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Saúde digital e a plataformização do Estado brasileiro

Digital health and the platformization of the Brazilian Government

Resumo

A implementação da saúde digital constitui um enorme desafio para a Saúde Coletiva, sendo urgente abrir o debate sobre os impactos mais imediatos das tecnologias digitais nas políticas de saúde. A saúde digital compreende a incorporação de novas tecnologias e potencialmente reconfigura relação entre Estado e sociedade, em um processo denominado plataformização - de gestão dos serviços de saúde por meio da interpretação de grandes volumes de dados. Este trabalho traça um panorama histórico sobre as políticas brasileiras de informação e analisa a saúde digital como um caso de plataformização do Estado Brasileiro. Para tanto, analisa a estratégia brasileira de saúde digital partir de três dimensões: a concentração de dados, os usuários-consumidores e a privatização das infraestruturas públicas. Por fim, busca tornar nítida a tendência global a favor de uma inovação que escamoteia a expectativa pela digitalização como dinamizadora da reprodução capitalista.

Palavras-chave:
Saúde; Tecnologia digital; Capitalismo; Estado

Abstract

The implementation of digital health constitutes an enormous challenge to Public Health, making it imperative to call for an urgent debate regarding the more immediate impacts of digital technologies on health policies. Digital health involves the incorporation of new technologies and potentially reconfigures the relationship between Government and society, in a process known as platformization - of health services management through the interpretation of a huge volume of data. This work provides a historic overview of Brazilian digital health information policies and analyzes digital health as a case of platformization of the Brazilian Government. For this reason, this work analyzes the Brazilian digital health strategy from three dimensions: data concentration, users/consumers, and the privatization of public infrastructure. Lastly, this work seeks to highlight the global trend in favor of an innovation that conceals the expectation for digitalization as a driver of the reproduction of capitalism.

Key words:
Health; Digital technology; Capitalism; Government

Introdução

A saúde digital é apresentada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um campo de conhecimento e prática associada com o desenvolvimento e uso de tecnologias digitais na saúde11 Organização Mundial da Saúde (OMS). Global strategy on digital health 2020-2025. Genebra: OMS; 2021.. Ainda, a saúde digital é entendida como mais abrangente se comparada à sua predecessora saúde eletrônica (e-saúde)11 Organização Mundial da Saúde (OMS). Global strategy on digital health 2020-2025. Genebra: OMS; 2021.. Desse modo, enseja uma mudança da gestão de instituições de saúde para a gestão da saúde de populações22 Fornazin M, Penteado B, Castro L, Freire S. From Medical Informatics to Digital Health: A Bibliometric Analysis of the Research Field. AMCIS 2021; 18.. Para tanto emprega novas tecnologias, como é o caso da inteligência artificial, big data, dispositivos móveis e vestíveis, bem como processos interconectados à distância - que promovem um amplo e contínuo tratamento de dados.

A literatura científica tem apontado para os grandes impactos das tecnologias digitais nas práticas, nos serviços e nos sistemas de saúde33 Topol EJ. High-performance medicine: the convergence of human and artificial intelligence. Nature Medicine 2019; 25:44-56.

4 Mehta N, Pandit A, Shukla S. Transforming Healthcare with Big Data Analytics and Artificial Intelligence: A Systematic Mapping Study. J Biomed Informatics 2019; 100:103311.
-55 Marques ICP, Ferreira JJM. Digital transformation in the area of health: systematic review of 45 years of evolution. Health Technol 2020; 10(3):575-586.. Isso inclui transformações tanto no setor industrial e seus produtos66 Gadelha CG. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0: por uma visão integrada do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Cad Desenvolv 2021; 16(28):25-49., quanto no trabalho de prestação de serviços de saúde e na forma como eles impactam indivíduos e populações77 Lupton D. The commodification of patient opinion: the digital patient experience economy in the age of big data. Soc Health Illness 2014; 36(6):856-869.. Alcança também a inovação de processos e arranjos institucionais que organizam e coordenam a prestação em diversos níveis, incluindo as ações de vigilância, promoção e prevenção, bem como as ações regulatórias e de gestão nos sistemas nacionais de saúde.

O Ministério da Saúde (MS), inspirado pela OMS11 Organização Mundial da Saúde (OMS). Global strategy on digital health 2020-2025. Genebra: OMS; 2021., passou a promover uma Estratégia de Saúde Digital saúde digital a partir de 2019 como atualização de ações precedentes88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Brasília: MS; 2020.. Com base nesta iniciativa política, o MS empreendeu ações nacionais, tais como o Programa Conecte SUS e a Rede Nacional de Dados em Saúde. Ademais, o MS propôs uma revisão da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS) para incorporar a saúde digital. A Estratégia Brasileira de Saúde Digital, contudo, ainda não foi devidamente analisada para se compreender seus efeitos e seus limites.

A implementação da saúde digital constitui um enorme desafio para a Saúde Coletiva, sendo urgente ampliar o debate sobre os impactos mais imediatos das tecnologias digitais nesse setor. Assim, este trabalho tem por objetivo avaliar a saúde digital como fragmento de aspectos mais amplos da digitalização do próprio estado, assim como compreender possíveis mudanças na relação entre Estado e sociedade. A hipótese que se adota no presente trabalho é a de que a digitalização promove uma reorganização do Estado advinda de reformas neoliberais com vistas a um formato aderente à plataformização.

Para desenvolver esse argumento, o artigo apresenta uma descrição temporal dos últimos 30 anos sobre a relação entre as tecnologias digitais e as decisões e modelos tecno-políticos que orientaram o desenvolvimento dessas tecnologias no Sistema Único de Saúde. Em seguida, discute as formas pelas quais o Estado se apresenta em fases internas do capitalismo, sem nunca deixar de representar sua forma política, analisando a Estratégia de Saúde Digital proposta pelo MS e posicionando a indução da plataformização do Estado na saúde brasileira - que parte da retórica gerencial presente em documentos oficiais. Assim, explica uma nova configuração do Estado brasileiro, denominada plataformização do Estado. A plataformização é descrita a partir de três dimensões: a concentração de dados, os usuários-consumidores e a privatização das infraestruturas públicas. Ainda, compara a Estratégia de Saúde Digital com iniciativas de outros países, bem como identifica as influências internacionais ao modelo Brasileiro.

As contribuições do presente estudo se somam a um conjunto de pesquisas que buscam compreender as interrelações sociais, políticas e econômicas na produção e disseminação de informações em saúde. Na saúde coletiva, os estudos de Ilara Hammerli diagnosticaram e explicaram o problema da fragmentação das informações em saúde99 Moraes IHSD. Informações em Saúde: da Prática Fragmentada ao Exercício da Cidadania. São Paulo, Rio de Janeiro: Abrasco; 1994.,1010 Moraes IHSD, Gómez MNG. Informação e informática em saúde: caleidoscópio contemporâneo da saúde. Cien Saude Colet 2007; 12(3):553-565.. Além disso, propostas apontaram para a importância de uma discussão política e estratégica sobre a temática da informação e da informática em saúde. Estas propostas culminaram na PNIIS1111 Moraes IHS, Vasconcellos MM. Política nacional de Informação, Informática e Comunicação em Saúde: um pacto a ser construído. Saude Debate 2005; 29(69):86-98. cuja trajetória e a configuração foi analisada por Cavalcante et al.1212 Cavalcante RB, Kerr-Pinheiro MM, Guimarães EADA, Miranda RM. Panorama de definição e implementação da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde. Cad Saude Publica 2015; 31:960-970.. Mais recentemente, destaca-se o alerta de Coelho-Neto e Chioro1313 Coelho-Neto GC, Chioro A. Afinal, quantos Sistemas de Informação em Saúde de base nacional existem no Brasil? Cad Saude Publica 2021; 37(7):e00182119. a respeito de qualquer projeto de integração de SIS possuir componentes técnico-políticos, exigindo a compreensão não apenas dos sistemas envolvidos, mas das estruturas, relações de poder e processos de gestão associados. A próxima seção, portanto, descreve a políticas públicas de informática em saúde desde a instituição do SUS.

As políticas públicas de informática em saúde no Brasil e a saúde digital

A saúde digital tornou-se um assunto institucionalmente relevante no Brasil especialmente a partir da publicação da Estratégia Brasileira de Saúde Digital pelo MS - aliada ao Programa Conecte SUS. Apresentada como uma inovação no SUS, a saúde digital, na verdade, é consequência de desenvolvimentos anteriores. O Quadro 1 apresenta um levantamento das principais leis e normas referentes à informação em saúde no âmbito do Governo Federal no período de 1990 a 2021.

Quadro 1
Normas relativas à Informação em Saúde.

A discussão que hoje é feita em torno do que se chama de saúde digital origina-se nos anos 1990, apesar de os primeiros sistemas eletrônicos de registro de informação em saúde terem surgido nos anos 1970 buscando atender às recomendações da OMS. Nos anos 1980, embora a microinformática estivesse se desenvolvendo de maneira exponencial nos Estados Unidos e nos países da Europa Ocidental, foi secundarizada no bojo do movimento pela Reforma Sanitária.

A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, não considerou entre seus debates e propostas a informação e comunicação em saúde, bem como os emergentes desenvolvimentos tecnológicos neste campo. As questões de sistemas de informação em saúde que passam a ser discutidas na sequente Comissão Nacional da Reforma Sanitária, contaram com um Grupo Técnico de Informação em Saúde - cuja produção menciona modelos para o SUS a partir da defesa do caráter público e político das informações em saúde. O Sistema Nacional de Informações em Saúde (SNIS), posteriormente instituído por meio da Lei Orgânica da Saúde 8.080/1990, também consta como uma das proposições do grupo.

Em 19911414 Ferraz LHV. O SUS, o DATASUS e a informação em saúde: uma proposta de gestão participativa [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2009., o Departamento de Informática do SUS (Datasus) foi criado como parte da responsabilidade conjunta entre federação, estados e municípios quanto à organização do Sistema Nacional de Informação em Saúde. Enquanto fundamento básico do SUS, a descentralização da gestão norteou essa criação ao promover sistemas de informação capilarizados regional e localmente. Por exemplo, esse foi o caso do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), e os Sistemas TABWin e TABNet para análise de dados de saúde.

Ao final da década de 1990, o MS, com apoio do Banco Mundial, realizou uma contratação de empresas internacionais para a implantação do Cartão Nacional de Saúde, o Cartão SUS1515 Cunha RED. Cartão Nacional de Saúde: os desafios da concepção e implantação de um sistema nacional de captura de informações de atendimento em saúde. Cien Saude Colet 2002; 7(4):869-878.. Tal projeto objetivava criar um cadastro nacional de cidadãos e, assim, agregar as informações presentes nos diversos SIS utilizados no Brasil.

No ano de 1996, foi instituída a RIPSA (Rede Interagencial de Informações para a Saúde)1616 Risi Júnior JB. Informação em saúde no Brasil: a contribuição da Ripsa. Cien Saude Colet 2006; 11(4):1049-1053., uma organização multicêntrica viabilizada por meio de parceria do MS com a Organização Pan-americana de Saúde, que vigorou até 2018 e contou com a participação de atores governamentais, da ciência e tecnologia, de profissionais da saúde e de movimentos sociais1717 Moraes IHS, Lima V, Risi Júnior JB, Quevedo D, Dias NX. RIPSA no Estado: Inovação na gestão da informação em saúde no Brasil? Rev Eletr Com Inf Inov Saude 2013; 7(2):1-18..

Enquanto uma abordagem mobilizada a partir de uma visão democrática e compreensiva das informações em saúde, a PNIIS (debatida na 12ª Conferência Nacional de Saúde em 2004) tornou-se orientação fundamental para o desenvolvimento de diretrizes, ações e responsabilidades no que diz respeito às práticas em saúde - fossem da União, de estados, de municípios ou mesmo da sociedade civil.

A partir de 2010, há uma modificação na orientação política da produção e uso das informações em saúde. Seguindo um movimento generalizado do Governo Federal, o MS passa a desenvolver ações baseadas em tecnologias digitais para centralização e divulgação de informações em saúde por meio de painéis de dados. Exemplo dessas iniciativas é a Sala de Gestão Estratégica (SAGE).

Em 2011, o Governo Federal instituiu o Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (SISP) com a finalidade de definição da política de gestão de recursos de tecnologia da informação do poder executivo federal. Até 2022 o SISP foi subordinado à Secretaria de Governo Digital da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia. Nos últimos o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social elaborou um Plano Nacional de Internet das Coisas1818 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Estudo "Internet das Coisas: um plano de ação para o Brasil". Brasília: BNDES; 2018., o Ministério da Ciência e Tecnologia elaborou uma Estratégia Brasileira de Transformação Digital1919 Brasil. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI). Estratégia Brasileira Para a Transformação Digital - E-Digital. Brasília: MCTI; 2018. e a Presidência da República instituiu uma Estratégia de Governo Digital. Essas iniciativas configuram elementos importantes ao direcionamento dado à Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Essas propostas de diferentes órgãos do governo federal de alguma maneira tocam a saúde e apontam para a prevalência da visão impressa pelo Ministério da Economia (ME) em contraponto aos princípios do SUS.

Em 2012 o MS lança a iniciativa e-SUS que tem por objetivo prover ferramentas digitais para registros clínicos no SUS. O e-SUS é oferecido em duas versões principais, o e-SUS Hospitalar e o e-SUS Atenção Básica. No contexto regulatório, o MS substitui a PNIIS discutida na 12ª Conferência Nacional de Saúde e publicada em 2004 por uma nova versão publicada como portaria do Ministério da Saúde. Assim a PNIIS incorpora o conceito de e-saúde (e-health).

O golpe de 2016 representou uma ruptura política, contudo, as iniciativas de e-saúde não passaram por mudanças bruscas, uma vez que os consultores que planejaram a revisão da PNIIS aderiram ao governo Temer.

Em 2017, o MS lançou uma estratégia em e-saúde2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estratégia e-Saúde para o Brasil. Brasília: MS; 2017. que pretendia a coexistência entre as diretrizes e princípios do SUS e a política de governo eletrônico, propondo uma visão cujo horizonte seria o ano de 2020. A Comissão Intergestores Tripartite (CIT) instituiu o Comitê Gestor da Estratégia e-Saúde e aprovou a Estratégia de e-Saúde. Além disso, o MS lançou o Programa DigiSUS.

Já em 2019, o Departamento de Saúde Digital é instituído na hierarquia do Ministério da Saúde contribuição de desenvolver as questões relacionadas à Política Nacional de Saúde Digital e Telessaúde SUS. Tal definição leva ao remanejamento de quadros da Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do ME para o MS.

Alguns meses após a instituição do Departamento de Saúde Digital, a CIT estabeleceu o Comitê Gestor de Saúde Digital (CGSD), em substituição ao anterior Comitê Gestor da Estratégia de e-Saúde. Algo que importa mencionar é a ausência de previsão de participação popular na composição do Comitê Gestor da Saúde Digital.

A instituição do Comitê Gestor da Estratégia de Saúde Digital traz menção a preceitos da OMS, bem como determina a substituição de “e-saúde” por “saúde digital” nos documentos oficiais em que haja essa referência. Em continuidade, é publicada a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028 (ESD28) - cujo objetivo envolve a promoção de engajamento de pacientes e cidadãos, para a adoção de hábitos saudáveis. A governança da ESD28 passa a ser de responsabilidade do Comitê Gestor de Saúde Digital (CGSD). A Estratégia Brasileira de Saúde Digital 2020-202888 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Brasília: MS; 2020. se baseia em diversos documentos anteriores, incluindo a Estratégia e-Saúde para o Brasil.

Como desdobramento da Estratégia de Saúde Digital e voltado à informatização da atenção à saúde e à integração dos estabelecimentos de saúde públicos e privados, o Programa Conecte SUS é instituído, assim como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma nacional voltada à integração e à interoperabilidade de informações em saúde entre estabelecimentos de saúde públicos e privados. No ano de 2021 o MS publicou uma nova versão da PNIIS, aprovada pela CIT e pelo Conselho Nacional de Saúde, na qual incorpora a Estratégia de Saúde Digital e a RNDS - legitimando a Saúde Digital como a principal estratégia do Estado Brasileiro para as informações em Saúde e dando lastro ao movimento de plataformização no SUS.

A fluidez da forma política capitalista e estratégia de saúde digital como indução à plataformização do Estado

A promoção da saúde pública coloca-se como tema para a economia política, especialmente no contexto do fortalecimento dos Estados de bem-estar social e de conflitos distributivos. A produção intelectual sobre o papel do Estado e as políticas de saúde é extenso na Saúde Coletiva e não é objetivo deste trabalho revisar essa literatura. Para este artigo, parte-se da argumentação de Castro e Noronha2121 Noronha JC, Castro L. O sistema de saúde brasileiro: rumo à universalidade ou à segmentação? In: Castro JÁ, Pochmann M, organizadores. Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2020. p. 445-468. ao explicarem o complexo cenário do sistema único de saúde.

A saúde digital, que emerge como uma nova tendência para o endereçamento de desafios relativos a custos e necessidades de pacientes2222 Sharma A, Harrinton RA, McClellan MB, Turakhia MP, Eapen ZJ, Steinhunl S, Mault JR, Majmudar MD, Roessig L, Chandross KJ, Green EM, Patel B, Hamer A, Olgin J, Rumsfeld JS, Roe MT, Peterson ED. Using Digital Health Technology to Better Generate Evidence and Deliver Evidence-Based Care. J Am Coll Cardiol 2018; 71(23):2680-2690., expandiu-se por meio do oferecimento de tecnologias e serviços para monitoramento da COVID-19 durante a pandemia. Dessa forma, importa o apontamento feito por Michael Moran2323 Moran M. Three faces of the health care state. J Health Pol 1995; 20(3):767-781. sobre o reconhecimento da roupagem de Estado industrial capitalista na figura estatal que provê saúde como direito. Portanto, trata-se de um contexto que demanda a compreensão das funções de patrocínio e regulação do complexo industrial da saúde em meio a uma arena política de tensões e disputas que - por exemplo - conduziram à reforma administrativa brasileira dos anos 1990. Seu caráter eminentemente neoliberal levou à reestruturação do Estado para uma forma gerencial. Com isso, nos últimos 30 anos foram viabilizados processos de privatização, novas formas de regulação de mercados e a abertura comercial.

Como as fases capitalistas possuem distinções entre si, mesmo que permeadas pela mesma estrutura das relações sociais, trata-se de um movimento que acarreta rearranjos tanto na forma do Estado quanto nos direitos conferidos em determinado contexto histórico2424 Mascaro AL. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo Editorial; 2013. - o que se reflete no enfraquecimento do Estado de bem-estar social. Nesse sentido, a adesão a perspectivas neoliberais de eficiência moldou governos e estruturas nacionais para dimensões internacionais regidas pelo prisma de uma governança2525 Jessop B. The changing governance of welfare: recent trends in its primary functions, scale, and modes of coordination. Soc Pol Adm 1999; 33(4):348-359..

Considerando, então, que o desequilíbrio e a instabilidade são inerentes às próprias dinâmicas capitalistas, estes fenômenos demandam sua reconfiguração2626 Paulani LM. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estud Avan 2009; 23(66):25-39. para que a ordem social não sofra rupturas. Assim, nas democracias ocidentais observa-se uma progressiva acomodação do Estado fruto das reformas neoliberais a um formato aderente à plataformização e eivado do componente ideológico da datificação2727 Van Dijck J. Datafication, dataism and dataveillance: BigData between scientific paradigm and ideology. Surveillance Soc 2014; 12(2):197-208.; nesse cenário, a digitalização contribuiria com o deslocamento de contradições sistêmicas2828 Streeck W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial; 2018. e ofereceria caminhos ao neoliberalismo2929 Paraná E. A Finança Digitalizada. Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional. Florianópolis: Editora Insular; 2016. no pós-crise de 2008.

A plataformização usualmente desenvolveu-se em atmosferas de empreendimentos tecnológicos privados, como é o caso das Big Tech. A atuação dessas empresas pode ser caracterizada a partir de três elementos essenciais, a saber: necessidade de coletar dados como recursos e ativos econômicos; a construção de grandes bases de usuários-consumidores; e sua natureza privada, em contexto de crescente financeirização por meio de plataformas de trocas econômicas e sociais3030 Srnicek N. Platform Capitalism. Cambridge: Polity; 2017..

Com relação à plataformização do Estado como referência que vem sendo utilizada por estudos científicos3131 Alauzen M. L'État plateforme et l'identification numérique des usagers: Le processus de conception de FranceConnect. Réseaux La Découverte 2019; 213(1):211-239.,3232 Collington R. Disrupting the Welfare State? Digitalization and the Retrenchment of Public Sector Capacity. New Pol Eco 2021; 27(2):312-328. para remeter ao processo de digitalização dos serviços estatais inspirado em negócios privados, destaca-se tanto a presença de novos tipos de mediação que integram as cadeias de provisão desses serviços3333 Guzmán-Ortiz SM. Ética crítica y política de las tecnologías. Ciudadanías mediadas en el Estado Plataforma. Análisis de Movilidad en Línea. Cuad Filosofía Latinoam 2022; 43(126):1-25.,3434 Teles PRA. Parabellum: sobre o modo de se fazer a guerra pós 11 de setembro. Entropia 2020; 4(8):6-36. quanto à transferência de porções de sua execução ao setor privado2727 Van Dijck J. Datafication, dataism and dataveillance: BigData between scientific paradigm and ideology. Surveillance Soc 2014; 12(2):197-208.,3434 Teles PRA. Parabellum: sobre o modo de se fazer a guerra pós 11 de setembro. Entropia 2020; 4(8):6-36. por meio de contratações pelo poder público.

Desse modo a plataformização do Estado baseia-se na coleta massiva de dados de cidadãos, no estabelecimento de relações do Estado com cidadãos-consumidores e na privatização das infraestruturas públicas para geração de receitas financeiras. A mimetização das práticas privadas pelo Estado não é novidade e pode ser observada desde as iniciativas do Estado gerencial citado anteriormente. Assim, a plataformização do Estado também se inspira inovações tecnológicas das plataformas digitais privadas.

O recorte da plataformização do Estado que será objeto de análise neste trabalho é o da saúde, mais precisamente a saúde digital - cuja demanda por infraestrutura tecnológica ou conhecimento especializado possui uma tendência marcante em parcerias com a iniciativa privada, tratando-se da destinação de recursos públicos nesse sentido.

Nos próximos parágrafos avaliamos a experiência em saúde digital do Brasil em seus pormenores, para o entendimento das eventuais proximidades e distâncias entre a saúde digital e a Saúde Coletiva a partir de três categorias: os dados, os usuários e a privatização das infraestruturas públicas.

A Estratégia Brasileira de Saúde Digital 2020-202888 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Brasília: MS; 2020., publicada em junho de 2020, aponta para a sistematização de diversos documentos anteriores, incluindo a Estratégia e-Saúde para o Brasil. Assim, afirma que a Saúde Digital é uma evolução que abarca e aprimora os desenvolvimentos anteriores.

Em relação aos dados, reafirmando, atualizando e expandindo o conteúdo do documento da Estratégia e-Saúde para o Brasil, a Estratégia de Saúde Digital indica que até 2028 a RNDS seria estabelecida como a plataforma digital de informação e serviços de saúde para todo o Brasil, em benefício de todo o ecossistema de saúde. Para tanto, o Ministério da Saúde, em parceria com gestores públicos e atores do setor privado, paulatinamente passa a consolidar dados de saúde na RNDS - por exemplo, resultados de exame de COVID-19, aplicações de vacina, solicitação de medicamentos no Programa Farmácia Popular, registros hospitalares como o sumário de alta. Dados que até então eram consolidados nos municípios e estados, e posteriormente enviados ao Datasus, passam a ser incorporados à RNDS.

Por outro lado, e tendo em vista a informação veiculada pelo MS a respeito de um compartilhamento amplo de dados de saúde com agentes privados, nos moldes do que ocorre no âmbito do sistema financeiro com o Open Banking, a perspectiva de benefício sugere um certo direcionamento - a começar pela contratação dos serviços de armazenamento em nuvem que hospedam a RNDS, um produto desenvolvido pela Amazon Web Services.

Ainda, ao se referir a quem utiliza os sistemas, o documento remete a um certo “engajamento” para a extração do máximo da saúde digital em benefício individual ou coletivo, sem remissões à participação popular na construção da estratégia; esse engajamento significaria apenas apoio aos moldes da iniciativa já construída como reação majoritariamente esperada. Um elemento que reforça esse argumento é que, ao delinear as categorias esperadas em termos de participação, a Estratégia indica que as pessoas a serem engajadas são as que precisam ser informadas das decisões, diretrizes e ações práticas das iniciativas. Esta abordagem da Estratégia de Saúde Digital reforça a argumentação de Deborah Lupton77 Lupton D. The commodification of patient opinion: the digital patient experience economy in the age of big data. Soc Health Illness 2014; 36(6):856-869. para a qual, inspirada nos estudos de consumerização dos pacientes, a saúde digital pressupõe um paciente digitalmente engajado. Desse modo, a afirmação “colocar o paciente no centro” pressupõe um usuário passivo que é colocado em local por outra pessoa e espera-se que se comporte de uma maneira pré-concebida. Como contraponto ao engajamento proposto, é salutar que se comente que durante a pesquisa solicitamos documentos que haviam estado disponíveis no portal institucional anteriormente, os quais foram negados por algumas instâncias; apesar de ter violado todas as perspectivas de prazo constantes da LAI, ainda assim o MS não apresentou a contento todos os dados solicitados. Desse modo, podemos concluir que cidadãos questionadores não são ouvidos pelos formuladores da Estratégia de Saúde Digital.

Por fim, em relação à privatização, no que diz respeito aos esforços para que a estratégia seja implementada, o documento reforça a participação de amplos setores para um ambiente de colaboração estável e produtivo, que reclama legislações para oferecimento de segurança jurídica e que não deve contar com fontes de financiamento exclusivamente governamentais. Foca-se, então, na definição de diretrizes, bem como na implantação de espaços de colaboração que atraiam agentes públicos e privados - um movimento que se diferencia da complementariedade atribuída às instituições privadas pelo artigo 199 da Constituição Federal de 1988.

No cenário brasileiro, cabe mencionar que o setor de saúde suplementar vem se beneficiando de uma crescente desregulamentação, bem como da abertura para investimentos estrangeiros3535 Hiratuka C, Rocha MAM, Sarti F. Mudanças recentes no setor privado de serviços de saúde no Brasil: internacionalização e financeirização. In: Gadelha P, Noronha JC, Dain S, Pereira TR, organizadores. Brasil Saúde Amanhã: população, economia e gestão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2016.. Junto disso, o investimento privado em saúde digital também se faz notar, tanto pela atuação de inúmeras startups nesse mercado quanto pelo deslocamento de grandes empresas de tecnologia para setores - como o da saúde - que não representavam o centro tradicional de sua atividade3636 Sharon T. When digital health meets digital capitalism, how many common goods are at stake? Big Data Soc 2018; 5(2):1-12..

Sobre esse aspecto, Rosie Collington3232 Collington R. Disrupting the Welfare State? Digitalization and the Retrenchment of Public Sector Capacity. New Pol Eco 2021; 27(2):312-328. traça uma avaliação de reformas administrativas ocorridas na Dinamarca entre 2012 e 2019 e indica que a digitalização da administração pública transferiu responsabilidade de infraestruturas estratégicas para agentes privados, levando à minoração da capacidade de condução política pelo setor público. Trata-se de uma forma de estabelecer incentivo ao setor da tecnologia sem que haja encargos ao Estado na promoção de direitos sociais, em razão do abalo da crise financeira de 2008; medidas que teriam levado à progressiva plataformização estatal.

Tendo em vista a implementação de soluções digitais que reclamam regulamentação no sentido de tornar investimentos seguros contra possíveis questionamentos jurídicos, uma das questões mais aludidas nesse contexto é a necessidade de legislação que ofereça respaldo aos interesses envolvidos3232 Collington R. Disrupting the Welfare State? Digitalization and the Retrenchment of Public Sector Capacity. New Pol Eco 2021; 27(2):312-328.. Adicionalmente, é salutar destacar a estratégia que grandes empresas de tecnologia adotam quanto ao financiamento de pesquisas, seja por representantes da academia ou da sociedade civil, para imprimir seus interesses em face das regulamentações3737 Manahan MA, Kumar M. The Great Takeover: Mapping of Multistakeholderism in Global Governance. Amsterdam: People´s Working Group on Multistakeholderism; 2021..

A plataformização na saúde global

Em maio de 2018, a septuagésima primeira assembleia da OMS3838 World Health Organization (WHO). Digital Health, Seventy-first World Health Assembly - WHA71.7. Genebra: WHO; 2018. adota uma resolução em saúde digital reconhecendo o potencial das tecnologias digitais quanto ao avanço dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Esse documento destaca o planejamento e a implementação de estratégias em saúde digital, legislações e programas pelos Estados membros - em conjunto com a OMS e com organizações parceiras - como meios de promoção de acesso universal à saúde.

No mês de abril do ano seguinte, a primeira diretriz da OMS em saúde digital foi publicada trazendo recomendações em intervenções digitais para o fortalecimento de sistemas de saúde3939 World Health Organization (WHO). WHO guideline: recommendations on digital interventions for health system strengthening. Genebra: WHO; 2019.. Mais recentemente, no ano de 2021, a OMS lança a Estratégia Global em Saúde Digital 2020-202511 Organização Mundial da Saúde (OMS). Global strategy on digital health 2020-2025. Genebra: OMS; 2021., destacando que a ampliação do uso de tecnologias de informação e comunicação possuiria potencial para acelerar o progresso humano, ao passo que reforça o papel do setor privado como parceiro.

A Estratégia Brasileira de e-saúde de 2017, já previa o envolvimento de um amplo conjunto de esforços tanto de entidades públicas quanto da sociedade civil e da iniciativa privada (cujo mercado de Tecnologia da Informação é expressamente referenciado como beneficiário da demanda).

Nos últimos anos, a OMS formulou recomendações relacionadas às estratégias digitais para o fortalecimento dos sistemas de saúde. Em 2012, a OMS lançara o toolkit para uma Estratégia em e-Saúde, juntamente com a União Internacional de Telecomunicações (UIT)4040 World Health Organization (WHO). International Telecommunication Union. National eHealth Strategy Toolkit. Genebra: WHO; 2012.. Neste documento, as entidades defenderam sistemas de saúde mais eficientes mencionando que governos não possuem função de financiamento exclusiva. O mesmo toolkit é mencionado como modelo de plano de ação para os próximos passos da atual estratégia brasileira.

A ESD28 carrega influências da OMS e da Dinamarca, conforme apontamento do próprio MS por meio da Lei de Acesso à Informação. Nesse sentido, cabe destacar uma menção constante da relatoria de uma reunião do Comitê Gestor de e-Saúde ocorrida em 2016 a respeito de um novo acordo que seria assinado com a Dinamarca - que teria potencialmente resultado em relações ao longo dos anos, as quais culminaram em uma série de trocas iniciadas em 2020 no que diz respeito à saúde digital (menções essas presentes inclusive nos boletins do Programa Conecte SUS). Trata-se de um caminho que vem sendo pavimentado ao menos desde o ano de 2014, quando do advento de um acordo de cooperação entre os países para oportunidades nas áreas de pesquisa e inovação em saúde, a partir de tecnologias da informação e da comunicação aplicadas a esse campo.

A Estratégia Dinamarquesa de e-Governo 2011-20154141 Governo Dinamarquês. The Digital Path to Future Welfare: e-Government Strategy 2011-2015. Copenhagen; 2011. já apontava para a liderança mundial de seu setor público na melhoria de serviços de bem-estar por meio da tecnologia, argumentando que esse movimento levaria ao crescimento das empresas privadas como novas oportunidades de negócio, que não deveriam ser limitadas por barreiras legais desnecessárias. Nesse mesmo sentido, o governo dinamarquês elabora um memorando direcionado ao parlamento sobre o crescimento digital do país, destacando que o time governamental para propulsão das tecnologias de informação e comunicação contava com líderes de negócio experientes e empresários4242 Governo Dinamarquês. Denmark´s Digital Growth 2013: Policy Statement to the Danish Parliament. Copenhagen; 2013..

Essa é uma tendência também presente no setor de saúde dinamarquês, que com a publicação do Plano de Crescimento de Soluções de Saúde4343 Governo Dinamarquês. Denmark at Work. Plan for Growth in Health and Care Solutions. Copenhagen; 2013., celebra a tradição de uma colaboração entre instâncias públicas e privadas. Como reforço a essa tendência de colaboração entre os setores público e privado no que diz respeito especialmente à saúde digital, a Estratégia Dinamarquesa 2018-20224444 Governo Dinamarquês. Digital Health Strategy 2018-2022: A Coherent and Trustworthy Health Network for All. Copenhagen; 2018. propõe iniciativas conjuntas de infraestrutura de tecnologias da informação e trabalho próximo às empresas. Trata-se de elemento muito presente na estratégia brasileira, que busca normalizar a intensificação da participação da iniciativa privada na promoção de serviços de saúde justificando-a por meio da “saúde baseada em valor”, sem que seja atribuído sentido preciso ao léxico típico do marketing.

Mesmo partindo de uma diretriz concebida nesses termos para a saúde digital, é muito provável que o Estado brasileiro não se equipare ao dinamarquês em suas efetivações, considerando-se - especialmente - as disparidades históricas e político-econômicas entre os países. Destaca-se que a estratégia de e-governo dinamarquesa já mencionava, em 20114545 Governo Indiano. National Digital Health Blueprint. Nova Déli; 2019., que até 2015 quaisquer comunicações escritas com o governo seriam feitas mandatoriamente por meios digitais - o que soa muito distante do nosso cenário. Apesar das disparidades, a Dinamarca serve de modelo para a atual estratégia de saúde digital brasileira, sendo um referencial para a plataformização dos serviços prestados pelo Estado em termos de saúde por meio da RNDS.

A colaboração com agências regulatórias e expansão das parcerias público-privadas3838 World Health Organization (WHO). Digital Health, Seventy-first World Health Assembly - WHA71.7. Genebra: WHO; 2018. traduz uma mecânica cheia de assimetrias que também permeia estratégias de saúde digital de países como a Índia e a África do Sul. Na Índia, o Desenho Nacional da Saúde Digital prevê que seu design deve permitir e promover o desenvolvimento de aplicações inovativas por startups e empreendedores a fim de prover serviços de valor agregado a cidadãos e stakeholders4545 Governo Indiano. National Digital Health Blueprint. Nova Déli; 2019.; esse mesmo documento destaca a garantia de participação ativa do setor privado na construção da estratégia. Ainda, na África do Sul, a Estratégia Nacional de Saúde Digital 2019-20244646 Governo Sul Africano. National Digital Health Strategy 2019-2014. Pretoria; 2019. salienta que buscará por mecanismos de colaboração entre o setor público e o setor privado, a fim de construir soluções em saúde digital cujo custo-benefício reduza gastos públicos e apoie na construção de uma infraestrutura da saúde digital.

Além disso, nessas estratégias nacionais destacam-se as referências à inevitável revolução digital, que deve ser perscrutada por meio de parcerias entre o governo e outros setores. Nesse sentido, governança é um termo usualmente relacionado a modelos para a viabilidade da saúde digital, o que inclui a adoção de padrões regulatórios e éticos numa acepção bastante vaga e flexível - que escamoteia os reais interesses envolvidos4747 Pierce ME. The concept of Governance in the spirit of capitalism. Critical Pol Stud 2014; 8(1):5-21..

Considerações finais

Em meio aos documentos e estratégias revisados por esta pesquisa, foi observada uma defesa tecnossolucionista como promotora de respostas aos desafios dos sistemas de saúde. O cenário Brasileiro está repleto de iniciativas tecnológicas que buscaram resolver os problemas do SUS, por exemplo: Cartão SUS, DigiSUS, Conecte SUS e a agora a Estratégia de Saúde Digital. Contudo, apesar dos vultosos investimentos, essas iniciativas foram pouco avaliadas criticamente.

Observa-se que as estratégias de saúde digital possuem elementos inspirados em uma retórica gerencial4848 Pitassi C, Leitão SP. Tecnologia de Informação e Mudança: uma abordagem crítica. Rev Adm Emp. 2002; 42(2):77-87., que carrega forte discurso empresarial quando se trata de estratégias de digitalização da saúde pública, submetendo sua abertura a mercados tecnológicos lucrativos sob a justificativa de solução a problemas informacionais. Assim, é relevante observar o potencial aprisionamento dos sistemas de saúde como consequência do direcionamento dado pela “eficiência capitalista”4949 Laval C, Dardot P. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,5050 Boltansky L, Chiapello E. The new spirit of capitalism. São Paulo: Martins Fontes; 2009..

Países, como o Brasil, reproduzem uma cultura de performance nas suas estratégias de saúde digital, transformando pacientes em consumidores digitalmente engajados cujas doenças são comodificadas por uma suposta melhor medicina trazida por soluções em big data - providas por corporações de tecnologia que adentram o setor de saúde mobilizando a linguagem dos bens públicos com vistas à extração de valores3636 Sharon T. When digital health meets digital capitalism, how many common goods are at stake? Big Data Soc 2018; 5(2):1-12.,5151 Jappe A. As Aventuras da Mercadoria: Para uma crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006.. Cabe mais uma vez lembrar que mercados não possuem vocação à universalidade, por isso podem vir a excluir populações e grupos sociais - principalmente os grupos vulneráveis que não possuem meios ou não geram interesse econômico aos atores privados.

A plataformização do Estado vem sendo importada de modelos de negócio privados2626 Paulani LM. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estud Avan 2009; 23(66):25-39. desenvolvidos a partir do avanço das técnicas de inteligência artificial e pode ser observada por meio da progressiva indução à saúde digital no formato descrito por este trabalho. Assim, conjuntamente com a plataformização da saúde em um contexto de tendência mundial pela digitalização da prestação de serviços pelos Estados, a plataformização favoreceria - em primeiro lugar - uma agenda de criação de mercado consumidor, principalmente influenciada pelas demandas externas da indústria de tecnologia5252 Dunleavy P, Margetts H, Bastow S, Tinkler J. Digital Era Governance: IT Corporations, the State and E-Government. New York: Oxford University Press; 2006.. Não obstante a potencialidade de trazer avanços em termos de saúde, segue submetida à lógica da acumulação.

Tratando-se de um esforço por interpretar os efeitos sociais da absorção de um discurso hegemônico em saúde digital fundado em retóricas tecnossolucionistas, esta pesquisa percebeu a sociedade brasileira alijada da condução da saúde digital de seu país. Ainda que essa participação não necessariamente determinasse a completa alteração do contexto5353 Žižek S. A Coragem da Desesperança: cônicas de um ano em que agimos perigosamente. Rio de Janeiro: Editora Zahar; 2019., o fato de não ter ocorrido informa a respeito das premissas de uma Estratégia de Saúde Digital com o compromisso na criação de uma “saúde baseada em valor”, orientada a um mercado de dados e de consumidores passivos de serviços assistenciais de saúde, a partir de uma infraestrutura privatizada.

Este trabalho analisou a Estratégia de Saúde Digital proposta pelo Ministério da Saúde e as principais iniciativas federais relacionadas, bem como as influências internacionais. O trabalho não tem a pretensão de ser extensivo e certamente outras iniciativas de estados e municípios merecem ser analisadas em estudos futuros para identificação de suas potencialidades e limites. Também se observa que a saúde digital mobiliza a comunidade científica, atores políticos e a sociedade, assim, pode ter diferentes acepções. Contudo, não podemos deixar de considerar a influência das propostas internacionais e federais na conformação do SUS. Desse modo, a crítica aqui apresentada tem por objetivo identificar e sistematizar a ideologia da saúde digital em vigor no núcleo do Estado brasileiro.

O movimento brasileiro pela Reforma Sanitária, constituído contra uma tendência internacional neoliberal em expansão durante o último século, confrontou a mercadologização da saúde lutando por um sistema público e universal que vem sendo historicamente desmantelado - agora, por propostas como o modelo de saúde digital analisado, que é incompatível com as prerrogativas originais do SUS. O caráter ideológico embutido em certas abordagens tecnológicas parece estar invadindo os sistemas de saúde amparado por um discurso que ofusca a dinâmica constante de crises capitalistas.

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jul 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2022
  • Aceito
    03 Jan 2023
  • Publicado
    05 Jan 2023
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