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Crise sanitária global: pesquisa, aprendizado e construção de cultura institucional para fortalecimento constante da APS

Considerando as premissas psicanalíticas, a possibilidade de elaboração de um luto ou trauma11 Freud S. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileiras das Obras Completas de Sigmund Freud. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago; 1917 [1915]/1974. requer a nomeação e ressignificação daquilo que foi perdido. Deriva da possibilidade de refletir, problematizar, des-romantizar e ponderar aquilo que se perdeu; o silêncio, em contrapartida, não ajuda. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à pandemia de COVID-19, que deixou efeitos - e o luto -, que demandam elaboração.

Tomamos, no presente número, a Atenção Primária à Saúde (APS) como analisador da relação do Sistema Único de Saúde (SUS) com a Pandemia COVID-19, devido a sua interface privilegiada com a população nos territórios e com os demais pontos da rede assistencial22 Paim JS. Da teoria do processo de trabalho em saúde ao modelo de atenção. In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. 1ª ed. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017..

Durante a pandemia de COVID-19, na APS, ocorreram modificações radicais de processo de trabalho, com interrupção de procedimentos de rotina, incorporação do uso contínuo de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e implementação de protocolos erráticos e que se alteravam com muita frequência. Também foi notória a sobrecarga de trabalho quando da disponibilização das vacinas contra o coronavírus.

Indubitavelmente, há aí muitos elementos que passam a constituir matéria-prima para investigações voltadas a compreender limitações e possibilidades de avanço para o cuidado ampliado na APS. Os artigos publicados neste número da Ciência & Saúde Coletiva tratam destes temas, abarcando perspectivas de gestores, trabalhadores e usuários.

Em especial, apresenta resultados oriundos de duas pesquisas: “A política de Atenção Primária à Saúde no contexto da pandemia nos municípios paulistas” e “Estratégias de abordagem dos aspectos subjetivos e sociais na Atenção Primária no contexto da pandemia”.

A primeira, realizada pelo Instituto de Saúde (SES-SP), em parceria com o COSEMS-SP e com a área técnica da Atenção Básica na Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, dedicou-se a produzir informações sobre o modelo de atenção e organização da APS no estado de São Paulo, com ênfase na discussão sobre a continuidade do cuidado durante a pandemia a partir de inquérito com gestores municipais e seis estudos de caso.

A segunda pesquisa foi desenvolvida mediante a parceria entre Abrasco, Unicamp, Instituto de Saúde de São Paulo e Fiocruz-RJ, e buscou analisar as perspectivas dos usuários e trabalhadores da APS a respeito das repercussões subjetivas e organizacionais produzidas pela sua descontinuidade durante o primeiro ano da pandemia. Investiu na metodologia de entrevistas em profundidade, com elaboração de narrativas. O trabalho de campo foi realizado em territórios com alta vulnerabilidade social dos municípios de Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro.

Complementam-se aos esforços analíticos dessas duas pesquisas, manuscritos de outras regiões do Brasil, com contribuições igualmente relevantes.

Fruto desta compilação, este número temático traz quatro artigos iniciais que versam sobre questões estruturais e abrangentes, que incluem o mapeamento da produção científica sobre a APS durante a pandemia, a discussão sobre repasses financeiros, a análise da organização dos serviços segundo as regiões brasileiras e a relação entre os diferentes modos de funcionamento da APS e o histórico de heterogeneidade na implementação do modelo da Estratégia Saúde da Família. Na sequência, estão dois manuscritos que se aprofundam sobre a realidade do estado e o município de São Paulo.

Com cinco artigos dedicados ao tema, parcela significativa deste número temático discorre sobre o funcionamento de arranjos, dispositivos e ações voltadas para a articulação com o território e cuidado comunitário, em consonância com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)33 World Health Organization (WHO). Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Community-based health care, including outreach and campaigns, in the context of the Covid-19 pandemic. Interim guidance [Internet]. Genebra: WHO; 2020 [cited 2020 jul 20]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-Comm_health_care-2020.1..

Há ainda dois artigos com reflexões sobre a descaracterização da APS e sobre a discricionariedade dos profissionais como um importante componente analítico.

Trata-se de um conjunto de artigos voltados para fomentar debates e perspectivas para o fortalecimento da Política Nacional da Atenção Básica, aspecto chave para o avanço do SUS.

Referências

  • 1
    Freud S. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileiras das Obras Completas de Sigmund Freud. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago; 1917 [1915]/1974.
  • 2
    Paim JS. Da teoria do processo de trabalho em saúde ao modelo de atenção. In: Ayres JRCM, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história. 1ª ed. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Rede Unida; 2017.
  • 3
    World Health Organization (WHO). Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Community-based health care, including outreach and campaigns, in the context of the Covid-19 pandemic. Interim guidance [Internet]. Genebra: WHO; 2020 [cited 2020 jul 20]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-Comm_health_care-2020.1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023
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