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Olha, você (não) está sozinho: a circulação da dádiva e a saúde mental de profissionais de saúde durante a pandemia de COVID-19

Resumo

Durante a pandemia de COVID-19, a saúde mental dos profissionais de saúde, que trabalharam diretamente nos serviços voltados para o cuidado dos pacientes afetados pela doença, tornou-se questão fundamental a ser considerada, dado os diversos desdobramentos que essa atuação gerou para esses profissionais. O objetivo deste artigo foi compreender desafios e demandas dos profissionais de saúde em termos de suporte para lidar com o desgaste emocional e físico com a atuação na chamada linha de frente durante a pandemia de COVID-19. A abordagem metodológica qualitativa se deu a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas em ambiente online com esses profissionais, passados os primeiros meses de pandemia. O lugar de herói em que eles foram colocados, ainda que apenas nos discursos midiáticos, logo deu espaço para que as fragilidades destes e das relações de trabalho aparecessem: estresse, medo e o desejo de escuta e acolhimento. A teoria da dádiva de Marcel Mauss foi trazida considerando que novas formas de leitura e interpretação das relações de trabalho em saúde contribuem para reformulações necessárias e urgentes do contexto em que se encontram hoje, visando a saúde mental e, mais amplamente, a saúde integral dos profissionais da área de saúde.

Palavras-chave:
COVID-19; Saúde mental; Profissionais de saúde

Abstract

The mental health of health professionals who worked directly in services during the COVID-19 pandemic to care for patients affected by the disease became a fundamental issue to be considered, given the several consequences of this activity for these professionals. This article aimed to understand the challenges and demands of health professionals concerning support to address the emotional and physical exhaustion of working on the so-called frontline during the COVID-19 pandemic. The qualitative methodological approach was based on semi-structured interviews conducted online with these professionals after the first months of the pandemic. The hero’s place in which they were set, even if only in media discourses, soon gave way to their weaknesses and fragile work relationships to emerge: stress, fear, and the listening and reception desire. Marcel Mauss’ gift theory was brought up considering that new ways of reading and interpreting health work relationships contribute to necessary and urgent reformulations of their current context, targeting mental health and, more broadly, the comprehensive health of healthcare professionals.

Key words:
COVID-19; Mental health; Health professionals

Introdução

Esse artigo contextualiza o lugar dos profissionais de saúde que estiveram envolvidos diretamente no cuidado aos pacientes afetados pela COVID-19 no primeiro ano de pandemia. Passados mais de dois anos após o início da emergência sanitária11 Lipsitch M, Swerdlow DL, Finelli L. Defining the epidemiology of COVID-19 - studies needed. N Engl J Med 2020; 382(13):1194-1196., o presente artigo apresenta falas de profissionais de saúde que atuaram presencialmente durante os primeiros meses da pandemia em instituições públicas e privadas no estado do Rio de Janeiro.

O paradigma global de flexibilização do trabalho, que enuncia o trabalhador livre partindo de sua capacidade de estar aberto e preparado para mudanças, em vez de criar condições melhores, produz novas estruturas de poder e de controle22 Sennett R. A corrosão do caráter: as consequencias pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record; 2008.. E é nesse cenário de desvalorização que a pandemia surge, exigindo mais dos trabalhadores sem garantir os direitos e suportes necessários.

Além do difícil contexto epidemiológico, a pandemia desvelou o que anos de precarização do trabalho trouxeram como consequência: ausência de políticas públicas, direitos trabalhistas muito frágeis e subfinanciamento para a área da saúde33 Helioterio MC, Lopes FQRS, Sousa CC, Souza FO, Pinho PS, Sousa FNF, Araújo TM. COVID-19: por que a proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia? Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00289121..

O Brasil teve seu primeiro caso registrado da doença em 25 de fevereiro de 202044 Lancet The. COVID-19 in Brazil: "So what?". Lancet 2020; 395(10235):1461.. Nos meses subsequentes, os casos e mortes registrados aumentaram de forma avassaladora e a demanda sobre esses profissionais cresceu exponencialmente.

Além da exposição aos agravos físicos, que gerou um grande número de infecções e até mesmo mortes de trabalhadores da saúde55 Xiang YT, Yang Y, Li W, Zhang L, Zhang Q, Cheung T, Ng CH. Timely mental health care for the 2019 novel coronavirus outbreak is urgently needed. Lancet Psychiatry 2020; 7(3):228-229., de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), durante esse período, os profissionais estavam sob um risco ainda maior de desenvolver questões relacionadas à saúde mental66 Loss JC, Boechat L, Silva L, Dias V. The mental health of health professionals on the front lines against COVID-19. Rev Transform 2020; 14(4):54-75.. Ainda assim, as ações visando o cuidado dos profissionais nem sempre eram postas em prática ou vistas como prioritárias pelos serviços públicos ou privados.

Estamos em 2022 e a emergência sanitária persiste, tendo como consequência diversos desdobramentos importantes e duradouros77 Diniz D. O legado da Zika. Correio Braziliense 2017; 19 nov.. Desse modo, abordar de que forma a saúde mental dos trabalhadores foi afetada nesses últimos meses é fundamental, considerando o contexto precário em que já se encontravam no pré-pandemia.

O estudo busca compreender as necessidades e demandas apontadas pelos profissionais de saúde em termos de suporte para lidar com o desgaste emocional e físico, assim como os desafios enfrentados por aqueles que atuaram na chamada linha de frente durante a pandemia de COVID-19.

Diante da multiplicidade e das características do trabalho em saúde, o presente estudo optou por escutar os profissionais de saúde que estavam na assistência direta e contínua aos pacientes infectados pela COVID-19.

Percurso metodológico

Partindo do interesse e da necessidade de conhecer mais sobre os profissionais de saúde e o trabalho deles na pandemia de COVID-19, um grupo de pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira - Fiocruz (IFF/Fiocruz) desenvolveu o projeto de pesquisa “Perfil clínico-epidemiológico e psicossocial dos profissionais de saúde em face da epidemia de COVID-19 no estado do Rio de Janeiro (COVIDPRO)”. Esse projeto está registrado na Plataforma Brasil sob CAEE 31997320.5.0000.5269, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa IFF/Fiocruz sob parecer nº 4.102.925

Buscando dados sobre as características demográficas, laborais e sua interface com a saúde mental, foi elaborado um questionário com 30 questões fechadas e uma questão aberta88 Camacho KG, Gomes Junior SCS, Reis AT, Junqueira-Marinho MdF, França LCM, Abramov DM, Azevedo ZMA, Moreira MEL, Vasconcelos ZFM, Salú MS, Silva ML, Castro BSM, Rodrigues JM, Pereira CD, Werner Junior J, Bastos Junior RM, Caixeta DML, Moore DCBC. Repercussions of the COVID-19 pandemic on health professionals in the state of Rio de Janeiro/Brazil. PLoS ONE 2022; 17(1):e0261814.. Esse questionário foi compartilhado com os participantes em formato de formulário eletrônico desenvolvido na plataforma Google forms e enviado, por meio de redes sociais, com um link para acesso.

Esse formulário foi respondido por 1.190 participantes, que aceitaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido antes de iniciar o questionário. Destes, 554 responderam à questão aberta: “Gostaríamos de deixar esse espaço aberto para você escrever como se sente neste momento de pandemia ou contribuir com sugestões de questões que não foram contempladas neste estudo”.

Após finalizar o questionário era possível sinalizar o interesse em participar da entrevista que integra a parte qualitativa do estudo, a qual esse artigo apresenta. Destes 554 que responderam à pergunta aberta, 126 se voluntariaram para participar da entrevista. Foi enviado um e-mail para aqueles que estavam na assistência direta e contínua aos pacientes infectados pela COVID-19, convidando-os para a próxima etapa. Ao final foram realizadas dez entrevistas virtualmente pela plataforma Zoom.

Metodologia: a etapa qualitativa

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas99 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2012. a partir de um roteiro previamente elaborado. Cada entrevista teve um tempo médio de duração de 40 minutos, totalizando mais de sete horas de gravação. O roteiro buscou compreender quais foram os maiores desafios dos profissionais de saúde e de que maneira lidaram com essas questões nos primeiros meses da pandemia: como era a rotina de trabalho, de que forma se sentiam nesse ambiente e de que modo isso se refletia em sua vida pessoal. Também objetivou-se compreender quais suportes cada profissional recebeu ou gostaria de ter recebido enquanto trabalhador da saúde em um momento tão desafiador.

Os dez entrevistados eram de categorias profissionais, idades e perfis de trabalho diferentes, todos moradores do estado do Rio de Janeiro (Quadro 1).

Quadro 1
Características dos entrevistados.

As entrevistas foram submetidas aos princípios do método de interpretação de sentidos. Para esse método, importam o contexto, as razões e as lógicas empreendidas que evocam ações e interações entre grupos e instituições1010 Caillé. O dom entre interesse e desinteressamento. In: Martins PH, Campos RB, organizadores. A polifonia do dom. Recife: Ed. Universitária; 2006. p. 25-65.. A teoria da dádiva, que tem como um de seus principais sistematizadores Marcel Mauss1111 Mauss M. "Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas" em sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif; 2003., embasou a estrutura de análise das entrevistas. A partir dos extratos das falas dos participantes, foram identificadas as ideias consideradas centrais e os sentidos a elas subjacentes, proporcionando ao final a organização de núcleos interpretativos. Articulou-se a discussão sobre saúde mental e relações de trabalho, considerando o efeito do sistema interpessoal de trocas.

Lacerda e Martins1212 Lacerda A, Martins PH. A dádiva no trabalho dos agentes comunitários de saúde. Realis 2013; 3(1):194-213. discutem sobre a importância de os estudos de saúde coletiva acrescentarem em suas análises a respeito dos serviços de saúde a teoria da dádiva, que possibilita compreender de forma mais ampliada como as relações sociais e a formação de redes sociais se constituem no cotidiano dos serviços de saúde. Os autores apontam que no Brasil a circulação da dádiva no contexto da saúde ainda é pouco explorada, porém as discussões em curso elucidam que as relações nos serviços de saúde se estabelecem também a partir desse paradigma nos mais diversos níveis de atenção se entrecruzam com as lógicas estatal e mercantil.

Resultados e discussão

As relações sociais podem ser analisadas a partir das mais diferentes categorias, porém não podemos reduzi-las a só uma. As relações de poder que se colocam e a importância do interesse econômico que pauta muitas das interações são fundamentais, mas não são capazes de expor trocas que não podem ser descritas ou explicadas dentro do pensamento utilitarista. A opção por discutir os resultados deste estudo a partir do conceito de dádiva vai ao encontro da perspectiva de que relações sociais no campo da saúde e do trabalho devem ser interpretadas subvertendo a lógica de mercado1313 Antunes R. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo; 2020.

A compreensão da dádiva como sistema de trocas básico da vida social permite romper com esse pensamento utilitarista e dicotômico no qual a sociedade seria somente fruto das ações do Estado e do mercado1414 Martins PH. A sociologia de Marcel Mauss; dádiva, simbolismo e associação. In: Martins PH, Campos RB, organizadores. A polifonia do dom. Recife: Ed. Universitária; 2006. p. 89-116.. Diferentemente do sistema bipartite do mercado, que funciona pela equivalência dar-pagar, na dádiva (dar-receber-retribuir) o bem devolvido nunca tem valor igual àquele recebido inicialmente, o valor que importa é qualitativo, o que funda a devolução não é a equivalência, e sim a assimetria.

Para marcar a distinção da dádiva em relação à economia, Caillé1010 Caillé. O dom entre interesse e desinteressamento. In: Martins PH, Campos RB, organizadores. A polifonia do dom. Recife: Ed. Universitária; 2006. p. 25-65. propõe uma definição em que a dádiva pode ser qualificada como qualquer prestação de serviço ou bem efetuado sem a garantia de retorno, visando criar, alimentar ou recriar o elo social entre as pessoas. Essa definição faz surgir uma dimensão ignorada ou até mesmo negada pelos economistas, e mostra que bens e serviços também podem valer em função de sua capacidade de criação e reprodução de relações sociais, tendo assim um valor não só de troca ou uso, mas de elo, que vale mais que os bens.

Dessa maneira, podemos entender que dádiva não é um modelo econômico, mas um sistema social pessoa a pessoa que perdura até os dias de hoje e que, por isso, é caro para analisar situações e contextos atuais1515 Godbout J. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Ed. FGV; 1999..

Durante os primeiros meses de pandemia, muito pouco era sabido sobre a COVID-19, sobre sua transmissibilidade e gravidade, e nesse cenário repleto de incertezas, os profissionais de saúde foram colocados e se colocaram na linha de frente. Aqueles que mesmo sem saber o que os esperava, muitas vezes sem recursos, precisavam ser os “heróis”, “os guerreiros”. A narrativa que se criou sobre essa experiência estava muito ligada a esses signos, antes mesmo que temas como escassez de recursos, carga horária aumentada e direitos que não estavam sendo cumpridos fossem questionados.

Quais eram os limites, né, da questão de contaminação. A gente tava vivendo um filme surreal, né, desses de ficção científica, né? Então assim, a gente não tinha ideia de quando que aquilo ia acabar. Se tinha controle ou se não tinha. E se... Essa questão da infecção como que ela ocorria mesmo. Então muita coisa... Foi muita... É foi muito stress em função disso (E1).

Não sei te dizer como é que nem o dinheiro valia a pena. Nem o dinheiro valia a pena pra eu te dizer que era o dinheiro, mas fui (E9).

A assimetria, que é ponto fundamental para a discussão da dádiva, logo se fez exposta. Não era pelo salário que as pessoas se colocavam e sustentavam ou achavam que iriam sustentar sua posição diante o avanço da pandemia. Esse status do herói sempre foi muito frágil, então o que mais estava em jogo? O que mais podemos falar sobre essas trocas em que o que se oferece é muito mais do que o que se recebe em troca se pudéssemos colocar em termos objetivos?

Uma característica importante a se considerar é que a simetria na circulação da dádiva nem sempre é possível, nem mesmo desejável, como no caso em que as diferenças se acentuam, como os adultos e as crianças, ou o cuidado a pessoas em situação de vulnerabilidade, seja de saúde ou social. Para discutirmos essa assimetria é importante que um novo termo seja acrescentado: a benevolência. Slguém precisa ser benevolente.

Eu acho que mais da metade das pessoas que foram pra linha de frente tiveram uma escolha de ir pra linha de frente. Sabe? É... Às vezes não no sentido assim... Algumas muito altruisticamente (E5).

Os trechos destacados nos fazem indagar o que seria esse desejo, o que estaria em jogo para que os profissionais de saúde se colocassem à disposição para trabalhar em um cenário muito incerto e, como veremos, muitas vezes precarizado. Não é o dinheiro, no dizer da entrevistada, é esse algo que ela não consegue nomear mas que mesmo assim a fez “ir” que nos faz trazer a teoria da dádiva para a discussão das relações de trabalho e das trocas simbólicas desses profissionais durante os momentos mais difíceis da pandemia, algo que não pode ser reduzido à relação econômica.

Considerando o ciclo simbólico da dádiva, podemos afirmar que o que nos move é o desejo de sermos reconhecidos como doadores, generosos. Entretanto, esse reconhecimento é entrecruzado por diversos aspectos sociais. Por isso, reconhecer que nem todas as dádivas trazem honra e prestígio é um importante aprimoramento da teoria da dádiva1616 Caillé. Dádiva, care e saúde. Sociologias 2014; 16(36):42-59..

Os trabalhadores são heróis, né? E aí muitas doações. A gente recebeu frascos de vitamina. Frascos de álcool gel. E hidratantes, né? E isso foi distribuído entre as pessoas da equipe. É... Isso é aí um mimo, vamos dizer. Né? Todas as coisas boas que a gente ganha a gente agradece. Por outro lado, essas coisas, elas não persistem, né? Elas são bastante pontuais, né, e hoje a gente tem habitualidade, né? Uma... Eu diria até uma banalização [...] Ontem éramos heróis, hoje estamos desempregados e sem salário (E2).

Mais uma vez a assimetria, que é característica das trocas na dádiva, se apresenta. Por mais que houvesse um desejo genuíno de grande parte dos profissionais de estar nessa linha de frente, ocupar esse lugar não foi simples.

O cenário complexo que a pandemia instaurou trouxe diversos desdobramentos para aqueles que atuavam diretamente no cuidado aos pacientes. As novas demandas de cuidado geraram nos profissionais um esgotamento físico e mental influenciado por fatores como tomada de decisão em situações extremamente delicadas e sofrimento devido à perda de pacientes e colegas de trabalho. Tudo isso contribuiu para a sobrecarga emocional desses profissionais, afetando sua saúde mental1717 Fermandes MA, Ribeiro AAA. Salud mental y estrés ocupacional en trabajadores de la salud a la primera línea de la pandemia de COVID-19. Rev Cuidarte 2020; 11(2):e1222..

Era fazendo massagem cardíaca em um. Outro gritava: “O outro parou.” E eu correndo no ventilador. E outro médico me gritando e eu... Aquilo ali é... Sinceramente. Aquilo ali que foi a minha impotência maior no início. Teve um dia que eu sentei dentro do carro. Chorei uns cinco minutos sem parar. Compulsivamente (E4).

Ainda que as demandas de cuidado, com as quais esses profissionais estão acostumados a lidar, sejam ligadas à saúde física de seus pacientes, durante a pandemia a questão do cuidado à saúde mental, do acolhimento à dor e ao sofrimento, ficou ainda mais evidenciada como algo que não pode ser dissociado dos aspectos biológicos, do cuidado à doença, reforçando o sentido da integralidade em saúde1818 Camargo Junior KR. Um ensaio sobre a (in)definição de integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS Abrasco; 2003. p. 35-43.. Porém, lidar com o sofrimento de forma tão escancarada, e numa situação de tanta incerteza, gerou ainda mais sobrecarga nos profissionais, que por sua vez também precisavam de um lugar de acolhimento para dar destino ao seu próprio sofrimento.

A gente trabalhou sem salário e ninguém faltava. Faltavam pouquíssimas pessoas. Todo mundo ia. Sabe? E aquilo era assustador. O que me assustava também era que os pacientes não pediam. É muito raro um paciente não te pedir nada. Nada. Nada. Nada. Nem água. [...] Era o tempo todo calado. Eu ficava assim: “Gente, que coisa estranha. Ninguém fala? Ninguém pede alguma coisa?” E eles não pediam e eu falei... E depois eu vi como era sintomático da pandemia. Ninguém falava. Eles tinham medo, eu acho. Né? (E7).

A fala da entrevistada é contundente, em algum momento ela se dá conta de que o silêncio tinha um sentido. Era o medo, o medo de morrer que os pacientes enfrentavam vendo tantos outros indo a óbito diariamente. Esse medo estava também colocado para os próprios profissionais, gerando impacto em sua saúde mental.

Eu ficava... Só de ir pro hospital eu já ficava com muito medo, né? Eu ficava com um misto de querer ter coragem pra ajudar. Eu queria muito ajudar, né, porque era o momento que a gente precisava disso. Todo mundo precisava ajudar. E não queria falar do meu medo. Eu não queria nem falar. Sabe? Que eu ficava... E fica... Você vê que eu fico até emocionada até hoje, porque foi muito difícil pra mim. Sabe? Esse momento (E10).

A fala do entrevistado aponta para a questão colocada entre dádiva e saúde mental. O lugar de herói supunha uma disponibilidade emocional muitas vezes difícil de ser sustentada. O medo permanente certamente gerava um alto estresse capaz de afetar o cotidiano dos profissionais. O “não falar” surgia como uma defesa psíquica frágil, porém possível para lidar com o sofrimento e o desejo de permanecer atuando na linha de frente. Faltavam estratégias para que os profissionais se sentissem mais seguros para enfrentar a pandemia e todas as suas consequências.

A ideia do grupo enquanto equipe se apoiando e trabalhando junto certamente era fundamental para dar um contorno psíquico aos profissionais, mas não o suficiente para evitar desfechos relacionados ao estresse1919 Krystal JH. Responding to the hidden pandemic for healthcare workers: stress. Nat Med 2020; 26(5):639..

Ter um espaço para endereçar esses novos sentimentos ligados à sobrecarga de trabalho e emocional se mostrou necessário, ouvir esses profissionais, fundamental para se repensar o lugar da saúde mental em um momento único, que intensificou e complexificou os desafios pré-existentes no contexto do trabalho em saúde 2020 Shanafelt T, Ripp J, Trockel M. Understanding and addressing sources of anxiety among health care professionals during the COVID-19 pandemic. JAMA 2020 323(21):2133-2134..

A partir do momento em que se passou a escutar esses profissionais, uma série de demandas foi identificada e algumas medidas foram entendidas como fundamentais20-23. Desde ações voltadas à implementação de estratégias para dar mais segurança aos profissionais, como treinamentos para uso correto do equipamento de proteção individual (EPI), disponibilização destes, melhor fluxo e triagem desses pacientes (de modo que os profissionais não ficassem tão expostos a pacientes não diagnosticados), testagem, redução da carga de trabalho e, finalmente, apoio psicológico para esses profissionais.

Achei que a ausência da gestão, no sentido de presença mesmo nas unidades, até pra dizer assim: “Oi, tudo bem? Como é que estão as coisas por aí?”. Eu acho que faltou... Faltou mesmo. Né? É que tem que ter alguém, entendeu? Presente, se mostrando, mostrando a cara: “Olha, você não tá sozinha (E1).

O papel de alguém que pudesse ocupar o lugar de referência para os profissionais dentro de seus serviços foi muitas vezes deixado em branco. Corriqueiramente, chefes de setores e gestores não conseguiram estar perto de suas equipes nesse momento de tantas incertezas e mudanças quase que diárias de informações e protocolos. Porém, é de suma importância que os profissionais que ocupam esses cargos de liderança entendam as fontes de preocupação dos funcionários e trabalhem juntos para que essas diminuam. Não é esperado que, para reduzir essas preocupações, precisem de respostas concretas, nem mesmo solução para os problemas, mas que escutem as questões colocadas e atuem para que sejam endereçadas, mostrando que suas perspectivas foram ouvidas e consideradas relevantes2020 Shanafelt T, Ripp J, Trockel M. Understanding and addressing sources of anxiety among health care professionals during the COVID-19 pandemic. JAMA 2020 323(21):2133-2134..

Essas medidas, que partem da escuta, recuperam o lugar do sujeito fazendo circular a dádiva: dar, receber e retribuir. Nada pode funcionar se profissionais e gestores não se ajudarem permanentemente com conselhos técnicos, apoios afetivos e informações de todo tipo, recriando assim o elo social. Ainda que assimétrica, a dádiva implica uma circulação em que todos se reconhecem como sujeitos participantes de um mesmo momento social e histórico, comprometidos na tessitura do processo de trabalho em saúde.

As práticas em saúde são complexas e diversas, assim, há serviços em que as relações sociais estão mais centradas no paradigma da dádiva, e outros em que o paradigma do mercado se encontra mais destacado. Os serviços cuja assistência têm seus pilares no vínculo e na valorização do sujeito costumam apresentar mais ações sociais baseadas na dádiva1212 Lacerda A, Martins PH. A dádiva no trabalho dos agentes comunitários de saúde. Realis 2013; 3(1):194-213.. Novamente, fortalecer os laços sociais no trabalho se configura como um processo em que saúde física e mental do trabalhador são pilares para uma melhor atenção em saúde.

Considerações finais

O trabalho em saúde é, a cada dia mais, envolvido pela lógica de mercado, e o que a teoria da dádiva nos traz é a interpretação das relações que se constroem para além dessa lógica, possibilitando reforçar a importância das trocas interpessoais nos serviços em saúde.

Para esses profissionais, ser visto, ser acolhido, ter seus medos e desafios reconhecidos no seu próprio ambiente de trabalho se coloca como algo urgente. Por mais que se reconheça a importância de suportes, como o apoio da família e de amigos, prática de exercícios, hobbies, e até mesmo o espaço da psicoterapia individual, poder expor suas fragilidades no seu ambiente de trabalho e tê-las reconhecidas como desafios reais aparece nas falas desses profissionais como fundamental.

Não é possível generalizar como cada profissional de saúde lidou com as questões que foram surgindo conforme o tempo ia passando. São múltiplas as experiências, as categorias profissionais, os ambientes de trabalho, a forma com que cada um pode lidar e lida todos os dias com as questões relacionadas ao trabalho. Porém, se por um lado não é possível responder por todos, também não podemos individualizar os efeitos dessas relações no trabalho para pensarmos os suportes necessários a essas pessoas. É preciso avançar e entender esses efeitos nos espaços e nas relações que se constroem no trabalho.

Protocolos voltados à atenção à saúde dos trabalhadores são bem-vindos e ocupam seu lugar de relevância. Entretanto, torna-se necessário ponderar que, para além de fortalecer a motivação pessoal e interna dos trabalhadores, o contexto onde estão inseridos deve ser levado em conta. A circulação da dádiva, ainda que assimétrica, engloba aspectos de ordem pessoal e também aqueles contextuais, de modo que dar-receber-retribuir não pode ser desvinculado do processo de trabalho em saúde como um todo.

Nesse sentido, o contexto laboral em que os profissionais estão inseridos, envolvendo desde salários até relações interpessoais e condições de trabalho, assume papel de extrema relevância. Em uma emergência sanitária, como a de COVID-19, essas questões ganham luz, escancarando a necessidade de apoio e cuidado com a saúde física e mental dos trabalhadores em saúde. É fundamental que os serviços de saúde se organizem de forma a atender as demandas dos trabalhadores, exercitando no cotidiano o que pode se tornar mais delicado em uma possível nova emergência sanitária.

Referências

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Editores-chefes:

Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    01 Jun 2023
  • Publicado
    06 Set 2023
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