Acessibilidade / Reportar erro

Políticas públicas em tempos de pandemia: os nossos (des)caminhos

Public policies in pandemic times: our (mis)steps

Young, CEF; Mathias, JFCM. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec, 2020

Lançada em 2020, no formato de e-Book, a coletânea Covid-19: Meio Ambiente & Políticas Públicas11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. é dedicada a todas as vítimas da COVID-19, especialmente aos que perderam suas vidas e a de seus familiares. Os autores são pesquisadores do Grupo de Estudos de Economia e Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GEMA/IE/UFRJ).

Os textos da coletânea têm como linha condutora os efeitos da COVID-19, os articulando às políticas públicas, em suas dimensões socioeconômica e ambiental. Trata-se de reflexões dos momentos iniciais e críticos da pandemia, e os questionamentos propostos instigam a pensar no futuro próximo, pós-pandêmico: será possível retornar à “vida normal”? Que mundo herdarão as gerações futuras, agora com a possibilidade real da irrupção repentina de uma nova epidemia mundial? Seremos capazes de construir um “novo normal”, zelando pela biodiversidade do planeta e com distribuição igualitária das riquezas, ou continuaremos degradando o meio ambiente e aprofundando as desigualdades sociais, tão característicos do “velho normal”?

Os textos, de fácil leitura, se dirigem à sociedade em geral. Na primeira parte, composta por cinco artigos, é enfocada a ciência econômica dentro do novo contexto, isto é, os dilemas econômicos diante da pandemia.

São tecidas críticas ao governo federal, como a ausência de medidas planejadas para a contenção da propagação do vírus, exemplarmente demonstradas pela falta de material de teste, a subestimação dos números de casos e a coordenação deficiente das ações programáticas para o combate à COVID-1911 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 33). Ressalta-se que a teoria econômica recomenda, para períodos como esse, uma política pública de renda mínima, garantindo, assim, o poder de compra da população11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 34). Em contrapartida, o governo brasileiro apelou, desde o início da pandemia, para o retorno imediato dos trabalhadores aos serviços, desestimulando as medidas sociais protetoras, medidas essas eficazmente adotadas em outros países.

Há diferenças na maneira como a COVID-19 afeta a população. Segundo estudos nacionais e internacionais, sua maior incidência se dá entre os grupos mais pobres e periféricos das grandes cidades, por serem mais vulneráveis econômica e sanitariamente. O processo de exclusão social desses grupos faz com que acumulem sofrimentos físicos, mentais e espirituais, dores do “corpo e da alma”, não passíveis de mensuração pelo PIB11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 37). O PIB mede somente a atividade econômica, e não a qualidade de vida e bem-estar da população11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 35). Trata-se, portanto, de um falso dilema atribuir a perda do PIB às medidas de proteção adotadas, pois o momento vivido conjuga as crises econômica e sanitária, urgindo serem adotadas soluções novas para combater a recessão econômica que se avizinha.

A pandemia impactou negativamente a economia, empobrecendo setores de serviços, como restaurantes, lojas, academias, levando ao desemprego uma extensa camada da população, agravando a crise econômica já existente. Neste contexto, retorna o debate da ideia de uma renda básica permanente à população vulnerável11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 67).

Questiona-se a ciência econômica que, em momentos de crise, deve abrir-se às múltiplas possibilidades sociais, não se restringindo às medidas econômicas prescritas pelos cânones clássicos. Trata-se de valorizar as pessoas, a vida dos mais vulneráveis que não têm recursos econômicos para sobreviver. O momento pede que a ciência econômica seja vista não apenas como uma ciência fria, de cálculos financeiros, mas, sobretudo, como ciência moral, onde haja “menos dogmas econômicos, mais éticos. Menos paralisia, mais pragmatismo”11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 48).

Pode-se inferir, a partir da crítica dos autores, a necessidade das ciências em seus vários campos, incluírem a Bioética, ciência da ética aplicada/filosofia prática da vida, para pensar soluções que possibilitem enfrentar tanto a crise climática quanto as desigualdades sociais que se avolumam no mundo. Essas soluções pedem um pensar holístico, que leve em conta à interdisciplinaridade, o intercâmbio de saberes, mesmo que supostamente distantes22 Pellizoli M, organizador. Bioética como novo paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes; 2007..

A segunda parte do livro traz reflexões sobre os impactos da COVID-19 no meio ambiente, tanto urbano quanto fronteiriço às matas. É composta de cinco artigos.

A pandemia afetou sobremaneira a mobilidade urbana, sobretudo o transporte público, mais utilizado pelas classes sociais vulneráveis. A classe média, via de regra, tem se servido de transporte individual11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 75-76), diferentemente do que ocorria há 20 anos. A precarização do transporte público nas duas últimas décadas ilustra exemplarmente as desigualdades sociais profundas que permeiam a sociedade: a classe trabalhadora com menos renda é a que mais utiliza o transporte viário urbano, perdendo mais tempo em trânsito e enfrentando as piores condições de mobilidade, com ônibus lotados; pagando, também, em termos proporcionais à sua renda, mais que as outras classes11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 86).

Essas condições precárias foram agravadas com o advento da pandemia, pois os habitantes periféricos urbanos se tornaram um dos grupos mais vulneráveis ao contágio e transmissão do vírus, devido à concentração expressiva de pessoas nos transportes públicos e nas moradias, essas carentes de condições sanitárias adequadas11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 94).

Por sua vez, os cientistas têm apontado que uma grande parte das doenças infecciosas emergentes, como a COVID-19, com os respectivos surtos epidêmicos, é derivada do processo de desmatamento a que estão sujeitas as florestas. No caso brasileiro, o Executivo Federal enfraqueceu as políticas ambientais anteriores, com a redução das áreas de proteção da Amazônia e da Mata Atlântica, suspensão dos atos de confirmação de territórios indígenas e a flexibilização das exigências para licitamento ambiental, num cenário de retrocesso e desmonte da política ambiental anterior11 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 102).

O governo federal fez, ainda, campanha para desacreditar as Organizações Não Governamentais que atuam na preservação ambiental, desestimula o desenvolvimento de pesquisas científicas no setor, configurando um quadro em que a biodiversidade dessas regiões se encontra em risco de extinção, o que possibilita o surgimento de novas pandemias.

Na terceira parte do livro, os autores trazem reflexões sobre as práticas estatais e alguns vícios que permanecem. O governo federal anterior atuou na área ambiental com políticas extrativistas, rompendo com o pacto constitucional que, até então, regia as instituições do setor, qual seja, a proteção ambiental e das comunidades indígenas e quilombolas e a procura em manter a biodiversidade da região amazônica, do cerrado e da mata atlântica.

Em relação à população, ao propor o fim do isolamento social, uma das principais medidas indicadas pelos cientistas e órgãos internacionais de Saúde Pública - notadamente eficaz para reduzir a propagação do coronavírus -, o governo federal anterior, aliado aos interesses de grupos da elite política e empresarial nacional, alegou princípios que se sobrepõem à valorização da vida, tais como, o direito econômico de produzir e a primazia da produção econômica em detrimento da proteção do direito individual de resguardar a vida, revelando o seu desrespeito ao direito constitucional fundamental de garantia à vida humana.

Esclarece-se que, o advento da pandemia da COVID-19 não é um fato natural, foi desencadeado por práticas humanas que, na contemporaneidade, estão ligadas ao processo de modernização, incluindo o aumento da poluição, a emergência e o agravamento das crises hídrica e climática, o extrativismo exacerbado dos recursos naturais entre outros fatores, visando estritamente à produção econômica e o lucro. Esses fatores são agravados pelas desigualdades sociais que vulnerabilizam os grupos sociais e econômicos mais carentes, sujeitos ao desemprego e à informalidade, à violência de todo tipo e residentes em moradias precárias.

Diante deste cenário, o que fazer então? Qual a saída a ser vislumbrada, neste momento crítico pelo qual passamos?

Mediante esses questionamentos, e tendo por princípio a necessidade da transição socioambiental sustentável após a pandemia, os autores encaminham suas reflexões para a quarta e última parte da coletânea.

O modelo de civilização adotado, notadamente industrializado, com consumo de alimentos ultraprocessados, objetiva o aumento de lucros da indústria alimentícia em detrimento da saúde, refletindo no aumento de doenças crônicas que, na pandemia, se caracterizam como fatores de risco para as complicações da COVID-1911 Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020. (p. 171).

Urge que, a partir da experiência com a COVID-19, os desenhos das políticas públicas abarquem os efeitos multidimensionais e sistêmicos de uma pandemia, para controle de eventos futuros epidêmicos de mesmo grau. A transição socioambiental pós-pandemia deve estar ancorada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas, priorizando medidas que combatam a degradação ambiental e as desigualdades sociais e de doenças, buscando promover o bem-estar de todos e do meio ambiente.

Trata-se de conservarmos nossa casa comum, o planeta, e nós mesmos, pois estamos indivisivelmente ligados a ele, como nos lembra o Papa Francisco em sua Encíclica Laudato Si33 Mattos JRA, Separavich MA. Reflexões sobre a pandemia à luz da Encíclica Laudato Si. Reflexao 2020; 45:1-14.. Trata-se, enfim, de entendermos que fazemos parte de uma mesma natureza, interdependente e relacional, e que somente sobreviveremos se a mantivermos viva e nela enraizados44 Maffesoli M. Ecosofia: sabedoria da casa comum. Rev Famecos (Online) 2017; 24(1):1-12..

Referências

  • 1
    Young CEF, Mathias JFCM, organizadores. Covid-19, meio ambiente & políticas públicas. São Paulo: Hucitec; 2020.
  • 2
    Pellizoli M, organizador. Bioética como novo paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes; 2007.
  • 3
    Mattos JRA, Separavich MA. Reflexões sobre a pandemia à luz da Encíclica Laudato Si. Reflexao 2020; 45:1-14.
  • 4
    Maffesoli M. Ecosofia: sabedoria da casa comum. Rev Famecos (Online) 2017; 24(1):1-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br