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Características do trabalho do agente comunitário de saúde na pandemia de COVID-19 em municípios do Nordeste brasileiro

Resumo

Os agentes comunitários de saúde (ACS) compuseram uma força de trabalho na linha de frente dos sistemas de saúde no combate a COVID-19. O trabalho identificou as condições estruturais para organização e caracterização do trabalho dos ACS em três municípios do Nordeste brasileiro no período pandêmico. Realizou-se um estudo qualitativo de casos múltiplos. Foram entrevistados 28 sujeitos entre agentes comunitários e gestores municipais. A produção dos dados cotejou as entrevistas com a análise documental. As categorias operacionais que emergiram da análise dos dados foram: condições estruturais e características das atividades. Os resultados deste estudo revelaram escassez nas condições estruturais das unidades de saúde, que durante a pandemia passou por adaptações improvisadas em seus espaços internos. Quanto às características do trabalho, evidenciaram-se ações permeadas por aspectos burocráticos de cunho administrativo no interior das unidades de saúde, acarretando o esvaziamento de sua função vincular de articulação territorial e mobilização comunitária. Assim, as alterações em seu trabalho podem ser vistas como sinalizadores da fragilização do sistema de saúde e, especialmente, da atenção primária à saúde.

Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Agentes comunitários de saúde; Orientação comunitária; COVID-19

Abstract

The community health agents (CHAs) comprised the workforce at the forefront of health systems in the fight against COVID-19. The study identified the structural conditions for organizing and characterizing the work of CHAs in three municipalities of northeastern Brazil during the pandemic period. A qualitative study of multiple cases was carried out. Twenty-eight subjects were interviewed, including community agents and municipal managers. Data production assessed the interviews with document analysis. The operational categories that emerged from the data analysis were: structural conditions and characteristics of the activities. The results of this study disclosed the scarcity of the structural conditions in the health units, which during the pandemic made improvised adaptations of the internal spaces. As for the work characteristics, actions permeated by bureaucratic aspects of an administrative nature were evidenced in the health units, resulting in the elimination of their binding function of territorial articulation and community mobilization. Thus, changes in their work can be seen as signs of the fragility of the health system and, especially, of primary health care.

Key words:
Primary health care; Community health workers; Community orientation; COVID-19

Introdução

Em sistemas universais de saúde, a atenção primária à saúde (APS) é preferencialmente o primeiro contato dos pacientes com os serviços de saúde11 Verhoeven V, Tsakitzidis G, Philips H, Van Royen, P. Impact of the COVID-19 pandemic on the core functions of primary care: will the cure be worse than the disease? A qualitative interview study in Flemish GPs. BMJ open 2020; 10(6):e039674.,22 Boyce MR, Katz R. Community health workers and pandemic preparedness: current and prospective roles. Frontiers Public Health 2019; 7:62.. Durante a crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, em muitos países a APS não desempenhou um papel central na resposta governamental, cujas principais estratégias se concentraram no atendimento aos casos em serviços de emergência e hospitalares33 Krist AH, DeVoe JE, Cheng A, Ehrlich T, Jones SM. Redesigning primary care to address the COVID-19 pandemic in the midst of the pandemic. Ann Fam Med 2020; 18(4):349-354.,44 Giovanella L, Vega R, Tejerina-Silva H, Acosta-Ramirez N, Parada-Lezcano M, Ríos G, Iturrieta D, Almeida PF, Feo O. Is comprehensive primary health care part of the response to the COVID-19 pandemic in Latin America? Trab Educ Saude 2020; 19:e00310142..

Experiências prévias no enfrentamento de epidemias, a exemplo do ebola, da síndrome respiratória aguda grave (SARS), da síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), da zika e da H1N155 Miller NP, Milsom P, Johnson G, Bedford J, Kapeu AS, Diallo AO, Hassen K, Rafique N, Islam K, Camara R, Kandeh J, Wesseh CS, Rasanathan K, Zambruni JP, Papowitz H. Community health workers during the Ebola outbreak in Guinea, Liberia, and Sierra Leone. J Glob Health 2018; 8(2):020601., evidenciaram a importância da APS na organização de respostas sociais e comunitárias com vistas à contenção da transmissão. Recomendações atuais para o enfrentamento da pandemia destacam o potencial da ação comunitária para a compreensão das diferentes dinâmicas sociais nas comunidades que subsidiam estratégias de controle para minimizar o impacto da pandemia66 World Health Organization (WHO). Risk communication and community engagement readiness and response to coronavirus disease (COVID-19): interim guidance [Internet]. [cited 2022 nov 10]. 2020. Available from: file:///C:/Users/luis.valdetaro/Downloads/WHO-2019-nCoV-RCCE-2020.2-eng.pdf,77 Sohrabi C, Alsafi, Z O'neill N, Khan M, Kerwan A, Al-Jabir A, Iosifidis C, Agha, R. World Health Organization declares global emergency: a review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). Int J Surg 2020; 76:71-76..

No caso do Brasil, dada a existência de um sistema universal de saúde reconhecido internacionalmente, esperava-se que o país fosse um caso de sucesso na resposta à pandemia88 Castro M. Lack of federal leadership hinders Brazil's COVID-19 response [Internet]. Harvard Public Health School. 2020. [cited 2022 nov 10]. Available from: https://www.hsph.harvard.edu/news/features/brazil-covid-marcia-castro/
https://www.hsph.harvard.edu/news/featur...
. As expectativas foram baseadas na capilaridade do sistema, na experiência da APS em emergências de saúde anteriores, como zika e H1N1, na existência de um modelo de atenção à saúde de base territorial com agentes comunitários de saúde (ACS)22 Boyce MR, Katz R. Community health workers and pandemic preparedness: current and prospective roles. Frontiers Public Health 2019; 7:62..

Os ACS, por sua familiaridade com o contexto local e a relação contínua que estabelecem com a comunidade e as equipes de APS, compõem uma força de trabalho na linha de frente dos sistemas de saúde que poderia assumir papel central na resposta, desenvolvendo intervenções de engajamento social seguras, viáveis e aceitáveis ​​para subsidiar as respostas comunitárias à COVID-1999 Bhaumik S, Moola S, Tyagi J, Nambiar D, Kakoti M. Community health workers for pandemic response: a rapid evidence synthesis. BMJ Glob Health 2020; 5(6):e002769.,1010 Gilmore B, Ndejjo R, Tchetchia A, De Claro V, Mago E, Lopes C, Bhattacharyya S. Community engagement for COVID-19 prevention and control: a rapid evidence synthesis. BMJ Glob Health 2020; 5(10):e003188..

No entanto, a resposta do governo federal quanto ao direcionamento normativo para a reorganização do trabalho dos ACS na APS foi permeada por racionalidades utilitaristas, com foco no trabalho administrativo, em conformidade com normativas identificadas nos últimos anos, exacerbadas pela pandemia1111 Fernandez M, Lotta G, Corrêa M. Challenges for Primary Health Care in Brazil: an analysis on the labor of community health workers during a COVID-19 pandemic. Trab Educ Saude 2021; 19:e00321153..

Dessa forma, ainda que possam ter ocorrido modificações nas atividades relacionadas ao trabalho dos ACS88 Castro M. Lack of federal leadership hinders Brazil's COVID-19 response [Internet]. Harvard Public Health School. 2020. [cited 2022 nov 10]. Available from: https://www.hsph.harvard.edu/news/features/brazil-covid-marcia-castro/
https://www.hsph.harvard.edu/news/featur...
,1212 Fernandez M, Lotta G. How community health workers are facing COVID-19 pandemic in Brazil: personal feelings, access to resources and working process. Arch Fam Med General Pract 2020; 5(1):115-122.

13 Morosini MV, Fonseca A. Os agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde no Brasil: inventário de conquistas e desafios. Saude Debate 2018; 42:261-274.
-1414 Lotta G, Nunes J, Fernandez M, Correa MG. The impact of the COVID-19 pandemic in the frontline health workforce: perceptions of vulnerability of Brazil's community health workers. Health Policy Open 2022; 3:100065., a literatura trouxe poucos elementos para compreensão das características centrais do trabalho desses profissionais na resposta à COVID-19. Este artigo objetiva identificar a organização e caracterizar o trabalho dos ACS, bem como os elementos potencializadores e limitantes dessa prática no âmbito da APS, em três municípios do Nordeste brasileiro no período pandêmico compreendido entre janeiro de 2020 e agosto de 2021.

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo, de natureza qualitativa, que utilizou como estratégia de investigação o estudo de casos múltiplos1515 Yin, RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman; 2015. em três municípios, sedes de regiões de saúde no estado da Bahia, no período compreendido de janeiro de 2020 a agosto de 2021.

O estudo é parte da pesquisa “Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia da COVID-19 (2020-2022)”, financiada pela chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit nº 07/2020, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, parecer nº 4.420.126, de 25 de novembro de 2020.

Características dos municípios

Os municípios estudados são de distintas regiões de saúde do Nordeste brasileiro, mais especificamente das regiões Leste, Centro-Leste e Sudoeste do estado da Bahia.

Na Bahia, em 2020, a taxa de cobertura da APS alcançou o percentual de 84,34%, e a da Estratégia Saúde da Família foi de 77,54%. No mesmo período, 100% das Equipes de Saúde da Família (EqSF) do estado foram cofinanciadas com recursos estaduais. Em 2021, a cobertura de APS foi de 73,77%, enquanto a cobertura de ESF ficou em 79,23%1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). E-Gestor, Informação e Gestão da Atenção Básica [Internet]. [acessado 2022 nov 12]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relCoberturaAPSCadastro.xhtml
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No município M1, a organização administrativa da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) contempla 12 distritos sanitários. Em 2020, cerca de 56,36% da população estava coberta pelos serviços de APS, passando a 51,67% em 2021. Em 2020, contava com 155 Unidades de Atenção Primária à Saúde, sendo 46 Unidades Básicas em Saúde da Família (USF) e 109 Unidades Básicas de Saúde (UBS) com Estratégia de Saúde da Família (ESF), com 359 EqSF implantadas, cinco equipes de Consultório na Rua (CR) e 12 Núcleos Ampliados de Saúde da Família - NASF1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). E-Gestor, Informação e Gestão da Atenção Básica [Internet]. [acessado 2022 nov 12]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relCoberturaAPSCadastro.xhtml
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O sistema de saúde do município M2 conta com uma ampla rede de serviços que perpassam os vários níveis de atenção à saúde e são referências para a macroregião Sudoeste da Bahia. Em 2020, apresentava cobertura da atenção básica superior a 61,65% e cobertura da ESF equivalente a 48,48%, e em 2021 as coberturas foram de 57,80% e 50,20%, respectivamente. O município M3 congrega cinco regiões de saúde. Em 2020, contava com uma cobertura da atenção básica de 83,45%, com 22 equipes e 66,21% de EqSF, e em 2021 foram 64,59% e 63,17%, respectivamente1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). E-Gestor, Informação e Gestão da Atenção Básica [Internet]. [acessado 2022 nov 12]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relCoberturaAPSCadastro.xhtml
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A taxa de cobertura de ACS em 2020 oscilaram mensalmente, aumentando ou diminuindo. No município M1, variou de 24,96% para 26,90% (não necessariamente em ordem crescente). Em M3 oscilou entre 60,88% a 75,47% (não necessariamente em ordem crescente). E em M2 variou de 87,19% a 90,39%1616 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). E-Gestor, Informação e Gestão da Atenção Básica [Internet]. [acessado 2022 nov 12]. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relCoberturaAPSCadastro.xhtml
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Participantes do estudo

Foram entrevistados 28 sujeitos, selecionados por conveniência, incluindo os secretários e subsecretários municipais, com o total de dez gestores, apoiadores e técnicos de atenção básica e 18 agentes comunitários de saúde. Em relação aos gestores, foram feitas cinco entrevistas em M2, três em M3 e duas em M1. Entre os ACS foram selecionados três em M2, dois lotados em duas USF da zona rural e um em uma USF da zona urbana, quatro em M3, distribuídos em quatro USF da zona rural e quatro USF/US na zona urbana, e 11 em M1.

A maioria do(as) ACS eram do gênero feminino, com raça/cor preta, escolaridade distribuída de maneira uniforme entre ensino médio e superior, atuando em unidades de Saúde da Família, com variação de tempo de serviço entre 15 e 20 anos.

Produção dos dados

A produção dos dados foi obtida mediante cotejamento das entrevistas com a análise documental para compor as informações acerca do objeto do estudo. Foram elaborados roteiros específicos para os gestores e profissionais de saúde, com indagações sobre o trabalho do ACS durante o período de análise.

No primeiro momento, procedeu-se à transcrição, à leitura e à revisão de todas as entrevistas com os ACS e gestores selecionados. Posteriormente, uma planilha de processamento foi elaborada a partir do agrupamento de respostas dos entrevistados. A organização dos excertos textuais direcionou a análise dos dados das entrevistas.

A análise documental (Quadro 1) compreendeu a identificação de normas, portarias, decretos, leis, planos, programas, projetos e boletins informativos emitidos pelos três municípios e a recomendações da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) durante o período analisado, cujo conteúdo se relacionavam com as recomendações para a organização estrutural e material das unidades e as atividades específicas dos ACS no âmbito da APS.

Quadro 1
Síntese do conteúdo propositivo de normativas do Ministério da Saúde, da Secretaria de Atenção Básica e dos municípios analisados sobre o trabalho do ACS, entre janeiro de 2020 e agosto de 2021.

A análise dos dados foi orientada a partir de duas categorias analíticas oriundas da teoria do processo de trabalho em saúde de Mendes-Gonçalves1717 Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec, Abrasco; 1994., a saber: a) os meios/condições de trabalho; e b) o trabalho propriamente dito. Os meios e condições de trabalho se combinam para assegurar a realização do trabalho. Eles abrangeram as ferramentas e estruturas físicas para o trabalho, como equipamentos, instrumentos, estabelecimentos e o ambiente, além dos conhecimentos, saberes e habilidades utilizados no processo de trabalho.

No presente estudo, considerou-se para fins de análise apenas as condições estruturais e materiais para o trabalho. Quanto ao trabalho propriamente dito, referiu-se ao conteúdo das atividades desenvolvidas pelos ACS. Assim, a partir das categorias de análise, foram definidas duas categorias operacionais que orientaram a interpretação dos resultados: a) condições estruturais para organização do trabalho; e b) características das atividades relacionadas ao trabalho do ACS (Quadro 2).

Quadro 2
Categorias de análise.

Foram selecionados alguns trechos das entrevistas para evidenciar os resultados, elegendo os mais expressivos e que melhor representavam as proposições e o conjunto de dados. Esses excertos serviram como amostra da robustez da categorização do material bruto coletado.

Resultados

Condições estruturais para organização do trabalho

Quanto à estrutura física e à necessidade de adequações da unidade de saúde, para o desempenho das atividades dos ACS, ressalta-se que entre os municípios estudados não houve melhorias quanto à estrutura física das unidades, apenas adaptações que respondessem à necessidade de distanciamento dos casos suspeitos dos demais usuários.

Houve mudança ou adaptação na ambiência física da UBS, nós tínhamos uma sala onde nós atendemos os casos suspeitos de COVID-19 (EPFSA2).

Nos três municípios pesquisados houve a separação dos atendimentos para os casos suspeitos e confirmados, com o uso de salas específicas para atendimento de sintomáticos respiratórios. Além disso, foram improvisadas barreiras físicas, com o uso de cadeiras e fitas, e restrição do número de assentos para evitar aglomerações dentro das UBS/USF.

Essa parte colocou as divisórias na sala de espera para o distanciamento social na USF. [...] tinha uma sala específica de COVID-19 só para atender essas pessoas (EPVDC1).

Os assentos têm o espaçamento das demarcações, tudo para garantir o mínimo de contágio possível não só para os pacientes, mas para os funcionários da unidade. [...] Na arrumação tivemos que fazer adaptação dos assentos e limitar os assentos, colocar distanciamento no balcão, estabelecer um limite entre o paciente e o funcionário ali na entrada da farmácia (EPSSA19).

Aqui na USF foi o isolamento, a gente não teve a sala de isolamento para atendimento de COVID-19 [...]. Não foi mudado o físico não. A gente teve uma adaptação que os profissionais de saúde mesmo fizeram por sua conta [...] Tirando isso não teve nenhuma outra alteração (EPFSA3).

Cabe ressaltar que, para o município M3, não foram encontrados documentos que se referissem à reorganização do trabalho do ACS durante o período da pandemia. Segundo os documentos analisados, principalmente do município M1, novas atribuições foram incorporadas ao trabalho dos ACS para o período pandêmico, com ênfase na utilização de tecnologias de informação e comunicação em saúde (TICs) e de mídias sociais como alternativa para a manutenção do contato contínuo com os usuários, frente às medidas de distanciamento social e limitações quanto às visitas domiciliares. Porém, apenas no município M2 houve aquisição, embora insuficiente, de aparelhos telefônicos, computadores ou tablets para comunicação remota com usuários.

[...] já havíamos recebido os tablets. [...] não foi comprado no momento da pandemia, já tínhamos esses equipamentos. [...] Até que recebemos um aparelho em meados do ano passado que seria utilizado para isso, mas o aparelho não durou muito tempo na unidade. E acabamos usando o pessoal mesmo, que é um acesso mais fácil e mais rápido (PVDC 3).

Nos municípios M2 e M3, nota-se a dificuldade dos ACS da zona rural com o acesso à internet e a falta de equipamentos básicos de informática, sendo necessário o deslocamento até a sede.

Não tem internet, não tem internet disponível na USF (EPVDC1).

A USF não dispõe de sistema para atender os usuários. No caso de imprimir um cartão do SUS, a gente tem que ir pra secretaria de saúde ou uma policlínica (EPFSA3).

Nas entrevistas dos ACS, percebe-se que os únicos equipamentos utilizado por eles, além de seus telefones pessoais, foram os tablets que já haviam sido adquiridos antes do período pandêmico. Torna-se importante ressaltar que em várias unidades já havia insuficiência desses dispositivos e que durante o período pandêmico nada foi feito para melhorar ou adquirir tais ferramentas.

Acredito que não houve aquisição de equipamentos. Com certeza sim, uso meu telefone pessoal. Não foi adquirido na pandemia nosso tablet. É de trabalho mesmo (EPSSA5).

Não, nenhum tipo[...] Não, inclusive na USF nem tem telefone fixo, que está quebrado, e aqui não tem sistema eletrônico. A gente não tem disponibilidade de sistema. Só os ACS têm o trabalho com os tablets, tirando essa parte que a gente não tem (EPFSA3).

Apesar de não ser consenso entre os ACS entrevistados, a maioria demonstrou insatisfação com relação às informações recebidas e à escassez de capacitações específicas para as suas atribuições.

Não houve nenhum treinamento pra gente, não houve capacitação ou treinamento sobre a COVID-19 [...] não ofereceram nenhum curso (EPFSA5).

Foi uma vez, só que quando começou e a gente ficou em uma sala e foi até online com a secretaria. [... ] Tava ruim a internet. Depois disso a gente não teve capacitação nenhuma. Só foi essa mesmo [...] (EPSSA7).

Em M2 a gestão menciona a oferta de capacitações em relação ao protocolo adotado para o desempenho das atribuições dos ACS.

Nós inclusive pegamos a experiência do Rio de Janeiro, montamos um protocolo, fizemos capacitação com todos os agentes comunitários, primeiro com as enfermeiras supervisoras, e depois disso, com a aprovação delas, a gente encaminhou isso para os agentes comunitários (EGVDC9).

Nas entrevistas dos ACS, o que se percebe é o repasse de informações pelo profissional da enfermagem, e não capacitações específicas para o trabalhador comunitário.

Participei de algumas orientações com a enfermeira da unidade. [...] Foi o protocolo do Ministério da Saúde, sinais e sintomas do Sars-Cov-2, orientações quanto ao processo de trabalho das novas orientações (EPVDC8).

Outra questão observada foi o papel do profissional da enfermagem como responsável pelo repasse de informações e capacitações recebidas para os ACS.

A enfermeira, ela tem participado de algumas capacitações que ela sempre passa para a gente em reuniões de equipe. O que temos tido de contato com essas capacitações é assim (EPVDC3).

Nosso treinamento foi mais de uma forma espontânea. Nossas enfermeiras têm acesso a cursos online. Cursos que dão aparato sobre o enfrentamento da COVID-19. E elas jogavam nos grupos e acabávamos nos inscrevendo e fazendo alguns cursos online. Mas por conta própria, não que a Secretaria estivesse disponível (EPSSA19).

Características das atividades relacionadas ao trabalho dos ACS

Durante a pandemia, frente à necessidade de distanciamento social, a recomendação a respeito de visitas era de que deveriam ser circunscritas aos espaços peridomiciliares. O que de fato ocorreu nos três municípios pesquisados.

Porque os ACS não pararam de fazer visita, não só não estava adentrando o domicílio, mas não deixou de acompanhar as famílias e fazer visitas domiciliares. [...] Está funcionando normalmente as visitas domiciliares, só não é permitida a entrada no domicílio. Mas está acontecendo visitas peridomiciliares ainda. [...] Desde o início da pandemia foram assim as visitas peridomiciliares (EPVDC8).

Mas não deixamos de fazer a visita domiciliar porque o nosso trabalho só não podia entrar, mas da porta a gente falava com os moradores (EPSSA9).

Teve alteração, mas agora já está voltando ao normal. Só ainda a questão da entrada do domicílio que a gente ainda está esperando regularizar [...] a gente não parou de fazer as visitas domiciliares. A gente teve que manter distanciamento por conta disso da pandemia (EPFSA3).

As visitas peridomiciliares foram destinadas prioritariamente a grupos de risco, em apoio às ações de vigilância em saúde, fornecendo orientação, busca ativa e monitoramento de casos suspeitos e confirmados.

A gente fez o monitoramento online de casos também do pessoal com COVID, de casa fazia esse monitoramento de casos, fazia busca também nas casas pra saber se tinha ido pro médico, como que estavam os sintomas, se tinha agravado, tudo isso a gente estava fazendo mas não deixou de realizar as visita domiciliar (EPFSA1).

O agente comunitário que, quando vai nas casas, sempre reforça a questão do uso do distanciamento, do uso da máscara, da questão do álcool gel [...] (EPSSA1).

Os ACS entrevistados demonstraram insatisfação quanto aos desvios de suas atribuições, que passaram a se concentrar no trabalho interno nas unidades de saúde, em funções de portaria, higienização, triagem dos pacientes, entre outras.

Tem um ACS que fica na unidade fazendo essa triagem, antes de o paciente entrar na unidade a gente faz essa triagem [...] Então eu acho que cada vez mais o nosso trabalho vai perdendo um pouco da característica que é o essencial, né? (EPSSA1).

O ACS foi ser o porteiro da USF [...] os ACS estão todos envolvidos na vacina COVID, e não envolvido em visita domiciliar. É um questionamento que também está sendo feito pelo sindicato e pela Secretaria de Saúde, porque o ACS não é porteiro (EPSSA11).

A gente começou a ir mais para USF, chegava lá e ajudava as pessoas dentro da USF a fazer uma coisa, dispensar medicamentos, ajudar na triagem, essas coisas, acho que deu uma mudada na rotina (EPVDC1).

Nas entrevistas com os gestores municipais e nos documentos analisados (Quadro 1), evidenciou-se a construção de protocolos para a organização do trabalho do ACS com direcionamento para o interior dos serviços e para ações de vigilância, com apoio às ações de vacinação, drive-thru, monitoramento remoto dos casos suspeitos e confirmados, não viabilizando apoio suficiente para o desempenho do trabalho comunitário e de educação em saúde.

Eu acredito que ele tenha ficado reduzido por conta da aglomeração, por conta do distanciamento, chegar na porta e não poder adentrar na casa [...] A questão do papel foi suprimida, os agentes comunitários têm os tablets para fazer a comunicação (EGVDC1).

E nós tivemos um número considerável de ACS que foram afastados, outros colocados em readaptação funcional dentro da estrutura física da unidade, então alguns foram trabalhar dentro da unidade e ajudavam nesse monitoramento dos casos via telefone [...] (EGFSA9).

Discussão

Os resultados deste estudo evidenciaram alterações no trabalho do ACS durante o período pandêmico nos três municípios, tanto pela intensificação do trabalho quanto por novas demandas, principalmente de cunho administrativo no interior das unidades de saúde. Tais achados corroboram o estudo de Fernandez e colaboradores1111 Fernandez M, Lotta G, Corrêa M. Challenges for Primary Health Care in Brazil: an analysis on the labor of community health workers during a COVID-19 pandemic. Trab Educ Saude 2021; 19:e00321153., que chamam atenção para a descaracterização das práxis do ACS com a interrupção das ações comunitárias, como a de visita domiciliar e territorialização, em detrimento de atividades burocráticas nas unidades de saúde, com organização de salas de espera, apoio na recepção e preenchimento de fichas.

O cenário da pandemia não encontrou condições estruturais físicas das UBS/USF que permitisse adequar os processos de trabalho, em conformidade com as necessidades de segurança sanitária para pacientes e profissionais. Há um déficit estrutural que é histórico nos serviços de APS e que permitiu apenas, como alternativa, a readaptação improvisada dos espaços internos das unidades de saúde, apontado por estudos33 Krist AH, DeVoe JE, Cheng A, Ehrlich T, Jones SM. Redesigning primary care to address the COVID-19 pandemic in the midst of the pandemic. Ann Fam Med 2020; 18(4):349-354.,1818 Silva BRG, Vechi Corrêa AP, Uehara SCDSA. Primary health care organization in the COVID-19 pandemic: scoping review. Rev Saude Publica 2022; 56:94. que, analogamente, analisaram a organização da APS e a capacidade de resposta no contexto pandêmico recente.

Percebe-se que as orientações e recomendações municipais a respeito das atividades dos ACS seguiram as propostas do Ministério da Saúde publicadas pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), com direcionamentos acerca de visita peridomiciliar, alimentação do sistema, fornecimento de EPI’s e monitoramento de casos suspeitos e confirmados, com priorização dos grupos de risco1919 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Orientações gerais sobre a atuação do ACS frente à pandemia de COVID-19 e os registros a serem realizados no e-SUS APS. Brasília: MS; 2020.,2020 Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Recomendações para adequação das ações dos agentes comunitários de saúde frente à atual situação epidemiológica referente ao COVID-19. Brasília: MS; 2020.. Porém, tais documentos abrangem recomendações incipientes, o que dificulta o direcionamento do trabalho comunitário para mitigar o risco de contaminação, proporcionando múltiplas interpretações operacionais e condicionando um processo de trabalho permeado por insegurança e medo para enfrentar a pandemia2121 Quirino TRL, Silva NRB, Machado MF, Souza CD, Lima L FS, Azevedo CC. O trabalho do agente comunitário de saúde frente à pandemia da COVID-19. Saude Soci 2020; 5(1):1299-1314.. De acordo com Bentes2222 Bentes RN. A COVID-19 no Brasil e as atribuições dos agentes comunitários de saúde: desafios e problemáticas enfrentados no cenário nacional de pandemia. Hygeia 2020; Esp:175-182., esses documentos oficiais de orientação do trabalho do ACS não refletem a realidade dos diferentes territórios do país, assim como desconsideram a sobrecarga advinda da pandemia e o acúmulo de demandas pré-existentes.

Diversos países reconhecem as habilidades dos trabalhadores comunitários de saúde para conectar comunidades marginalizadas, fornecer informações e promover comportamentos de saúde, como de isolamento social e higiene correta das mãos, durante a pandemia2323 Shrestha A, Thapa TB, Giri M, Kumar S, Dhobi S, Thapa H, Dhami PP, Shahi R, Ghimire A, Rathaur ES. Knowledge and attitude on prevention of COVID-19 among community health workers in Nepal-a cross-sectional study. BMC Public Health 2021; 21(1):1424.,2424 Gebremedhin T, Abebe H, Wondimu W, Gizaw AT. COVID-19 prevention practices and associated factors among frontline community health workers in Jimma Zone, Southwest Ethiopia. J Multidisciplinary Healthcare 2021; 14:2239-2247.. Para tanto, esses trabalhadores buscaram novas maneiras de alcançar os usuários, incluindo o uso de tecnologias de informação e comunicação, como videoconferências (para quem tem acesso à internet), telefonemas e aplicativo de mensagens2525 Carter J, Hassan S, Walton A. Meeting the needs of vulnerable primary care patients without COVID-19 infections during the pandemic: observations from a community health worker lens. J Prim Care Community Health 2022; 13:21501319211067669., corroborando os resultados deste estudo.

O uso das TICs e de redes sociais para monitoramento das famílias se revelou um desafio na rotina do trabalho dos ACS, seja por equipamentos insuficientes e má qualidade de conexão à internet, seja pela inexistência de capacitações que gerem conhecimento e compreensão a respeito da doença, formas de prevenção e o próprio uso da tecnologia para o desempenho de suas atribuições. Cabe ponderar que a velocidade de ampliação de uso das TICs para garantir condições estruturais para os ACS foi aquém das necessidades de distanciamento social e também das necessidades de continuidade do cuidado via tecnologias remotas no momento de importantes modificações impostas pela crise sanitária às atribuições e demandas para o trabalho dos ACS. Dessa forma, a implementação das TICs, principalmente no trabalho do ACS, categoria com menor visibilidade social na assistência, precisa ser tratada com cautela.

Segundo Lotta e Marques2626 Lotta GS, Marques EC. How social networks affect policy implementation: an analysis of street-level bureaucrats' performance regarding a health policy. Social Policy Administration 2020; 54(7):345-360., a tecnologia não substitui o contato face a face e a abordagem relacional e próxima que esses profissionais realizam nos territórios em que atuam. Isso é consistente com a literatura existente, que sugere que o relacionamento próximo dos ACS com os membros da comunidade ajuda a diminuir a distância entre o sistema de saúde e a comunidade2727 Olateju Z, Olufunlayo T, MacArthur C, Leung C, Taylor B. Community health workers experiences and perceptions of working during the COVID-19 pandemic in Lagos, Nigeria - a qualitative study. PloS One 2022; 17(3):e0265092..

As barreiras de exclusão digital também se colocam como desafios para executar o atendimento a distância e em áreas rurais, como constatado no município M2, que revelou escassez de conectividade à internet na zona rural pesquisada. Vale destacar que os desafios do trabalho comunitário nas zonas rurais dos municípios não devem ser tratados como uma demanda restrita às soluções locais, faz-se necessário um conjunto de iniciativas nacionais, regionais e locais para mitigar a pandemia2828 Costa NDR, Bellas H, Silva PRFD, Carvalho PVRD, Uhr D, Vieira C, Jatobá A. Agentes comunitários de saúde e a pandemia da COVID-19 nas favelas do Brasil. Observatório COVID-19 Fiocruz 2020; 24p.,2929 Edwards M. Rural health workforce response to Australia's 2019/20 natural disasters and emergencies and in particular COVID-19. Rural Remote Health 2023; 23(1):8130..

É necessário acompanhar as mudanças efetivas provocadas nas práticas reais de trabalho, as exigências geradas, as construções sociotécnicas que as materializam, seus efeitos sobre a saúde e as dimensões do trabalho3030 Lotta G, Wenham C, Nunes J, Pimenta DN. Community health workers reveal COVID-19 disaster in Brazil. The Lancet 2020; 396(10248):365-366.. Mesmo assim, em muitos casos sua viabilidade no trabalho em saúde só foi possível com o uso dos aparelhos pessoais dos próprios trabalhadores, como pode ser percebido nesta pesquisa.

No estudo de Singh e Singh3131 Singh SS, Singh LB. Training community health workers for the COVID-19 response, India. Bull World Health Organ 2022; 100(2):108-114., observa-se que os trabalhadores comunitários que receberam capacitação para a COVID-19 tiveram uma percepção de segurança significativamente maior para exercer as atividades rotineiras. Assim, dispor de uma fonte confiável de informações é fundamental para a consolidação das ações territoriais e de cunho comunitário, pois é esse conhecimento que subsidia o trabalho do ACS junto à população, bem como na unidade de saúde3232 Almeida ACM, Nóbrega CDCS, Silva CVSRD, Silva TSD, Saffer DA, Morosini MVGC, Borges CF, Morel CMTM, Petuco DRS, Nogueira ML. Orientações para agentes comunitários de saúde no enfrentamento à COVID-19. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro; 2020.. Logo, a ampliação das atividades de capacitação e treinamento dos ACS deve ser uma decisão estratégica para o fortalecimento das funções da APS.

Nesse contexto de risco existente na circulação pelo território e na visita domiciliar, várias proposições estratégicas versam sobre o cumprimento de normas de biossegurança, tendo em vista que os ACS estão expostos a inumeráveis riscos ocupacionais3333 Soares SL, Abreu CRC. A importância do uso de equipamentos de proteção individual-EPIs pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Rev JRG 2021; 4(8):109-114., devendo incluir a visita com distanciamento (peridomiciliar), a distribuição racional de equipamentos de proteção individual e materiais de higienização e desinfecção, como o álcool em gel, além de capacitações que assegurem o seu uso correto. No estudo realizado por Bhaskar e Arun3434 Bhaskar ME, Arun S. SARS-CoV-2 infection among community health workers in India before and after use of face shields. JAMA 2020; 324(13):1348-1349., observa-se que, com treinamento e uso adequado de protetores faciais durante as visitas domiciliares, houve interrupção da transmissão do vírus entre os agentes comunitários. Segundo Costa e colaboradores2828 Costa NDR, Bellas H, Silva PRFD, Carvalho PVRD, Uhr D, Vieira C, Jatobá A. Agentes comunitários de saúde e a pandemia da COVID-19 nas favelas do Brasil. Observatório COVID-19 Fiocruz 2020; 24p., a falta de capacitação está associada à percepção de insegurança e ao medo dos ACS no desenvolvimento da sua rotina de trabalho.

Em outro estudo brasileiro3535 Monreal TJ, Falcão EO, Araújo MEA, Adania DZ,Santos-Pinto CB. Community health workers and COVID-19 in a Brazilian state capital. Sociol Spectrum 2022; 42(3)27-230., os autores sugeriram que diante da incerteza sobre quanto tempo durará essa emergência sanitária e do papel vital que os ACS desempenham no sistema de saúde brasileiro, os gestores de saúde e a sociedade precisam dar maior atenção a esses profissionais para melhorar a eficácia da resposta à COVID-19 no país.

Por fim, cabe ressaltar que a descontinuação do trabalho de rotina do ACS percebida neste estudo impacta diretamente em suas atribuições inerentes à prevenção e à promoção da saúde com vínculo territorial, que deveriam ser prioritárias para a contenção da transmissão comunitária do vírus, como já constatado em epidemias anteriores. Ainda que permaneçam tarefas de monitoramento, mesmo que adaptadas, de famílias e grupos de risco, já vinham sendo identificadas alterações em suas atividades nos últimos anos, sendo exacerbadas pela pandemia1313 Morosini MV, Fonseca A. Os agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde no Brasil: inventário de conquistas e desafios. Saude Debate 2018; 42:261-274.,2828 Costa NDR, Bellas H, Silva PRFD, Carvalho PVRD, Uhr D, Vieira C, Jatobá A. Agentes comunitários de saúde e a pandemia da COVID-19 nas favelas do Brasil. Observatório COVID-19 Fiocruz 2020; 24p.. Nota-se como o papel de ponte entre comunidade e serviço é sustentado ao mesmo tempo em que se enfraquecem as práticas educativas e de mobilização dos ACS, sendo estas relegadas a segundo plano.

O panorama de rápidas transformações exige que novas estratégias sejam pensadas e implementadas a fim de mitigar as consequências de uma pandemia de tamanha proporção, sobretudo nas dinâmicas de trabalho. Tais resultados podem ser vistos como sinalizadores da fragilização do sistema de saúde, especialmente da atenção primária à saúde.

Há fortes evidências1313 Morosini MV, Fonseca A. Os agentes comunitários na Atenção Primária à Saúde no Brasil: inventário de conquistas e desafios. Saude Debate 2018; 42:261-274.,3636 Maciazeki-Gomes RC, Souza CD, Baggio L, Wachs F. O trabalho do agente comunitário de saúde na perspectiva da educação popular em saúde: possibilidades e desafios. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1637-1646. quanto à contribuição dos ACS na atenção primária à saúde e nos níveis comunitários, tornando-a mais resiliente, o que inclui vigilância, suporte social e engajamento comunitário, porém seu potencial em surtos pode ser subutilizado ou negligenciado. Evidencia-se que o suporte institucional e a formação e educação permanentes para os ACS durante a pandemia foram insuficientes, o que culminou na sua saída de seus territórios, com possível perda de legitimidade profissional, ao mesmo tempo em que revela a desvalorização da APS e da Estratégia da Saúde da Família como modelo de atenção.

A falta de direcionamentos claros que sejam embasados no fortalecimento dos atributos inerentes ao trabalho do ACS, conforme a orientação comunitária e territorial, constitui uma preocupação frente à impossibilidade de execução de ações resolutivas para a consolidação de uma APS forte e robusta para responder adequadamente às necessidades decorrentes de crises sanitárias localizadas ou abrangentes.

Cabe ressaltar possíveis limitações do estudo. Como foram utilizadas tanto a amostragem intencional como a amostragem em bola de neve, nossos resultados podem não indicar as opiniões da maioria dos ACS dos locais estudados. O estudo foi realizado remotamente e houve ocasiões em que a conexão com a internet foi interrompida e a comunicação verbal foi menos clara. Para mitigar essa questão, os participantes foram incentivados a falar abertamente e tranquilizados sobre a confidencialidade. Além disso, notas de campo e reuniões regulares de esclarecimento facilitaram a adoção de um processo reflexivo. Por fim, destaca-se que a saturação dos dados foi totalmente atingida.

A despeito de tais limitações, os resultados apresentados estimulam reflexões sobre o papel do ACS e indicam a necessidade de aprofundar estudos avaliativos sobre o atributo da competência cultural/de orientação comunitária do trabalho na APS em cenários de crises sanitárias na proporção da pandemia de COVID-19. Além de aprofundar aspectos atinentes à potencialidade da orientação comunitária como componente estratégico do trabalho do ACS, devido à relevância crucial para as ações de prevenção, promoção e proteção da saúde da população, importantes para o fortalecimento da APS no enfrentamento de novos desafios no período pós-pandemia.

Agradecimentos

Ao grupo de pesquisa do Programa Integrado para Formação e Avaliação da Atenção Básica (GRAB) do Instituto em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, pelo apoio na organização e no processamento do corpus analítico.

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  • Financiamento

    Este estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit nº 07/2020, como parte da pesquisa “Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia da COVID-19 (2020-2022)”. Além disso, foi concedida bolsa de estudo pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para a autora principal, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (PPGSC-IMS/UFBA).

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2022
  • Aceito
    15 Fev 2023
  • Publicado
    17 Fev 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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