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Aborto e raça no Brasil, Pesquisa Nacional de Aborto 2016 a 2021

Resumo

Examinamos a realização do aborto segundo cor ou raça das mulheres no Brasil usando dados de três edições da PNA, 2016, 2019 e 2021. Comparamos diferenciais raciais aplicando testes de diferenças de médias a dados de levantamentos separados, levantamentos combinados sem reponderação, e levantamentos combinados e reponderados. Na comparação usamos ainda modelos logísticos para a chance de realização de aborto. Os resultados indicam que há diferencial racial consistente nas três edições da PNA, com os percentuais de aborto entre as mulheres negras sendo mais elevados do que entre as mulheres brancas. Nos levantamentos combinados e reponderados, entre as mulheres negras de todas as idades a probabilidade de ter feito um aborto é de 11,03% enquanto entre as mulheres brancas é de 7,55%. Isso significa uma diferença de 3,5 pontos percentuais, que se traduz em uma probabilidade 46% maior para as negras, valores estatisticamente significantes para um intervalo de 5%. Regressões logísticas produzem resultados similares, com probabilidade média predita das mulheres negras de 12,61% e das mulheres brancas de 8,90%, também significantes. As diferenças raciais persistem estatisticamente significantes para várias combinações de edições da PNA. Porém, nos levantamentos isolados os testes de diferenças de média são estatisticamente significantes apenas em 2016.

Palavras-chave:
Aborto; Cor ou raça; Pesquisa Nacional de Aborto; Brasil

Abstract

We examine racial differentials in abortion among women in Brazil using data from three editions of the Brazilian National Abortion Survey (PNA), 2016, 2019 and 2021. We test the difference in means in data from separate surveys, combined surveys without reweighting, and combined and reweighted surveys. We also use logistic models for the chance of having an abortion. The results indicate that there is a consistent racial differential in the three editions of PNA, with the percentage of abortions among Black women being higher than among white women. In the combined and reweighted surveys, among Black women of all ages the probability of having had an abortion is 11.03% while among white women it is 7.55%. This means a difference of 3.5 percentage points, which translates into a 46% higher probability for Black women, statistically significant values for a 5% interval. Logistic regressions produce similar results, with an average predicted probability of 12.61% for Black women and 8.90% for white women, also significant. Racial differences remain statistically significant for various combinations of PNA editions. However, in the separate surveys, the difference in means tests are only statistically significant in 2016. Black refers to the group formed by Black and Brown women (pretas and pardas). Due to the small sample size, it is not possible to say much about the differences with Asian and Indigenous women.

Key words:
Abortion; Color or race; National Abortion Survey; Brazil

Introdução

O aborto é um evento comum à vida das mulheres brasileiras11 Olinto M, Moreira Filho DC. Estimativa de aborto induzido: comparação entre duas metodologias. Rev Panam Salud Publica 2004; 15(5):331-336.

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-1515 Mello FMBD, Sousa JLD, Figueroa JN. Magnitude do aborto inseguro em Pernambuco, Brasil, 1996 a 2006. Cad Saude Publica 2011; 27(1):87-93.. Porém, a relação entre desigualdades raciais e aborto é algo que merece ser mais bem explorado.

Há pesquisa sobre o assunto. As barreiras individuais no acesso aos cuidados pós-aborto, por exemplo, são mais severas entre as mulheres negras. Indicadores como tempo para o início do atendimento ou acesso a um leito são racialmente diferenciados. As mulheres negras são também as que tem mais medo de represálias ao buscar os serviços de saúde e há evidências de maior prevalência entre elas1616 Fusco CLB, Silva RDS, Andreoni S. Unsafe abortion: social determinants and health inequities in a vulnerable population in São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica 2012; 28(4):709-719.

17 Goes EF, Menezes GMS, Almeida MCC, Araújo TVB, Alves SV, Alves MTSSB, Aquino EML. Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto. Cad Saude Publica 2020; 36:e00189618.
-1818 Goes EF, Menezes GMS, Almeida MCC, Barreto-de-Araújo TV, Alves SV, Alves MTSSB, Aquino EMML. Barriers in Accessing Care for Consequence of Unsafe Abortion by Black Women: Evidence of Institutional Racism in Brazil. J Racial and Ethnic Health Disparities 2021; 8(6):1385-1394.. Não surpreende, portanto, que as mulheres negras tenham maior risco de óbito relacionado ao aborto1919 Cardoso BB, Vieira FMSB, Saraceni V. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cad Saude Publica 2020; 36:e00188718.. Nosso objetivo é examinar a relação entre raça e chances de se fazer um aborto.

Neste artigo, agregamos três edições da PNA para examinar a realização do aborto segundo cor ou raça das mulheres. A terminologia cor ou raça, bem como a maior parte das categorias raciais utilizadas, seguem a terminologia e as classificações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os resultados indicam que o aborto é um evento mais comum entre as mulheres negras (pretas e pardas) do que entre as mulheres brancas, e que essas desigualdades raciais são consistentes com o tempo. Os tamanhos pequenos de grupo no desenho amostral de cada edição da PNA não permitem fazer afirmações sobre mulheres de outros grupos raciais, como as mulheres asiáticas (amarelas) ou indígenas.

Metodologia

Dados

Foram usadas três edições da PNA, 2016, 2019 e 2021. As edições da PNA usaram amostras representativas da população de mulheres alfabetizada de 18 a 39 anos, residentes em áreas urbanas do país. A PNA 2019 limitou-se à região Nordeste (NE), tal como definida pelo IBGE. Todas as edições possuem o mesmo tipo de desenho amostral, técnicas de entrevista face a face por mulheres, e desenho de formulário depositado em uma urna. As amostras foram selecionadas por conglomerados em três estágios: no primeiro estágio, seleção de municípios pelo método de probabilidade proporcional ao tamanho; no segundo, seleção de conglomerados formados por setores censitários do IBGE; no terceiro, seleção em cada conglomerado de um número fixo da população com controle para cotas de idade, grau de instrução e condição de ocupação. As amostras foram desenhadas para uma margem de erro de 2% a um nível de confiança de 95%. Os tamanhos amostrais são 2.002 em 2016, 1.008 em 2019 (região Nordeste) e 2.000 em 202122 Singh S, Wulf D. Estimated levels of induced abortion in six Latin American countries. Int Fam Plan Perspect 1994; 20(1):4-13.

3 Singh S, Wulf D. Estimating Abortion Levels in Brazil, Colombia and Peru, Using Hospital Admissions and Fertility Survey Data. Int Fam Plan Perspect 1991; 17(1):8-24.
-44 Cecatti JG, Guerra GVDQL, Sousa MHD, Menezes GMDS. Aborto no Brasil: um enfoque demográfico. Rev Bras Ginecol Obstetr 2010; 32(3):105-111..

A coleta de dados em todas as edições usou dois instrumentos, um questionário aplicado face a face e um formulário autopreenchido aplicado com a técnica de urna, para assegurar tanto o sigilo efetivo quanto a percepção de sigilo. Técnicas como a de urna tendem a ser mais recomendáveis para pesquisar temas sensíveis pois evitam parte da subestimação que é identificada em questionários diretos2020 Singh S, Remez L, Tartaglione A, editors. Methodologies for estimating abortion incidence and abortion-related morbidity: a review. New York: Guttmacher Institute; 2010.

21 Juarez F, Cabigon J, Singh S. The sealed envelope method of estimating induced abortion: how much of an improvement? In: Singh S, Remez L, Tartaglione A, editors. Methodologies for estimating abortion incidence and abortion-related morbidity: a review. New York: Guttmacher Institute; 2010. p. 107-124.
-2222 Lara D, Strickler J, Olavarrieta C, Ellertson C. Measuring induced Abortion in Mexico: a comparison of four methodologies. Sociol Methods Res 2004; 32(4):529-558.. O questionário aplicado face a face continha perguntas sociodemográficas (idade, escolaridade, renda familiar, condição e porte do município, religião, raça, situação conjugal, ocupação, filhos nascidos vivos). As aplicadoras deste questionário foram todas mulheres. O formulário autopreenchido e depositado na urna pela entrevistada apresentava questões sobre aborto: a realização era identificada pela pergunta “você já fez aborto alguma vez?” e, além disso, havia perguntas para a identificação da idade do primeiro aborto, idade do último aborto, uso de medicamento no último aborto e necessidade de internação no último aborto. Os dois questionários estavam conectados por códigos criptografados para assegurar sigilo. Além disso, foram registradas informações geográficas (localização, condição e porte do município). Os domicílios sem resposta ou sem mulheres alfabetizadas na faixa etária do estudo foram substituídos por uma amostra aleatória de reposição e as auditorias de campo indicaram que não houve intercorrências relevantes nos levantamentos. As taxas de resposta foram elevadas.

Os levantamentos foram analisados separadamente e em conjunto. Para a análise conjunta os dados de 2016, 2019 e 2021 foram reunidos e tratados como se expressassem a estrutura sociodemográfica da população de 2021 em um total de 4.241 entrevistas. Para tanto, ajustamos as idades das mulheres entrevistadas em 2016 e 2019 para refletir sua idade esperada em 2021 e, em seguida, excluímos da amostra aquelas com mais de 39 anos ajustados (589 casos, sendo 466 em 2016 e 123 em 2019). Criamos pesos amostrais para manter as proporções de população observadas na PNA 2021 por faixa de idade, educação e condição de ocupada (mesmas variáveis usadas nas cotas amostrais) e, também, por região, porte de município e condição do município. Na prática, essa estratégia de reponderação trata as PNA como se fossem uma única amostra realizada em 2021. Como em 2016 e 2019 há combinações de região, educação, idade, ocupação, porte e condição do município que não existem em 2021 (o oposto nunca acontece), foram excluídos mais 180 casos (99 em 2016 e 81 em 2019). Como a realização do aborto é uma mudança permanente e as amostras são representativas a cada ano, há um viés de subestimação dos eventuais abortos realizados pelas mulheres entre a data de sua entrevista em 2016 ou 2019 e a data do levantamento de 2021. Apresentamos resultados com e sem as reponderações na quinta tabela. As demais tabelas usam dados combinados sem qualquer tipo de ajuste.

Cor ou raça na PNA é identificada por autodeclaração no questionário face-a-face e usando a pergunta “Agora, vou fazer uma pergunta exatamente como é feita pelo IBGE para classificação da população brasileira: a sua cor ou raça é... e as alternativas de resposta são Branca, Preta, Parda, Amarela ou Indígena”.

Procedimentos

Nas edições da PNA o desenho da amostra é feito para margem de erro de 2 pontos percentuais (p.p.) para o Brasil como um todo. Em decorrência disso, estimativas para subgrupos populacionais possuem intervalos de confiança bastante largos, especialmente no caso de subgrupos com tamanho reduzido, de modo que testes de hipóteses da diferença entre médias têm poder limitado. Em 2021, por exemplo, a distribuição das mulheres por cor ou raça e a proporção de mulheres que abortaram [em colchetes] era brancas 26% [9%, n=47 casos], pretas 19% [11%, n=40], pardas 51% [11%, n=109], amarelas 3% [8%, n=5], indígenas 1% [17%, n=4]. Um único caso a menos de aborto entre as indígenas do levantamento seria suficiente para inverter o ordenamento e colocá-las entre as mulheres com as menores proporções.

Por isso, para avaliar os diferenciais raciais no aborto dividimos a população (100%) em três grupos, mulheres negras (pretas e pardas), brancas (brancas, apenas) e outras (amarelas e indígenas). As proporções de mulheres negras, brancas e outras nas amostras sem reponderação são 62%, 34% e 5% em 2016 (n=2.002), 75%, 19% e 6% em 2019 NE (n=1.008) e 69%, 27% e 5% em 2021 (n=2.000). Nas amostras reponderadas e com idades ajustadas estas passam a ser 60%, 37% e 4% em 2016 (n=1.536), 76%, 18% e 6% em 2019 (n=885), 68%, 28% e 5% em 2021 (n=2.000). As diferenças entre grupos são examinadas por testes de diferenças de médias aplicados a três tipos de dados: levantamentos separados, levantamentos combinados sem reponderação, e levantamentos combinados e reponderados.

Usamos ainda modelos logísticos para a estimar a probabilidade de realização de aborto controlando por ano da pesquisa e idade, como abaixo:

log i t ( a b o r t o ) = α + β 1 1 { c o r i = n e g r a } + β 2 i d a d e i + δ t + ε i

Em que a variável dependente é a realização de aborto, 1{.} é uma função indicadora, idadei é a idade da mulher no momento de realização da pesquisa, e δt são efeitos fixos para o ano de realização da pesquisa. Devido ao pequeno número de casos de mulheres indígenas e/ou amarelas, estimamos as regressões logísticas apenas para a subamostra de mulheres negras ou brancas, de modo que as mulheres brancas são a categoria de base para as comparações. Todos os modelos logísticos usam os dados combinados, porém sem reponderação ou qualquer outro ajuste; por isso controlamos pelo ano de realização dos levantamentos.

Resultados

Nas três edições da PNA, os percentuais de aborto entre as mulheres negras foram mais elevados do que entre as mulheres brancas. Com exceção da PNA 2016, as edições de 2019 e 2021 mostram diferenças inferiores a 2 pontos percentuais (p.p.) entre os dois grupos, como se observa nas Tabelas 1, 2 e 3.

Tabela 1
Realização de aborto segundo cor ou raça - PNA 2016.
Tabela 2
Realização de aborto segundo cor ou raça - PNA 2019.
Tabela 3
Realização de aborto segundo cor ou raça - PNA 2021.
Tabela 4
Teste de diferenças entre proporções de aborto segundo cor ou raça.

Se cada pesquisa for tomada isoladamente, os diferenciais raciais entre mulheres negras e mulheres brancas em 2019 e em 2021 não são estatisticamente significantes para um p-valor de 5%. Apenas em 2016 o diferencial é significante, como mostra a Tabela 4. Por outro lado, quando as edições da PNA são combinadas, a maior parte dos diferenciais torna-se estatisticamente significante. Quando as três edições da PNA são combinadas e reponderadas com a estrutura da amostra de 2021 (n=4.241), todos os diferenciais raciais entre mulheres negras e mulheres brancas passam a ser estatisticamente significantes, com o aborto sendo mais frequente entre as mulheres negras, como se infere pelos resultados da Tabela 5. Distinto do que ocorre na Tabela 4, na Tabela 5 os erros-padrão estão conglomerados por município (isto é, permitindo correlação intramunicipal na propensão a fazer aborto).

Tabela 5
Estatísticas descritivas com e sem reponderação dos dados.

A combinação reponderada altera as estimativas de ponto e, com isso, as diferenças tornam-se maiores, com a proporção de mulheres negras que fizeram aborto sendo 3.5 p.p. maior que a de mulheres brancas (Tabela 5). Os intervalos das estimativas para a mulheres que se classificaram nas categorias amarelas e indígenas do IBGE são grandes o suficiente para englobar os valores estimados para qualquer outro grupo racial.

No modelo de regressão logística com as três PNA combinadas, controlando por ano e idade, a probabilidade média predita para mulheres de todas as idades brancas é de 8,90%, contra 12,61% para negras, diferença que é estatisticamente significativa, como se observa na Tabela 6. Duas das outras três combinações de amostras geram resultados substantivamente idênticos. A exceção está nos resultados para a amostra que combina a PNA 2019 à de 2021. Nesse caso, o efeito marginal médio para as mulheres negras ainda é positivo, mas cai pela metade em comparação com os outros modelos (2 p.p. contra cerca de 4 p.p. nos outros), e deixa de ser estatisticamente significativo. Isso ocorre porque a maior diferença por cor ou raça foi observada na PNA 2016 e a amostra da PNA 2019 é menor do que as demais, pois contempla somente a região Nordeste.

Tabela 6
Probabilidades preditas pelo modelo logístico.

Como se trata de um evento cumulativo, a idade da mulher afeta sua probabilidade de já ter realizado um aborto. Por isso, estimamos também as probabilidades preditas para mulheres de 40 anos usando um modelo logístico. Os resultados são apresentados na Tabela 7. Para as mulheres negras a probabilidade aos 40 anos é de 21,22% ao passo que para as mulheres brancas é de 15,35%, ou seja, diferença de 5,88 p.p. que significa uma probabilidade 38% maior para as mulheres negras.

Tabela 7
Probabilidades preditas para mulheres de 40 anos pelo modelo logístico.

Discussão

Há um diferencial racial consistente nas três edições da PNA: os percentuais de aborto entre as mulheres negras foram mais elevados do que entre as mulheres brancas. Esse diferencial em cada edição isoladamente, no entanto, é relativamente pequeno. Tomando as pesquisas isoladamente, apenas em 2016 é possível dizer, sem ambiguidade, que esse diferencial é significante. Porém, quando as edições da PNA são combinadas, a maior parte dos diferenciais torna-se estatisticamente significante, o que permite afirmar com mais segurança que o aborto é mais frequente entre as mulheres negras.

Trata-se de resultados esperados, posto que as amostras das edições das PNA não foram desenhadas para captar pequenas diferenças. São resultados importantes, pois indicam que é mais provável que as diferenças raciais não sejam apenas flutuações amostrais, ou seja, que os resultados tenderiam a ser estatisticamente significantes em caso de uma amostra maior.

Os grandes intervalos das estimativas de diferenças raciais em relação a mulheres que se classificaram nas categorias amarelas e indígenas do IBGE sugerem que pouco se pode dizer sobre esses grupos, isoladamente, com os dados da PNA, ou seja, nenhuma diferença teria significância estatística. No conjunto dos dados das edições das PNA de 2016 a 2021 com idades ajustadas e reponderados para refletir a estrutura do levantamento de 2021, as mulheres negras têm maiores chances de realizar um aborto que as brancas.

Conclusão

O conjunto de resultados aponta uma diferença racial na população, com o aborto sendo mais comum entre as mulheres negras (pretas e pardas) do que entre as mulheres brancas. Entre as mulheres negras de todas as idades a probabilidade de ter feito um aborto é de 11,03% ao passo que entre as mulheres brancas é de 7,55%, cálculo realizado com a combinação e reponderação das PNA. É difícil avaliar a magnitude desse diferencial: por um lado, são apenas de 3,5 pontos percentuais, mas, por outro, isso significa uma probabilidade 46% maior para as negras. Esses valores são estatisticamente significantes. Resultados semelhantes são obtidos nas regressões logísticas, que não usam reponderação, mas controlam por ano do levantamento e idade na data da entrevista. Na regressão para as mulheres de todas as idades a probabilidade média predita das mulheres negras é de 12,61% e a das mulheres brancas de 8,90%; as probabilidades preditas para mulheres de 40 anos são de 21,22% para as mulheres negras e 15,35% para as mulheres brancas, ou seja, diferença de 5,87 p.p. que significa uma probabilidade 38% maior para as mulheres negras. Não é possível dizer muito sobre as diferenças entre mulheres amarelas e indígenas, tratadas como grupos separados, devido aos tamanhos pequenos desses grupos nas amostras da PNA.

As desigualdades raciais são consistentes no tempo: têm a mesma direção em todas as edições da PNA, em todas as combinações possíveis de edições da PNA e se mantém nas estimativas de probabilidade com modelos logísticos. Isso sugere que a diferença existe, e não é apenas resultado de flutuação amostral aleatória, como seria possível considerar diante da ausência de significância estatística em algumas comparações ano a ano.

A ausência de significância deve ser esperada. Como os resultados se mostram estatisticamente significantes quando as edições da PNA são combinadas, essa ausência provavelmente decorre dos tamanhos de amostra insuficientes para captar, isoladamente, diferenças moderadas entre subgrupos populacionais. Evidentemente, só uma nova PNA com amostra extensa poderia dar uma resposta mais definitiva sobre este assunto.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Anis: Instituto de Bioética pelo apoio às pesquisas.

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  • Financiamento

    Anis: Instituto de Bioética.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2023
  • Aceito
    07 Set 2023
  • Publicado
    09 Set 2023
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