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Cuidado em Saúde e mulheres negras: notas sobre colonialidade, re-existência e conquistas

Resumo

Refletimos sobre a saúde da mulher negra como parte integrante do enredo produzido pelo exercício do poder na colonialidade, e as forças que atuam no sentido da definição e imposição do lugar de subalterna, pois que informada pela noção objetificada e racializada de corpo. Mulheres negras estão substancialmente representadas nos piores indicadores de saúde. Propomos olhar o campo da saúde coletiva, em especial problematizando a dimensão do cuidado, enquanto tecnologia política, social e intersubjetiva, cujos encontros com o corpo estético-político da mulher negra são atravessados por experiências singulares de exclusão. Mas, para além do sofrimento, falamos também de agência e resistência, bem como da construção de uma agenda de luta a partir do protagonismo de negras/os.

Palavras-chave:
Cuidado em Saúde; Racismo; Colonialidade; Gênero

Abstract

We reflect on Black women’s health as part of a narrative produced by the exercise of coloniality and the forces that contribute toward defining and imposing the place of a subaltern since the objectified and racialized body notion informs it. Black women are represented in the worst health indicators. We propose to look at collective health from the perspective of care as a political, social, and intersubjective technology, in whose encounters with the aesthetic-political body of Black women are traversed by unique exclusion experiences. Moving beyond suffering, we also address agency, resistance, and the construction of an agenda of struggle based on the Black people’s leading roles.

Key words:
Healthcare; Racism; Coloniality; Gender

Introdução - sobre a colonialidade, o racismo e a mulher negra

Neste texto, falamos a partir de nós, mulheres negras, de nosso lugar, do lugar de nossas mães, de nossas mais velhas, de nossas ancestrais, que vieram de lugares sobre os quais não nos foi permitido saber ao certo, cuja ocultação é apenas uma parte da violência que nos funda como sujeitas objetificadas e silenciadas em diáspora forçada. Falamos também em coro com nossas irmãs, pretas em corpo, alma e resistência. Aliás, muito mais que resistência: criação, reinvenção, realização, produção de vida num cotidiano marcado para ser inviável, pois que de um lugar colonial. E queremos começar discutindo o exercício do poder na colonialidade, que sistematicamente atua no sentido da definição de um lugar subalterno destinado a nós, já que informado pela noção objetificada e racializada de corpo. Dialogamos aqui com Quijano11 Quijano A. Colonialidad del poder y clasificacio´n social. In: Castro-Gómez S, Grosfoguel R, editores. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad episte´mica ma´s allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre: Universidad Central, IESCO: Universidad Javeriana, Instituto Pensar; 2007. p. 93-126., para o qual a colonialidade é definida como um padrão global de dominação e exploração nos marcos capitalistas, que se fundam na classificação racial e étnica da população do mundo enquanto estratégia de acumulação. Conceito potente na conformação dos processos de sociabilidade e subjetivação impositivos de uma hegemonia eurocêntrica moderna sobre os diversos campos da vida, em especial sobre a noção de corpo como lócus do exercício de dominação.

Práticas de saúde, material e discursivamente inscritas, são marcadas por uma feitura diferenciada nos encontros do cuidado a depender da leitura de corpo. Ainda que sejam narradas como fruto de “protocolos gerais”, não são neutras, e sim situadas, encarnadas e performadas cotidianamente de maneira diferenciada, a depender do lugar que os sujeitos ocupam no enredo social, colonial e racialmente demarcados. Por esta razão, nossa escrita tem como ponto de partida a crítica ao projeto de dominação da colonialidade e o enfrentamento de “[...] formas de importunação [que] muitas vezes solapam a capacidade das negras de transmitir a certeza de talento e domínio intelectual”2 (p. 472), evidenciando as repercussões das políticas de expropriação colonial em vidas-mulheres-negras.

A demarcação colonial do mundo implica a hierarquização e a vulnerabilização de vidas humanas, por meio da racialização de seus corpos, tendo em vista sua objetificação e consequente exploração [...]. A globalização do enredo político-social da colonialidade [...] se expressa no campo da saúde não apenas nos modos de adoecimento, mas também em suas bases de ordenação e estratégias de controle e de cuidado33 Oliveira RG. Vidas em exclusão e a reinvenção do cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021. (p. 31).

A empreitada colonial europeia tem como um de seus importantes eixos a racialização do mundo permanentemente atualizada. Conformam processos políticos, econômicos e sociais, fundados em distinções em diversificadas clivagens - de raça, classe e gênero como exemplos - que fornecem benefícios para um determinado grupo populacional em detrimento de outros. O direito de expropriação colonial capitalista está ancorado no pressuposto de que os espaços das “conquistas” são vazios humanos e jurídicos, as chamadas “zonas do não ser”44 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA; 2008., fundamentando a “[...] imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido [...] poder [capitalista][...]”55 Quijano A. Colonialidade do poder e classificação social. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez; 2010. p. 84-130..

O fim do tráfico internacional de africanos elevou o preço do escravo e em resposta a elite e o Estado se organizaram para prolongar a vida dos cativos, para que esses fossem explorados por mais tempo. As melhorias das condições de vida não se relacionam ao bem-estar, mas sim a questões econômicas. Mulheres férteis se tornaram um alvo específico devido à potencialidade reprodutiva de escravos66 Florentino M. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das letras; 1997.. Foi pela Lei do Ventre Livre77 Brasil. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul [sic] de escravos [Internet]. Coleção de Leis do Brasil; 1871 [acessado 2021 mar 12]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm.
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que a mulher negra, sua capacidade reprodutiva e maternagem, recebem uma investida direta. Não havia o direito de mãe sobre sua prole. É uma lei controversa que, no mesmo texto em que concedia liberdade provê os meios do escravizador manter posse até que o sujeito completasse 21 anos de idade77 Brasil. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul [sic] de escravos [Internet]. Coleção de Leis do Brasil; 1871 [acessado 2021 mar 12]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm.
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As bases da colonialidade hierarquizam as relações em nível global, a partir da delimitação Norte/Sul, sustentadas pela tríade da colonialidade que opera as hierarquias: do poder (capitalista concentrado no Norte), do ser (homem branco europeu como referência universal), e do saber (hegemonia da ciência ocidental eurocêntrica moderna)55 Quijano A. Colonialidade do poder e classificação social. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez; 2010. p. 84-130.,88 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez; 2010. p. 31-83.. Lugones99 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952. discute a noção de colonialidade do ser a partir da produção racializada do outro e sua relação com a demarcação de gênero, que seria válida apenas para a leitura dos corpos universais (brancos) e o esvaziamento dessa noção aos demais, outrizados e objetificados. O binômio homem/mulher é esvaziado de sentido quando em referência aos colonizados, ressaltando que “diferentemente da colonização, a colonialidade do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial”99 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952. (p. 939).

A noção fornecida aos corpos negros, negando o mesmo estatuto de humano que o branco, produz sentido à gramática da violência como chave de operação dos dispositivos de Estado. São violências veladas e explícitas, interseccionadas em diversificadas esferas, inclusive da saúde, performando-se em: barreiras de acesso; hierarquização e diferenciação nas práticas do cuidado; não priorização em programas e políticas de saúde, dentre outras dinâmicas vulnerabilizantes das condições de vida.

Por ser parte constitutiva desse enredo, as políticas e práticas de saúde também reproduzem o padrão de opressão, desigualdades e da sua naturalização. Produzem violências de diversas ordens, materiais e simbólicas, que vão das precárias condições de vida às barreiras de acesso e formas diferenciadas de cuidado.

São variadas as expressões dessa dinâmica na saúde, e devem compor a agenda de prioridades da saúde coletiva. Mulheres negras correm maior risco de terem um pré-natal com menos consultas que o previsto; menor presença de acompanhante e menos acesso à analgesia no momento do parto1010 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 1):1-17.. O risco de morte materna em mulheres negras no estado do Rio de Janeiro é cinco vezes maior em comparação com as mulheres brancas1111 Trajano AJB, Monteiro DLM, Tavares LS, Alves PAR, Gonçalves TAP. Mortalidade materna no Estado do Rio de Janeiro em 2000 e 2011. Rev Hospital Univ Pedro Ernesto 2015; 14(2):47-53.. Os indicadores de saúde demonstram com nitidez o problema, ainda que as discussões sobre estes sejam insuficientes nos termos da questão racial.

Da mesma forma vê-se o percentual de óbitos por aborto em mulheres negras (45,21%) em comparação às mulheres brancas (17,81%), no período de janeiro de 2020 a fevereiro de 20211212 Criola. Dossiê mulheres negras e justiça reprodutiva (2020/2021) [Internet]. Rio de Janeiro: Criola; 2021 [acessado 2021 jan 16]. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1eHGSM3DmKx1m9NbXEqrFBKRQQnZgeoBx/view.. Em relação à mortalidade materna, indicador sensível relativo às condições de vida, ao acesso e qualidade do pré-natal e do parto, vê-se que, no Brasil, a taxa relativa às mulheres negras é de quase 66%, e para as mulheres brancas de pouco mais de 30%1212 Criola. Dossiê mulheres negras e justiça reprodutiva (2020/2021) [Internet]. Rio de Janeiro: Criola; 2021 [acessado 2021 jan 16]. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1eHGSM3DmKx1m9NbXEqrFBKRQQnZgeoBx/view.. As análises a respeito da violência letal em mulheres no Brasil indicam uma queda ao longo da última década, porém, não apenas se mantêm como aumentou nos termos raciais, dado que a queda é muito mais significativa em relação às mulheres não negras do que às negras1313 Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S, coordenadores. Atlas da violência 2021 [Internet]. São Paulo: FBSP; 2021 [acessado 2022 fev 27]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf..

O registro do quesito raça/cor, e consequentemente os estudos epidemiológicos, representam imensa lacuna nas discussões de saúde, sendo uma das inúmeras expressões do racismo estrutural e institucional1414 Batista LE, Monteiro RB, Medeiros RA. Iniquidades raciais e saúde: o ciclo da política de saúde da população negra. Saude Debate 2013; 37(99):681-690.,1515 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549.. Destaca-se o alto percentual de registros não informados relativos ao quesito raça/cor (27,39%), reforçando a crítica que acadêmicos e ativistas dedicados à discussão do racismo fazem da relação entre a não valorização dessa informação e o berço esplêndido do mito da democracia racial, no qual parte significativa do pensamento social brasileiro repousa1616 Nascimento A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1978..

A colonialidade em relação ao cuidado explicita uma ausência na história de mulheres negras, onde a construção da nação brasileira é marcada pela perpetuação de violação de direitos destas mulheres. A intenção de nação desejada por adeptos do movimento eugenista não deixava espaço para os negros e indígenas. Com o apoio científico da comunidade médica o movimento lança propostas de esterilização, controle matrimonial, seleção e segregação racial, e geração de “proles saudáveis”17 (p. 107). Todo o universo da eugenia é produtor de sofrimento da mulher negra. As estratégias pensadas para a “melhoria da raça” envolvem inibir a reprodução, isolamento afetivo, separatismo e desumanização.

Aqui discutimos saúde em sua dimensão do cuidado, olhando a relação racismo, sexismo e classismo, cuja sinergia opressiva converge, na experiência da mulher negra, naquilo que Carneiro1818 Carneiro S. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen; 2019. designa de asfixia social e as expressões nas suas condições de saúde, nas relações do cuidado e na consequente premência de uma reinvenção emancipatória. Asfixia social inadmissível, pois, destitui ontologicamente as mulheres negras do lugar de ser social e imprime uma relação de cuidado de base colonial1919 Passos RG. Mulheres negras, sofrimento e cuidado colonial. Em Pauta 2020; 18(45):116-129.. Um conjunto de questões que nos atravessa como mulheres negras - individual, coletiva e historicamente marcadas -, são aqui abordados como uma agenda que precisa ser construída coletivamente, entrar pela porta da frente dos espaços acadêmicos e da atenção à saúde, e alçar o patamar de prática social: a produção social do corpo racializado e a questão do cuidado, costurados pelas afetações dessas dinâmicas, e abordando a questão do sofrimento, agência, resistência e conquistas.

Mas a transposição em prática social implica, como nos alerta Rivera Cusicanqui2020 Rivera Cusicanqui S. Ch'ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón; 2010., em implodir a legitimidade que agentes de uma elite pensante se outorgam em termo de poderes, mesmo aqueles que se dizem não alinhados ao saber colonial, mas que com frequência se apropriam discursivamente da reflexão decolonial, como estratégia de manutenção de seu próprio protagonismo. Discursos destoantes, já que não guardam relação com os atos e com o lugar de mundo que seguem ocupando. O desvelamento dessa falsa “contradição”, uma vez que interessada na manutenção de recursos do saber como expressão de poder, é possível de ser transformada, como nos diz a autora, a partir de uma aprendizagem baseada mais em atos e menos em palavras, mais em termos de práticas sociais do que em arcabouços conceituais, ainda que estes sejam importantes e necessários, porém insuficientes2020 Rivera Cusicanqui S. Ch'ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón; 2010..

Notas sobre o cuidado e práticas de saúde

Estamos no século XXI, mas a lacuna de cuidado à mulher negra já havia sido há tempos denunciada por Sojourner Truth2121 Truth S, Gilbert O. E eu não sou uma mulher?: a narrativa de Sojourner Truth. Rio de Janeiro: Imã Editorial; 2020., no século XIX, ao questionar, na Convenção dos Direitos das Mulheres de Ohio, a categoria de mulher universal pautada no feminismo hegemônico e negligenciando pautas raciais, posto que não recebia os mesmos “cuidados” que a mulher branca2121 Truth S, Gilbert O. E eu não sou uma mulher?: a narrativa de Sojourner Truth. Rio de Janeiro: Imã Editorial; 2020. (p. 27).

Ao contrário, havia sido tratada como mercadoria, escravizada, sem que qualquer sinal de uma possível fragilidade feminina lhe caracterizasse. Desde então, não faltam relatos de piores desfechos em saúde, iniquidades no cuidado e na possibilidade de autocuidado, além de narrativas sobre sexismo, racismo e a antinegritude, “lógica que resulta na negação tanto ontológica quanto social da pessoa negra” atingindo em especial a mulher negra2222 Vargas JHC. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta 2020; 18(45):16-26. (p. 18).

Ao cunhar o termo antinegritude, Vargas2222 Vargas JHC. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta 2020; 18(45):16-26. aponta para o fenômeno singular e sistemático de exclusão pelo qual passam as pessoas não-brancas, qual seja, viver sob o signo da desvalorização da não-branquitude como resultado da supremacia branca global. Embora, a opressão vivida por estas pessoas seja proveniente da mesma fonte (e, portanto, passível de ser compartilhada) traduz-se em experiências distintas, por ocuparem diferentes posições de privilégios ou desvantagens. Assim, “o ser moderno (que) se define em oposição ao não ser negro”2222 Vargas JHC. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta 2020; 18(45):16-26. (p. 18), encontra na antinegritude a constituição e o fundamento próprio da Humanidade, que exclui aqueles que são considerados não-pessoas, os que vivem uma não-existência. É uma perspectiva para além do racismo, que define o grau de cidadania a ser atribuído às pessoas que não são brancas; trata-se de pertencer ou não à família humana, algo que se opera de maneira implícita, inconsciente2222 Vargas JHC. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta 2020; 18(45):16-26..

Se a presença negra em sociedades diaspóricas define como sujeito o ser não-negro, ao pensarmos na mulher negra e na questão de gênero como um construto histórico-social, devemos ampliar o debate para a questão da negritude e do racismo, numa mirada interseccional, que vislumbre a gramática diferenciadora da interpretação social de corpos, traduzida em diversas formas de opressão consubstanciadas em operações políticas e manuseios cotidianos sobre sujeitas negras. Qual lugar a sociedade produz para a mulher negra, se a situação de mulheres e homens negros, num sistema patriarcal branco, é a de casta dominada enfrentando os estereótipos criados pela casta dominadora? Beauvoir2323 Beauvoir S. O segundo sexo. 5a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2019. se pergunta: em que o fato de sermos mulheres terá afetado a nossa vida, que possibilidades nos foram oferecidas e quais nos foram recusadas? A autora nos diz que a mulher nasceu do “lado errado”; contudo indagamos: de que lado nasceu a mulher negra, afro-latino-americana e caribenha?

Lugones99 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952. nos fala da relação entre raça e colonialismo, possibilitando pensar a interseccionalidade na modernidade - interseção que abandona o binarismo homem/mulher, branco/negro, para então mergulhar em outra lógica que não seja da categorização para compreender a interseção de raça, gênero e sexualidade. A dicotomia homem-mulher esteve centrada no homem-europeu-burguês-colonial-moderno e seu suposto avesso, a mulher-europeia-burguesa. A ideia de uma categorização homogênea e atualizada refere-se ao membro superior dessa dicotomia; portanto, numa perspectiva falaciosamente universalista, quando se fala em mulheres a referência é feita à mulher branca. E quando se fala negro, a homens negros. Desta forma, a mulher negra é o Outro do homem negro e é o Outro da mulher branca2424 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019..

Spivak2525 Spivak GC. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2010. chama a atenção para a forma como a mulher é inserida na subalternidade, a fim de se evitar uma coletividade monolítica de “mulheres” no discurso sobre o feminismo: “Se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três maneiras”2525 Spivak GC. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2010. (p. 110). Tal envolvimento não pressupõe um lugar social que a coloque no papel de opressora; já mulheres brancas e homens negros podem, simultaneamente, agir como opressor ou oprimido. Compreender a subalternidade é condição sine qua non para transcender a diferença colonial e avançar rumo à descolonização, pois esta perspectiva de subalternidade virá como uma resposta à diferença colonial, podendo restituir o saber e o lugar dos subalternos dentro de uma nova epistemologia99 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952..

Quando voltamos o olhar para o Cuidado em Saúde (com maiúscula por ser, nesta concepção, um substantivo próprio, e um tanto afastado da ideia de tratar, curar ou controlar), o que vemos é a população negra com menor acesso aos serviços, medicamentos e internações; altas taxas de sífilis e HIV em gestantes, e mortalidade materna2626 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política nacional de saúde integral da população negra: uma política para o SUS. 3a ed. Brasília: MS; 2017., explicitando-se assim a interface cuidado-racismo2727 Xavier ACF, Estevam MSC, Ferreira BBM, Florentino DM, Barbosa MF, Barbosa AC. Ser preta(o) e ter Covid-19: reflexões sobre racismo e iniquidades em saúde. Saude Com Cien 2021; (1):220-229.. Isto exige um olhar acurado sobre a oferta das práticas de saúde vis a vis a legitimidade da busca pelo cuidado, independente do corpo que o recebe2828 Barbosa AC. O centro-dia, seus idosos e a sua família: um olhar sobre as relações de cuidado [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008..

Segundo os princípios do SUS, o Cuidado em Saúde deveria contemplar a equidade, integralidade e humanização, mas percebe-se que, a depender para quem é dirigido o cuidado, tais dispositivos são mais ou menos acionados. A forma como as políticas públicas de saúde organizam as linhas de cuidado raramente problematiza ou leva em consideração a questão racial, ao contrário, são formuladas a partir da noção de corpo único, universal, sem considerar a produção historicizada do lugar de corpos e sujeitos de base colonial-racial, o que é revelador de uma dada dinâmica social e se traduz em valores sociais e práticas racistas2929 Reinehr JPM. Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do Sistema Único de Saúde (SUS) [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2019..

O cuidado pressupõe uma complexa dinâmica que requer atenção, corresponsabilidade, autonomia e zelo, e não somente um procedimento técnico atendendo a uma demanda específica. A questão do Cuidado em Saúde é fartamente tematizada nas produções do campo da saúde coletiva, com críticas significativas, por exemplo sobre a captura tecnicista dos processos de trabalho. Entretanto, a questão racial é invisibilizada e/ou esvaziada de sentido.

Portanto, indaga-se qual deve ser o sentido de um encontro do cuidado inclusivo, integral, provedor de uma interação positiva, respeitosa, já que a sensação de desamparo e descaso são produtoras de mais sofrimento, e o corpo estético-político da mulher negra é marcado por experiências singulares de exclusão, por uma “liberdade vivida sob tensão”3030 Carneiro F. Nossos passos vêm de longe. In: Werneck J, Mendonça M, White EC, organizadores. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, Criola; 2006. p. 22-41.. Há a necessidade de se considerar raça/cor do corpo histórico que entra nos espaços do cuidado! Como nos alerta Carneiro, a luta de mulheres negras “[...] por acesso a atendimento digno [...] e respeito a valores e crenças [...]”3030 Carneiro F. Nossos passos vêm de longe. In: Werneck J, Mendonça M, White EC, organizadores. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, Criola; 2006. p. 22-41. (p. 22), e ainda, pelo racismo estrutural e institucional que exclui e segrega, deve orientar as tomadas de decisões clínicas, ainda que de maneira subliminar3030 Carneiro F. Nossos passos vêm de longe. In: Werneck J, Mendonça M, White EC, organizadores. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, Criola; 2006. p. 22-41..

Borret et al.3131 Borret RH, Araujo DHS, Belford PS, Oliveira DOPS, Vieira RC, Teixeira DS. Reflexões para uma prática em saúde antirracista. Rev Bras Educ Med 2020; 44(Supl. 1):1-7., ao reivindicar a “[...] produção e análise de dados com desagregação racial” propõem um Cuidado em Saúde antirracista, “[...] com vistas à equidade racial”3131 Borret RH, Araujo DHS, Belford PS, Oliveira DOPS, Vieira RC, Teixeira DS. Reflexões para uma prática em saúde antirracista. Rev Bras Educ Med 2020; 44(Supl. 1):1-7. (p. 3). Significa tomar para si, como profissional da saúde-cuidador, um horizonte ético que considere a diferença racial como pertinente aos modos de viver, adoecer e morrer, como parte de uma subjetividade moral e política que inscreve mulheres negras num lugar para além do eu biológico, para a percepção de um eu/nós “histórico, relacional e transcendente”, posto que “[...] o corpo marca e recria gestos e culturas que vêm de longe [...]”3030 Carneiro F. Nossos passos vêm de longe. In: Werneck J, Mendonça M, White EC, organizadores. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, Criola; 2006. p. 22-41. (p. 24).

Problematizando os enfoques sobre o tema, dialogamos com Muñoz e Bertolozzi3232 Muñoz Sánchez AI, Bertolozzi MR. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em saúde coletiva? Cien Saude Colet 2007; 12(2):319-324. (p. 322) quando ponderam que “[...] a vulnerabilidade deve levar em conta a dimensão relativa ao indivíduo e o local social por ele ocupado”, cuja leitura da produção de vulnerabilidades dialoga com Ayres3333 Ayres JRCM [entrevistado por Castellanos MEP, Baptista TWF]. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc 2018; 27(1):51-60. quando alerta a respeito do reconhecimento da vulnerabilidade enquanto conceito prático para se pensar a intervenção, propondo discutir uma noção de cuidado que perpasse a interação entre os profissionais da saúde e os sujeitos para quem se dirigem suas ações.

Seria um cuidado para alcançar êxitos técnicos no contexto que originam e justificam tais procedimentos e que efetivamente constitui sujeitos e não apenas os agentes ou objetos do êxito3434 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saude Colet 2001; 6(1):63-72.,3535 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29.. Ayres3535 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29. discorre também sobre a importância de uma construção identitária entre quem cuida e quem é cuidado como algo fundamental para que se instale o vínculo necessário para um cuidado efetivo. Ressalta-se que dado o nosso histórico colonial de produção desigual de sujeitos e corpos, pensar numa construção “identitária” em que ambos os atores dos encontros do cuidado assumam papéis equânimes na relação profissional-usuária/o, vivam um encontro dialógico, é pouco ou mesmo nada plausível.

Reflete-se sobre o ato de cuidar como um encontro no qual a leitura de corpo, tanto de quem cuida como de quem é cuidado, “chega primeiro” em face de nosso processo de sociabilidade e subjetivação historicamente forjado em bases coloniais e racistas, no qual cada um de nós, individual e coletivamente, acabamos por ocupar diferenciados lugares de mundo que modulam as ações de cuidado.

Kilomba2424 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019. narra a leitura que o médico branco faz da figura da jovem paciente negra que entra em seu consultório, colocando-a no lugar de potencial babá de seus filhos de férias, o que o deixa à vontade para convidá-la à função; leitura similar foi feita por médicas/os brancas/os brasileiras/os do lugar de médicas/os negras/os que vieram de Cuba para o Brasil, pelo Programa Mais Médicos, ao manifestarem-se contra sua incorporação na Estratégia Saúde da Família, argumentando parecerem “empregadas domésticas”3636 Freire S. Xenofobia e racismo contra médicos cubanos [Internet]. Geledés; 2013 [acessado 2022 jan 15]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/xenofobia-e-racismo-contra-medicos-cubanos/.
https://www.geledes.org.br/xenofobia-e-r...
(n. p.). Se a paciente-menina fosse branca, o convite para ser babá seria parte do repertório subjetivo e relacional do médico alemão? Se as médicas estrangeiras fossem brancas, seriam consideradas como tendo “cara de empregadas domésticas”? Essa “cara” é lida “na concretização do cuidado em suas diferentes instâncias, [ali estão] pessoas com quem estabelecemos as relações mais primárias e decidimos pelo acolhimento ou rejeição, pela dominação ou cooperação”2828 Barbosa AC. O centro-dia, seus idosos e a sua família: um olhar sobre as relações de cuidado [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. (p. 38).

Conhecimentos epidemiológicos que balizem um outro cuidado só será possível através da identificação formal de pretos e pardos. Resistir à coleta do quesito raça-cor e manter silêncio sobre nossa dinâmica racial são formas de embargar e interditar a discussão, como propõem os adeptos do novo racismo color-blind, que preconiza o silenciamento em torno das questões relativas à “raça”: “não ver, não falar, não agir em relação à raça. Dessa forma, ninguém soa racista e nada parece ser racista”2929 Reinehr JPM. Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do Sistema Único de Saúde (SUS) [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2019. (p. 128). É uma dinâmica do racismo similar na qual se assentou nosso mito da democracia racial, perpetrando desigualdades mesmo reconhecendo as condições desiguais em que vivem negros e não-negros.

Nesse cenário, a população negra em geral, e a mulher negra em particular, segue recebendo menos recursos e menos cuidados. Para além de serem práticas racistas em saúde, reconhecíveis como tal e alvo de estratégias de combate já propostas, configuram também como forma de nos entendermos e nos relacionarmos, trata-se da própria noção de humanidade, trata-se da antinegritude2929 Reinehr JPM. Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do Sistema Único de Saúde (SUS) [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2019. operando de forma implícita - mas não menos efetiva.

Sofrimento, agência, re-existência e conquistas

Chegamos até aqui com uma certeza: é preciso devolver este trauma ao mundo, como nos diz Lima3737 Lima F. Um ebó artístico-epistêmico: desobediências poéticas em Grada Kilomba. Rev Esp Acad 2021; 20(226):42-54. em diálogo com Kilomba3838 Kilomba G. Ilusões: vol. II: Édipo. In: Kilomba G. Grada Kilomba: desobediências poéticas [e-book]. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo; 2019.. As experiências dolorosas de uma lógica societal racista e sexista ajudam a manter o lugar de subalternidade da mulher negra, perpetuando estereótipos como herança colonial: “boa para o trabalho pesado”, “boa de cama...”.

Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2020, corpos pretos femininos são alvo de insistentes tentativas de destituição através de coerção psicológica, física e social: 66% das vítimas de feminicídio são mulheres negras, 75% da violência contra crianças e adolescentes foram investidas contra as negras3939 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 [Internet]. 2020 [acessado 2021 maio 16]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf.
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. Por essas e outras razões, a agência das mulheres negras, nos seus esforços cotidianos de sobrevivência, de enfrentamento das barreiras estruturais, institucionais e contingenciais, impulsionou o movimento de mulheres negras a partir da década de 1980 quando passaram “[...] a se organizar politicamente em função de sua condição específica do ser mulher e negra [...]”1818 Carneiro S. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen; 2019. (p. 167). Essa militância se tornou tríplice, por abarcar análises sobre processos de exclusão oriundos de raça, sexo e classe, manifestando-se em diferentes fóruns nacionais e internacionais. Mulheres negras estão criando uma cosmogonia própria através do feminismo negro, que oferece uma visão “do eu, da comunidade e da sociedade” onde vive, visão que apenas elas podem descrever1818 Carneiro S. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen; 2019. (p. 183). A mulher negra protagoniza espaços até então inteiramente dominados pela branquitude, como os espaços acadêmicos, importante lócus de produção e reprodução de conhecimento e daquilo que é considerado como ciência.

A força de re-existir de negras e negros se ergue como uma “[...] herança positiva para a luta por sua libertação ou para expressar uma liberdade e força que já são suas desde a ancestralidade, desde tempos imemoriais”4040 Cestari MJ. Vozes-mulheres negras ou feministas e antirracistas graças às Yabás [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015. (p. 232-233). Força que se renova nos coletivos, pois a mulher negra também sente fraqueza, cansaço e precisa de apoio. Processos curativos precisam ser processos coletivos3737 Lima F. Um ebó artístico-epistêmico: desobediências poéticas em Grada Kilomba. Rev Esp Acad 2021; 20(226):42-54., e operarem como agente de mudança coletiva ao confrontar a sociedade patriarcal4141 Werneck J. De ialodês a feministas [Internet]. Mulheres rebeldes; 2008 [acessado 2022 jan 15]. Disponível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2008/10/de-ialods-e-feministas.html.
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. A despeito das dinâmicas históricas próprias da colonialidade empurrarem a mulher negra para o lugar do sofrimento, este não as resume. Ao contrário, a agência da mulher negra se faz presente nos diversificados espaços sociais e desafia cotidianamente o perverso enredo que opera no esforço de sua des-sujeição. O genocídio do jovem negro, prática comum do estado brasileiro, tem resultado em muitas experiências de resistência e luta de mulheres negras - mães, companheiras, irmãs... Exemplos como o caminho do “luto à luta” das Mães de Acari; das Mães de Manguinhos e do Movimento Muleke4242 Araújo FA. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2007. expõem o esforço diário não apenas de sobrevivência e superação da dor, do luto e da depressão, mas também da transformação e construção de novos sentidos à existência negra, numa perspectiva de produção de futuro, que necessariamente passa pela luta contra o racismo.

Como bem ressalta Araújo et al.4343 Araújo VS, Souza ER, Silva VLM. "Eles vão certeiros nos nossos filhos": adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(4):1327-1336., “A resistência e as formas de atuação do Movimento de Mães se aproximam da noção que, na filosofia africana, recebe o nome de Ubuntu - ‘Eu sou porque nós somos’” (p. 1335). O enfrentamento dos processos de adoecimento em face a violência racial, sob a qual mulheres negras são historicamente submetidas, dá bem os contornos da potência de re-existência em outras bases do viver, diferente daquelas que o enredo colonial teima em nos colocar, no esforço de definir o “lugar de negra/o”.

Emergências sanitárias como a COVID-19 também servem para explicitar ainda mais as desigualdades raciais em saúde4444 Radar Covid-19 Favela - Edição 01 [Internet]. [acessado 2022 jan 15]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/42581/2/semanario-covid-favelas-fiocruz-final.pdf.
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. São inúmeras as iniciativas de sobrevivência e re-existência do povo preto em face a (in)ação do Estado, na forma da perpetuação do racismo institucional, modelador das políticas de enfretamento à pandemia (isolamento social; trabalho remoto; acesso a higienização dos ambientes e mãos etc.). Traz-se como exemplo a criação do Gabinete de Crise do Complexo de Favelas do Alemão, com destaque para a atuação do movimento Mulheres no Alemão, sob a liderança de Camila Moradia, em parceria com o Voz das Comunidades em Ação e do Coletivo Papo Reto4545 Oliveira RG, Cunha AP, Gadelha AGS, Carpio CG, Oliveira RB, Corrêa RM. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00150120., que atuam em diversas frentes tais como a vigilância civil em saúde, distribuição de cestas básicas e material de higiene, bem como a luta política contra a violência de Estado nas favelas, que culminou com a ADPF 635, conhecida como “ADPF Favelas”, que limitou as ações da polícia de realizar operações nas favelas, sancionada em junho de 2020, pelo Supremo Tribunal Federal4646 ADPF das Favelas. Vitória do povo negro e das favelas: STF exige mudanças imediatas na Segurança Pública do Rio [Internet]. [acessado 2022 jan 15]. Disponível em: https://www.adpfdasfavelas.org/.
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(STF). De maneira análoga também sofreu e resistiu a população quilombola. Exemplos como o enfrentamento da COVID-19 por parte de mulheres quilombolas do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, assim narrada por Maria Aparecida Machado Silva, da comunidade quilombola do Córrego do Rocha, em Chapada do Norte-MG:

Apagaram indiretamente o nosso sorriso, que é maravilhoso, mas mesmo debaixo da máscara a gente não perde a alegria de viver, mesmo com tantos desafios. Eu já ouvi dizer e eu acredito nisso, ser mulher é ser desafiada dez vezes, ser negra são mais dez desafios, ser quilombola são mais dez, então a gente é desafiada trinta vezes mais por ser mulher negra quilombola. Essa pandemia trouxe mais esse impedimento, mas também a gente encontrou muita força para lutar e para resistir, porque também somos um símbolo muito forte de resistência4747 Valente PA, Schall B, Moreira AMF, Souza SE, Silva MAN, Silva MAM, Oliveira RG. Narrativas sobre a Covid-19 na vida de mulheres quilombolas do Vale do Jequitinhonha: estratégias contracolonizadoras de luta e (re)existência. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, editores. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021. p. 171-180. (p. 178).

O feminismo negro nos alerta sobre a necessidade ao falar da vivência da mulher negra no mundo, da possibilidade de um discurso que não seja excludente e considere os modos como as opressões operam e conformam as experiências das mulheres no mundo. O papel dos movimentos de mulheres negras cuja agenda de luta na saúde contribuiu decisivamente para a construção da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra é exemplo significativo de resistência, potência e produção de vida nos espaços de fratura colonial99 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952., em que a problematização do cuidado tem lugar de destaque. Pensar o Cuidado em Saúde em nosso contexto implica necessariamente racializar o debate e, portanto, romper as lentes que nos são fornecidas pela colonialidade.

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Financiamento

Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2022
  • Aceito
    18 Set 2022
  • Publicado
    20 Set 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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