2022; 132:103667.,2020 Andrade CB, Bitencourt SM, Vedovato TG, Santos DL. Trabalhadoras da higiene e limpeza hospitalar na pandemia da COVID-19: entre as (in) visibilidades e o reconhecimento no trabalho. In: Iguti AM, Monteiro, I, organizadoras. Invisível, mas essencial: olhares sobre o trabalho pouco qualificado. Campinas: BFCM - Unicamp; 2020. p. 66-79..

O compromisso moral desses trabalhadores se destaca, por um lado, no empenho para cumprir com as tarefas prescritas, e por outro ao assumirem com autoconfiança suas experiências e saberes para intervir em situações identificadas como de perigo potencial para os pacientes (maqueiro), para os colegas de trabalho (agente de limpeza) e para a instituição (auxiliar administrativa), mesmo quando isso levou a conflitos e sobretrabalho, relacionados ou não ao escopo de suas atividades precípuas.

O trabalho considerado simples, básico e repetitivo tornou-se mais exigente, complexo e ordenado por protocolos. Os trabalhadores operaram ajustes entre o trabalho prescrito e o trabalho real que podem ser analisados a partir da categoria “dramáticas do uso de si”, proposta pela ergologia. Para Schwartz2121 Schwartz Y. Travail et usage de soi. In: Bertrand M, Sève L, Clot Y, Scwartz Y. Je, Sur l'Individualité. Paris: Messidor//Éditions sociales; 1987. p. 181-207., o uso de si se realiza “através das escolhas de que uso se quer fazer frente aos usos que os outros querem fazer de nós”2222 Scherer MDA, Pires DE, Prado NMBL, Menezes ELC. Entrevista: Yves Schwartz. Trab Educ Saúde 2022; 20:e00336166.. Trata-se de escolhas conscientes ou não, uma vez que somos um corpo histórico “disciplinado pelas aprendizagens e experiências de prévias renormalizações, que trazem saberes e valores conscientes... e [estão] disseminados dentro do nosso corpo”2222 Scherer MDA, Pires DE, Prado NMBL, Menezes ELC. Entrevista: Yves Schwartz. Trab Educ Saúde 2022; 20:e00336166..

A estratégia assumida pelo maqueiro e pela auxiliar administrativa, ao colocarem em evidência sua experiência de trabalho para além do esperado para suas funções, pode ser entendida como expressão dessa dramática do uso de si para operar uma atualização das normas prévias. Nesse sentido, o conflito não é apenas, e em primeiro lugar, interpessoal. Antes de mais nada, expressa uma disputa entre o “uso de si mesmo” (aquilo que o sujeito faz dele mesmo) e o “uso de si pelos outros”. Portanto, expressa uma luta por autonomia no trabalho e pela definição dos sentidos do trabalho.

Trata-se de um trabalho de bastidor, invisível, mas que ganha a cena principal no conflito, quando os trabalhadores de apoio mobilizam seu saber-fazer e seu raciocínio prático1717 Coulon A. Etnometodologia e pesquisa qualitativa em saúde: observar, ouvir e descrever. Rev. FAEEBA - Ed. e Contemp 2019; 28(56):33-43. para enfrentar as situações de trabalho que exigem adaptação, resolutividade e agilidade em contextos institucionais cambiantes que requisitam “uma avaliação crítica sobre as normas antecedentes”2222 Scherer MDA, Pires DE, Prado NMBL, Menezes ELC. Entrevista: Yves Schwartz. Trab Educ Saúde 2022; 20:e00336166. e a elaboração de novos arranjos organizacionais.

O reconhecimento dessas atividades circunscrito ao âmbito interpessoal - a partir de elogios das chefias imediatas ou de agradecimentos generalizantes das gestões máximas - limita o potencial de (auto)organização e valorização dessas categorias na instituição e no contexto social mais amplo, reduzindo as possibilidades de mudança desse cenário. Um estudo com trabalhadores de higienização de um hospital canadense apontou que, apesar de empreenderem esforços para se desvincularem de estereótipos negativos associados ao seu trabalho, eles recebem pouco apoio de gestores e de colegas que ocupam postos hierarquicamente superiores para o efetivo combate de sua invisibilidade e a conquista de maior respeito2323 Messing K. Hospital trash: cleaners speak of their role in disease prevention. Med Anthropol Q 1998; 12(2):168-187.. A ausência de estudos sobre essa situação no campo da saúde do trabalhador no Brasil dificulta a discussão do tema e a transformação desse contexto22 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pandemia reafirma invisibilidade de 2 milhões de trabalhadores da área da saúde [Internet]. 2022. [acessado 2022 maio 10]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pandemia-reafirma-invisibilidade-de-2-milhoes-de-trabalhadores-da-area-da-saude
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Por fim, o trabalho extraordinário desenvolvido pelas equipes de apoio no contexto da pandemia não passa incólume em suas vidas, já que o estresse que dele resulta se reflete em impactos emocionais, aspecto que merece ser melhor analisado no âmbito das pesquisas em saúde do trabalhador. A constituição de redes de apoio mútuo e troca de experiências entre colegas emergem, na análise apresentada, como uma possibilidade de resistir ao desgaste produzido no cotidiano de trabalho no hospital, especialmente em crises sanitárias que colocam em evidência a vida e a morte.

Considerações finais

As categorias trabalho invisível e trabalho sujo se mostraram pertinentes para a compreensão das experiências dos trabalhadores de apoio no ambiente hospitalar. Juntamente com a noção de essencialidade, tais categorias permitiram analisar processos de (des)valorização material e simbólica desses trabalhadores. Durante a pandemia de COVID-19, esses profissionais lidaram com sobrecarga de trabalho, desprezo e baixo suporte de proteção, principalmente da saúde mental, mas se mantiveram ativos, apesar dos conflitos e das sobrecargas de trabalho enfrentados.

Em meio a tais contradições, os trabalhadores de apoio contribuíram para o êxito do processo de trabalho em saúde, a partir de sua experiência e compromisso moral com o desempenho de suas funções, proporcionando uma atmosfera suficientemente segura para pacientes e outros trabalhadores. O presente estudo demonstrou a potencialidade da díade essencialidade-invisibilidade para analisar processos contraditórios presentes no cotidiano de trabalhadores de apoio em hospitais, enfatizando a necessidade de uma mudança da cultura institucional e do reconhecimento formal com ganhos simbólicos e materiais que venham a alterar suas condições de trabalho, fortalecer direitos trabalhistas e promover valorização.

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  • Financiamento

    Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde (MS).

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
  • Publicado
    28 Set 2022
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