Fatores de risco à saúde mental dos profissionais da saúde durante a pandemia de COVID-19: revisão sistemática

Resumo

Neste estudo, nosso objetivo foi mapear as evidências disponíveis sobre os fatores de risco à saúde mental dos profissionais de saúde trabalhadores da linha de frente durante a pandemia de COVID-19. Trata-se de uma revisão sistemática que seguiu os critérios dos Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). A busca foi realizada independentemente, por quatro pesquisadores, seguindo os critérios de seleção nas bases de dados eletrônicas PubMed Central, Ovid Technologies, GALE Academic Onefile, Science Citation Index Expanded. No processamento de dados foi utilizado o software Zotero, responsável por criar e importar itens de acordo com os critérios estabelecidos pela pesquisa. Foram encontrados 18.733 artigos, dos quais 2.722 foram excluídos, a partir do programa Zotero, por estarem duplicados, e outros 366 excluídos manualmente. Após aplicação dos critérios de seleção, 43 artigos entraram na análise final desta revisão. Recomenda-se a elaboração de novas pesquisas científicas, sobretudo colocando como objeto a análise da saúde mental desses trabalhadores, com o objetivo de embasar a elaboração e implementação de programas e políticas públicas de saúde mental para os trabalhadores.

Palavras-chave:
Profissional de saúde; COVID-19; SARS-CoV-2; Saúde mental; Trabalhadores

Abstract

The aim of the present study was to map the available evidence on the mental health risk factors of frontline health professionals during the COVID-19 pandemic. This is a systematic review that followed the Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) criteria. The search was independently carried out by four researchers, following the selection criteria in the electronic databases: PubMed Central, Ovid Technologies, GALE Academic Onefile, Science Citation Index Expanded. The data processing used Zotero software, responsible for creating and importing items according to the criteria established by the research. A total of 18,733 articles were found, of which 2,722 were excluded by the Zotero software because they were in duplicate, and another 366 were manually excluded. After applying the selection criteria, 43 articles entered the final analysis of this review. It is recommended that new scientific research be carried out, especially focusing on the analysis of health workers’ mental health, aiming at providing the basis to create and implement public mental health programs and policies for workers.

Key words:
Health professional; COVID-19; SARS-CoV-2; Mental health; Workers

Introdução

O surto da COVID-19 (sigla em inglês para doença do coronavírus), teve origem em dezembro de 2019 em Wuhan, cidade localizada na província de Hubei, China. Devido à capacidade de alta propagação do coronavírus, ele se espalhou por todo o mundo, causando um grande problema de saúde pública mundial. Com isso, em 11 de março de 2020 foi declarada uma pandemia global pela Organização Mundial da Saúde (OMS)^1,2. Com o aumento no número de casos de pessoas contaminadas pelo coronavírus, o sistema de saúde passou por vários problemas devido à falta de conhecimento científico sobre a nova doença, que apresentava alta taxa de mortalidade¹.

Com a chegada do vírus e suas várias mutações, os sistemas de saúde entraram em colapso e enfrentaram grandes dificuldades em razão da ausência de protocolos efetivos no combate ao vírus e de tratamentos com comprovações científicas². Ainda, a ausência ou inadequação de treinamento apropriado nas equipes de assistência à COVID-19 com relação à prevenção e controle de infecções causou um alto número de contaminação dos profissionais da saúde. Somado a isso, a falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual no início da pandemia tornou ainda mais precária a situação dos trabalhadores e trabalhadoras da área de saúde que estavam na linha de frente do combate à COVID-19.

Diante da situação apresentada, que demandou grande responsabilidade dos profissionais de saúde e risco à vida, percebe-se que é necessário preocupar-se com os possíveis impactos na saúde mental dos profissionais, sobretudo aqueles que estiveram ligados diretamente ao enfrentamento da pandemia, nas ditas linhas de frente. Sendo assim, é importante a realização de pesquisas científicas do tipo revisão sistemática, para que seja possível reunir evidências provenientes de estudos que tiveram como objetivo mapear as evidências disponíveis sobre os fatores de risco à saúde mental dos profissionais de saúde trabalhadores da linha de frente durante a pandemia de COVID-19.

No que diz respeito ao caráter inédito deste estudo, foi evidenciado que no momento de sua produção não havia revisões cadastradas na base de dados do PROSPERO abordando esse assunto. Destaca-se o modo como os artigos foram categorizados e a forma de avaliação da qualidade dos estudos. O PROSPERO é uma base gratuita de registro para protocolos de revisões sistemáticas. Ressalta-se que a relevância científica desta base é reconhecida internacionalmente e possibilita a identificação de revisões inéditas, a exemplo desta revisão, e também de vieses de desfecho.

Método

Esta revisão sistemática foi realizada seguindo o Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). Conforme as orientações do comitê PRISMA³. A pesquisa foi registrada no International Prospective Register of Systematic Reviews (PROSPERO) em 26 de abril de 2021, com o número de registo CRD42021241088.

Critérios de elegibilidade - seleção dos estudos

Os estudos foram selecionados por meio de critérios pré-definidos estabelecidos por dois pesquisadores líderes. Para a questão-chave 1, a amostra/população do estudo era de profissionais de saúde que atuavam na assistência e cuidado a pacientes infectados e diagnosticados com COVID-19 e trabalhadores da linha de frente de hospitais, clínicas e/ou centros de reabilitação e triagem para COVID-19. Para a pergunta-chave 2, os fatores de risco potenciais foram características demográficas - país e/ou cidade pesquisada, histórico de exposição e fatores administrativos, como carga de trabalho. Dois pesquisadores revisaram cada etapa de seleção dos estudos incluídos nesta pesquisa e um “juiz” foi reportado quando não houve consenso entre os pesquisadores.

De acordo com o modelo PICOS, foram adotados os seguintes critérios de elegibilidade: participantes (P): profissionais de saúde que cuidassem ou assistissem pacientes com infecção por COVID-19 e trabalhadores que atuassem na linha de frente de hospitais, clínicas e centros de reabilitação e triagem para COVID-19; desfecho (O): prevalência de transtornos mentais comuns relatados nos estudos; estudo (S): transversal, longitudinal ou coorte (dados da linha de base). Por se tratar de uma revisão sistemática, nem todas as perguntas receberam uma resposta satisfatória.

Como critérios de inclusão foram considerados: o artigo indexado nas bases de dados selecionadas, com disponibilidade completa de - forma livre e integral - do texto; artigos de revistas revisadas​​ por pares; pesquisas publicadas em inglês, espanhol e/ou português; filtro de data de 2019 a 1º de junho de 2021. Não foram colocadas restrições quanto ao local em que o manuscrito foi produzido.

Fontes de informação e estratégia de busca

Foi realizada uma busca de forma independente, por quatro pesquisadores, seguindo os critérios de seleção estabelecidos pelo guia de orientação PRISMA-2020. Foram consultadas as seguintes bases de dados eletrônicas: PubMed Central (PMC), OVID Technologies, OneFile (GALE) e Science Citation Index Expanded. Para o processamento de dados foi utilizado o software Zotero, responsável por criar e importar itens de acordo com os critérios estabelecidos pela equipe de pesquisa.

Os termos utilizados na consulta foram estabelecidos pelos descritores do Medical Subject Headings (MeSH Terms). Foi realizada uma busca na bibliografia literária a partir dos seguintes descritores: “Health professional” AND “COVID-19” OR “SARS-CoV-2” AND “Mental Health” AND “Workers”. As variações nos descritores serviram para que fosse encontrada uma maior gama de resultados significativos para esta pesquisa.

Processo de coleta de dados

A gestão, importação, sincronização, e armazenamento dos dados foi efetuada por meio do software Zotero. A extração dos dados foi realizada inicialmente por dois autores, e depois analisada e revisada, em caso de discordância, por um terceiro pesquisador, de forma independente e sem intervenção no momento da extração; o consenso foi alcançado pela discussão entre os pesquisadores, a utilização de um árbitro final não foi necessária. O processo de seleção para a pesquisa incluiu hierarquicamente um procedimento de coleta de dados em três etapas para identificar os estudos relevantes: (1) análise e seleção por rastreio dos títulos; (2) análise e seleção da leitura dos resumos; e (3) análise e seleção pela leitura completa dos textos elegíveis.

Lista de dados

Todos os artigos atingiram nível máximo de domínio das medidas de desfecho escolhidas para esta pesquisa. Como forma de mapear as características dos artigos, as seguintes variáveis foram coletadas: título e ano; grupo analisado e categoria profissional; tipo de estudo e amostra; objetivo da pesquisa; as medidas de resultados; e os principais desfechos e limitações dos estudos, apresentados no Quadro 1 (Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1L_9UvMQ5R329MYnfLFMErJIO_WNqMkjt/view?usp=sharing).

Métodos de síntese

Para a avaliação da qualidade dos estudos selecionados, participaram dois investigadores, que extraíram os dados dos estudos selecionados e os organizaram no Quadro 2 (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1Jwi0Zfot8K9ldwhTN-Ptf8G3yzUvHlDl/view?usp=sharing), resultados que contêm a avaliação de qualidade feita com base nos critérios determinados pelo National Heart, Lung, and Blood Institute (NHLBI).

Considerando a importância de mensurar a qualidade dos estudos em revisões sistemáticas, o NHLBI desenvolveu um conjunto de ferramentas personalizadas que orientam essa mensuração, a exemplo da Guidance for Assessing the Quality of Observational Cohort and Cross-Sectional Studies⁴ (que em português significa orientação para avaliação da qualidade de estudos de coorte observacional e transversal). Essa ferramenta é composta por 14 itens, e cada um deles corresponde a uma pergunta, que pode ser respondida com “sim”, “não” ou “não reportado’’. Na ferramenta, pontua-se 1 para cada resposta “sim” e 0 para todas as outras respostas. De forma geral, a pontuação total do estudo seria o número de respostas “sim”. Notas superiores a 12 são consideradas “boas”, significando que o estudo tem um risco baixo de viés. Notas inferiores a 9 são consideradas “medianas”, o que significa que o estudo é de uma qualidade entendida como aceitável. Já as avaliações menores de 9 significam que o estudo é “razoável”⁵, ou seja, que detém pontos fortes e fracos, mas que apresenta um risco de viés significativo. Para este estudo, apenas os artigos de coorte observacional tiveram sua qualidade avaliada.

Resultados

Seleção dos estudos

A varredura inicial no banco de dados de palavras-chave retornou 18.733 artigos potencialmente elegíveis nas bases de pesquisa: PubMed Central: 9.987; Ovid Technologies: 6.864; GALE Academic Onefile: 1.354; Science Citation Index Expanded: 528.

Os resultados da varredura são apresentados na Figura 1 - PRISMA 2020 flow diagram for new systematic reviews which included searches of databases and registers only. Posteriormente à seleção dos 18.733 artigos, os materiais foram importados para o programa Zotero, com 2.722 sendo excluídos por duplicidade e 366 de forma manual, restando 15.645. Foram elegíveis 5.679 para inclusão na triagem de resumos. Após a triagem de resumos, 4.632 pesquisas foram excluídas, restando 1.047 artigos para triagem de texto completo, dos quais 1.004 artigos foram excluídos, restando 43 artigos para extração de dados - selecionados e apresentados nos Quadros 1 (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1L_9UvMQ5R329MYnfLFMErJIO_WNqMkjt/view?usp=sharing) e 2 (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1Jwi0Zfot8K9ldwhTN-Ptf8G3yzUvHlDl/view?usp=sharing) e na Figura 1.

Figura 1
Identificação de estudos por meio de bancos de dados e registros.

Características gerais dos estudos incluídos e avaliação da qualidade

A pontuação média de avaliação de qualidade NHLBI dos artigos foram: sete tiveram pontuação acima de 9, sendo considerados medianos 9/5^27,38-40,44; 10/1²⁶; 11/1³³. Os estudos considerados razoáveis foram a grande maioria 6/2^29,47; 7/5^28,30,34-36; 8/9^{25,31,32,37,42-44,46,47} . Todos os estudos elegíveis para a avaliação de qualidade do NHLBI estão expostos no Quadro 2 (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1Jwi0Zfot8K9ldwhTN-Ptf8G3yzUvHlDl/view?usp=sharing).

As características das pesquisas (grupo analisado/categorias profissionais; país de origem; ​​objetivo), assim como os ​​resultados do estudo, foram apresentados no Quadro 1 (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1L_9UvMQ5R329MYnfLFMErJIO_WNqMkjt/view?usp=sharing. Com relação às características metodológicas dos estudos elegíveis, 34 eram transversais ^{6-10,12-14,16-23,25-27,32-39,41-48}, duas pesquisas longitudinais^11,24, um estudo comparativo¹⁵, uma coorte observacional²⁸, um estudo observacional e descritivo transversal³⁰, um observacional transversal³¹ e um prospectivo de coorte⁴⁰. Dos 43 estudos incluídos, 42 foram realizados e publicados em 2020^6-8,10-48, somente um foi publicado em 2021⁹.

No que respeita às amostras, o número total da população pesquisada nos estudos foi de 49.117 pessoas. Todas as pesquisas tinham de forma detalhada o perfil e a população estudada. A maioria dos estudos com abordagem transversal utilizou métodos não probabilísticos de amostragem. Quanto às características demográficas relacionadas à origem dos estudos, a maioria era de origem chinesa (15), onde o surto da COVID-19 começou. Todavia, foram encontrados trabalhos conduzidos na Espanha (4), Estados Unidos (3), Itália (3), Turquia (2), Alemanha (2), Índia (2), Japão (2), Arábia Saudita (2), Sri Lanka (1), Gana (1), Irlanda (1), França (1), Reino Unido (1), Rússia (1), Omã (1) e Etiópia (1).

A categoria profissional que mais foi relatada nas pesquisas foi a de enfermeiro, seguida de médicos, profissionais técnicos, cirurgiões dentistas, trabalhadores da administração, limpeza e segurança.

Perfil da população dos estudos

As categorias profissionais mais pesquisadas foram as de enfermeiros e médicos, e grande parte dos estudos apontou que havia sobrecarga de trabalho, relatada em 37 pesquisas^{6-17,20-25, 27-32,34,36-48}, e os profissionais de enfermagem pesquisados eram mulheres^{7,8,16,30,31,34,37,41,48}. Os preditores para o surgimento de transtornos mentais e/ou sofrimento mental mais descritos nesses 37 estudos foram: exposição constante a pacientes infectados ou portadores do vírus; falta de equipamentos de proteção individual; elevada possibilidade de contágio no ambiente de trabalho; desconforto causado pelo uso contínuo de equipamentos de proteção individual; escassez crônica de profissionais de saúde; alta carga/jornada de trabalho; falta de uma política global mais eficiente em relação ao controle de infecção.

Seleção final: descrição dos riscos aos quais estão expostos os trabalhadores de saúde envolvidos no atendimento de pacientes diagnosticados com COVID-19 durante a pandemia

Durante a seleção final, 43 artigos foram incluídos para leitura na íntegra e extração de dados. Foram evidenciados quatro principais riscos aos quais estão expostos os trabalhadores de saúde envolvidos no atendimento de pacientes diagnosticados com COVID-19 durante a pandemia, os quais foram agrupados em três categorias, duas que tratam dos riscos e uma terceira que tem o objetivo de descrever a incidência de sintomas/transtornos mentais na população estudada, a saber: i) descrição dos riscos associados à ocupação e ambiente, ii) descrição dos riscos associados à escassez de programas educacionais e de treinamento, e iii) descrição das repercussões na saúde mental dos profissionais - incidência de sintomas/transtornos relacionados à saúde mental descritos nos estudos.

Descrição dos riscos associados à ocupação e ao ambiente de trabalho

Com relação às questões que envolvem a organização do trabalho e a falta de equipamento de proteção individual (EPI), todos os 43 estudos relataram algum tipo de déficit de EPI, algo que foi considerado um fator que elevou o nível de estresse entre os profissionais de saúde.

A exposição a pacientes infectados, principalmente por meio do trabalho em departamentos/ambientes de alto risco - Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) - e em outros locais com grande circulação de fluidos/aerossóis contaminados foram relatados como importante fator de risco para contaminação de COVID-19 entre os profissionais de saúde^8,19,21,28.

O cansaço, o sono e a insônia, que se relacionam com as jornadas e as sobrecargas de trabalho, foram os principais preditores para o surgimento de estresse e ansiedade no trabalho^{3,4,6,11,18,24,29,33,34}. Quatro estudos apresentaram dados sobre essa associação, que resultou em falta de descanso, privação de sono, insônia e exposição prolongada a pacientes infectados^4,6,18,34, como fatores que levavam os trabalhadores ao estresse.

Os efeitos combinados de estressores, de carga viral e ambientes não preparados para suprir a necessidade de combate ao vírus foram alguns dos itens identificados na varredura da revisão sistemática^8,23.

​​Os achados de ​​Chang e colaboradores⁸ demonstraram que os trabalhadores do departamento de emergência (31,64%) eram mais propensos a contrair COVID-19 do que os profissionais de saúde na UTI (23,17%) e ambientes de internação (25,53%), esses achados têm relação com o ambiente de trabalho e a estrutura organizacional e de educação de cada ambiente.

Descrição dos riscos associados à escassez de programas de treinamento e educacionais

O treinamento inadequado dos profissionais de saúde foi um fator relatado como preditor do surgimento de transtornos mentais e/ou sofrimento mental, e consequentemente para a contaminação por COVID-19. A falta de adesão aos protocolos de controle de infecção e a um sistema de apoio psicossocial que acompanhasse os trabalhadores em contraturno ao trabalho, bem como treinamento e atualização de acesso e uso de equipamentos de proteção individual, também foram questões relacionadas aos riscos educacionais^29,39,43, elevando a possibilidade de transtornos mentais entre os trabalhadores.

Descrição das repercussões na saúde mental dos profissionais: incidência de sintomas/transtornos relacionados à saúde mental descritos nos estudos

As pesquisas descreveram uma ampla variedade de resultados sobre as repercussões na saúde mental. Essas repercussões, consideradas decorrentes da pandemia de COVID-19 na saúde mental dos trabalhadores de saúde, foram agrupadas em duas categorias, a saber: 1) questões relacionadas aos transtornos mentais e 2) questões ligadas ao processo de trabalho.

Com relação aos sintomas/transtornos citados, a ansiedade, o humor deprimido, a insônia, a angústia, a ​​exaustão emocional, o esgotamento e/ou o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) foram os mais relatados nos 43 estudos analisados^{6-17,20-34,36-48}.

No âmbito geral, a proporção de sintomas graves a extremamente graves de depressão e ansiedade foi relatada em 40% da população pesquisada nesta revisão, em 27 estudos, fazendo com que se possa compreender que existe uma associação significativa entre contato dos trabalhadores com intervenções junto aos pacientes com COVID-19 e sintomas de ansiedade e estresse no trabalho^{6-10,12-17,23,24,26-30,32,33,37,41,44-48}. Os sintomas psicológicos foram avaliados nos estudos usando diferentes medidas validadas. Para mensurar os níveis de esgotamento profissional, por exemplo, foi utilizado o Maslach Burnout Inventory (MBI)^12-14,41. Esses achados sugerem diferenças marcantes na prevalência de sintomas depressivos entre os estudos rastreados nesta revisão.

Três estudos transversais, todos oriundos da China, reportaram a resiliência, o bom preparo da equipe profissional e a boa gestão do sistema de saúde, bem como a capacidade de enfrentamento psicológico dos profissionais e da gestão diante de emergências de saúde pública, como fatores positivos que poderiam evitar ou amenizar o adoecimento mental dos profissionais de saúde^18,19,35.

Discussão

A pandemia da SARS-CoV-2 foi declarada em março de 2020 pela OMS, colocando mais de 200 países em alerta. Enquanto o mundo estava preocupado e empenhado em salvar vidas, apostando na qualidade e na rapidez do trabalho dos profissionais dos serviços de saúde que atuavam junto a indivíduos diagnosticados com o vírus, a saúde mental desses trabalhadores foi negligenciada^{1,11-13,21,46,48-52}.

Pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), intitulada Condições de Trabalho dos profissionais de Saúde no Contexto da COVID-19 no Brasil, contou com 25 mil participantes e retratou a realidade dos profissionais que atuavam na linha de frente, que descreveram estar marcados por dores físicas e mentais, sofrimento e tristeza, com fortes sinais de esgotamento físico e mental. Na maioria dos casos, o trabalho era realizado em ambientes de forma extenuante, onde a sobrecarga de horas e de atividades eram constantes, como forma de compensar o elevado absenteísmo que se apresentava. Além disso, o medo da contaminação e da morte iminente eram vivenciados dia após dia, em gestões marcadas pelo risco de confisco da cidadania do trabalhador (perdas dos direitos trabalhistas, terceirização, desemprego, perda de renda, salários baixos, gastos extras com compras de EPI, transporte alternativo e alimentação)⁵¹.

Apesar de a maioria dos países terem conseguido controlar a pandemia de COVID-19 ao longo dos últimos anos mediante a vacinação, pesquisas incipientes contemplaram as questões de saúde mental/psiquiátricas dos profissionais da saúde que trabalharam na linha de frente durante a pandemia, e poucos são os estudos com descrições dos transtornos/doenças mentais mais relatados durante o período pandêmico. Compreende-se que a dimensão da saúde mental é um aspecto essencial, que deve ser mais valorizado no universo da realização de pesquisas em situações de pandemia, entendendo que esses estudos são importantes documentos para elaboração e implementação de práticas profissionais, organização, gestão e criação de políticas públicas de saúde e trabalho.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou dados relevantes, alertando para o fato de o primeiro ano da pandemia de COVID-19 ter causado elevação da prevalência global de ansiedade e depressão, um aumento em 25% de casos relatados e diagnosticados. Essas preocupações com presumíveis aumentos dessas condições levaram 90% dos países pesquisados a realizarem a inclusão da saúde mental e do apoio psicossocial em seus planos de resposta à COVID-19 nos ambientes de trabalho, entretanto, permanecem lacunas expressivas e preocupações relacionadas à saúde dos trabalhadores⁵⁰.

Em 2022, Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) destacou o impacto da COVID-19 na saúde mental da população mundial como apenas a ponta do iceberg. Desse modo, a OPAS apontou que todos os países (sobretudo aqueles em desenvolvimento, que sofrem mais com questões econômicas e de desigualdade na atenção/cuidado em saúde mental) precisam considerar à saúde mental como um elemento importante, pois apenas dessa forma seria possível ofertar um trabalho digno, melhor no que diz respeito ao apoio à saúde mental das populações em períodos pandêmicos⁵².

A diretora do Departamento de Saúde Mental e Uso de Substâncias da OMS, por sua vez, sublinhou que mesmo que a pandemia tenha gerado interesse e preocupação pela saúde mental, foi revelado um quadro de subinvestimento histórico nos serviços que ofereceram cuidados voltados à questão^49,51,52. Desse modo, os países precisam agir com urgência, com vistas à garantia de que o apoio à saúde mental esteja disponível para todos, principalmente em períodos de pandemias e pós-pandemias⁵¹.

Descrição dos riscos associados à ocupação e ao ambiente de trabalho

Os trabalhadores da linha de frente ao enfrentamento da pandemia de COVID-19 estavam diretamente envolvidos na recepção, atendimento, acolhimento, diagnóstico e tratamento de pessoas com COVID-19. Os números crescentes de casos confirmados em 2020 na Europa, Ásia e América, e no início de 2021, principalmente na América Latina e África^49-52, elevaram os índices de contaminação por diversas variantes entre os profissionais da saúde. O agravamento da contaminação associada a alta carga de trabalho, insuficiência de leitos e hospitais, falta de EPI, aumento do risco de infecção para familiares e comunidade próxima, além da falta de planejamento e apoio adequados e incapacidade de aderir às estratégias de prevenção, contribuíram para uma sobrecarga mental dos profissionais de saúde^7,9,13,28-49.

A exposição a pacientes infectados em áreas de grande fluxo e rotatividade de pessoas, como em UTIs e locais com grande circulação e contaminação por fluidos/aerossóis contaminados, salas de cirurgias e consultórios odontológicos, foram apresentados como fatores de risco ambiental para os profissionais de saúde^13,24,26,33.

No ano de 2021, a OMS divulgou orientações provisórias sobre avaliação e gestão de risco dos profissionais de saúde no contexto do COVID-19^49,52. A orientação é oferecida para os profissionais de saúde e as instalações de trabalho dessas pessoas. A falta de EPI, uma questão importante sempre apontada pela OMS, foi amplamente relatada em todos os 43 estudos que incluídos nesta revisão, além da carência de profissionais treinados e capacitados para atuarem na linha de frente em pandemias com vírus ainda desconhecidos^8,19,21,28. É possível, nesta revisão, destacar a importância de medidas mais eficazes e preventivas para proteger os profissionais da saúde da linha de frente, evitando danos psicológicos provenientes da insegurança e do medo de contrair um vírus que apresentava altas taxas de letalidade^{3,4,6,11,18,24,29,33,34}.

Descrição dos riscos associados à escassez de programas de treinamento e educacionais

Com relação às questões que envolvem a quantidade de tempo de trabalho, a proximidade entre profissionais de saúde e pacientes infectados e programas de treinamento, a pesquisa de Rodríguez-Rey et al.⁴⁸ demonstrou que muitos profissionais de saúde da linha de frente na Espanha sofriam de depressão e ansiedade. Alguns dos motivos apresentados foram a exposição prolongada ao vírus, com o déficit de equipamento de proteção individual, o medo de infectar os familiares e a falta de capacitação da equipe médica em relação à propagação da doença, uma vez que os profissionais da linha de frente que tratam pacientes com COVID-19 provavelmente estão expostos ao maior risco de infecção devido ao contato próximo e frequente com pacientes.

A pesquisa realizada por Croghan e colaboradores³⁷ apresentou diversas formas de apoio e de programas de treinamento para os profissionais no ambiente de trabalho como forma de um processo de curto e longo prazo de intervenções sistemáticas de mitigação do estresse na equipe de saúde, considerando que a falta de treinamento, pode acarretar elevação dos índices de contaminação entre os trabalhadores^{3,4,6,11,18,24,29,33,34,51}.

Relatos do impacto psicológico agudo e dos riscos psicossociais foram evidenciados na pesquisa de Tan et al.²³ Além disso, diversas outras pesquisas relataram altos níveis de angústia, depressão, ansiedade, medo e frustração, também foi relatada a necessidade de se estabelecer programas de acompanhamento para os trabalhadores da linha de frente^{15-17,20,24,26,40,44}.

Descrição das repercussões na saúde mental dos profissionais: incidência de sintomas/transtornos descritos nos estudos

Uma pesquisa realizada no Brasil pela Fiocruz⁵¹ evidenciou, entre outros aspectos, graves e prejudiciais consequências para a saúde mental daqueles que atuaram na assistência aos pacientes infectados em momentos críticos da pandemia. As alterações mais comuns em seu cotidiano foram perturbação do sono (15,8%), irritabilidade/choro frequente/distúrbios em geral (13,6%), incapacidade de relaxar/estresse (11,7%), dificuldade de concentração ou pensamento lento (9,2%), perda de satisfação na carreira ou na vida/tristeza/apatia (9,1%), sensação negativa do futuro/pensamento negativo ou suicida (8,3%) e alteração no apetite/alteração do peso (8,1%).

Estudo de Trumello et al.¹³ destaca que os trabalhadores que atuavam diretamente com pacientes com COVID-19 apresentavam elevação na taxa de risco para estresse, burnout, trauma secundário, depressão e ansiedade, e aqueles que trabalhavam nas áreas geográficas mais afetadas pelo vírus tinham maior risco de desenvolver burnout e estresse, além de apresentarem baixa satisfação com o trabalho. A saúde mental dos profissionais de saúde que atuavam na linha de frente demandava maior atenção do que a dos demais profissionais do mesmo serviço de saúde, sendo necessário a implantação e utilização de programas direcionados de prevenção e intervenção^13,15-20.

​​As prevalências de ansiedade e depressão entre os profissionais de saúde da linha de frente apresentaram indicadores mais elevados do que os dos profissionais de saúde que não atuavam na linha de frente. Os enfermeiros apresentaram taxas mais altas de ansiedade, insônia e depressão do que médicos, dentistas e outros profissionais da linha de frente^{7,8,16,30,31,34,38,41,48}. Em revisão sistemática com metanálise realizada por Sun e colaboradores⁵⁰ foram identificados níveis significativos de ansiedade entre os profissionais trabalhadores da linha de frente - 37% (IC95% 0,31-0,42, I2 = 99,9%), corroborando outros estudos em que a prevalência de depressão e insônia apresentaram níveis significativos^{8,9,11,16,23,29,34,38,39}.

O estudo de Sun et al.⁵⁰ deflagrou ainda mais a crise estrutural que a pandemia de COVID-19 trouxe ao mundo do trabalho, principalmente ao trabalho realizado por mulheres. Em uma análise de subgrupos realizada na referida pesquisa, foram expostos elevados índices de depressão entre as profissionais mulheres que atuavam na linha de frente, em comparação com os profissionais homens, corroborando os achados desta revisão^{7,8,16,30,31,34,38,41,48}.

Os resultados encontrados na presente pesquisa sugerem que o processo de intervenção no ambiente de trabalho precisa ser realizado de forma precoce, como forma de diminuir os altos níveis de problemas de saúde mental nos profissionais de saúde, principalmente quanto à incidência de ansiedade e depressão^{8-13,15-17,30,31,34,38,41,48}.

Existem inúmeros pontos fortes e algumas limitações nesta revisão, entre elas aponta-se as questões que envolvem a divisão de categorias profissionais que atuaram junto a pacientes com COVID-19, algo que tornou complexa a análise. Para minimizar esses limites, foram também incluídos estudos que abordavam profissionais técnicos que, apesar de não serem da saúde, trabalhavam em serviços de saúde diariamente com intervenções relacionadas à linha de frente. Outro fator que se relaciona aos limites se refere à heterogeneidade inerente aos estudos. Enquanto inúmeras pesquisas apresentavam níveis consideráveis de prevalência de ansiedade, depressão, burnout e insônia, outras utilizaram os mesmos testes, porém, por meio de diferentes escalas de avaliação, estabelecendo assim limiares distintos.

Ainda que no ano de 2023 a OMS tenha declarado o tão esperado fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) para a COVID-19⁵³, todas as pesquisas que foram analisadas nesta revisão sistemática apresentaram discussões acerca do medo de ser infectado e a angústia causada pelo medo de espalhá-lo entre os membros da família, a estigmatização por parte da população no momento crítico da pandemia, a baixa autoconfiança, a baixa segurança ocupacional e as altas jornadas/cargas de trabalho como fatores de risco vitais, que precisam ser considerados na elaboração e implementação de futuros serviços de apoio psicológico destinados aos profissionais de saúde que vivenciaram essa pandemia e aos que poderão vivenciar outras futuras.

Conclusão

Este trabalho buscou identificar artigos relacionados às repercussões decorrentes da pandemia de COVID-19 na saúde mental de trabalhadores da saúde que atuam no combate ao vírus e qual a prevalência dos impactos para esses profissionais. Nos artigos encontrados foi possível descrever as características dos estudos incluídos, mensurar sua qualidade, identificar o público-alvo (profissionais mais frequentemente envolvidos), identificar diferentes tipos de fatores de risco relacionados à execução desse trabalho (ocupacionais/ambientais, de treinamento/educação e voltados à saúde mental) e fazer reflexões pautadas na necessidade de investimento das empresas e dos governos em programas de cuidado voltados à saúde mental no mundo inteiro.

Por fim, a revisão revelou a necessidade de elaboração de novas pesquisas científicas, com diferentes metodologias, mas descrevam e analisem a experiência de trabalho dos profissionais que estiveram junto às intervenções com pacientes diagnosticados com COVID-19, sobretudo colocando como objeto de análise a saúde mental desses trabalhadores. Este estudo tem como limitação o período temporal da varredura bibliográfica.

Referências

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• Financiamento

  Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Edital 04/2019 para Projeto de Iniciação Científica.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  23 Out 2023
• Data do Fascículo
  Out 2023

Histórico

• Recebido
  01 Jun 2022
• Aceito
  01 Jun 2023
• Publicado
  02 Ago 2023