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Coletivos organizados, ativismo social e narrativas da pandemia em territórios vulneráveis na cidade do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

A pandemia de COVID-19 no Brasil atingiu níveis alarmantes. Na cidade do Rio de Janeiro, ela encontrou um cenário de desmonte da Atenção Primária à Saúde (APS) em meio à uma crise política, o que teve grande impacto nos territórios de maior vulnerabilidade. O objetivo desse estudo é analisar de que forma as favelas e equipes da APS organizaram-se para desenvolver ações comunitárias, ocupando espaços deixados pela falta de outras políticas públicas. Os resultados fazem parte da pesquisa qualitativa multicêntrica “Estratégias de abordagem dos aspectos subjetivos e sociais na Atenção Primária no contexto da pandemia”, onde foram analisados documentos orientadores públicos e 36 entrevistas em profundidade com trabalhadores e usuários da APS, organizadas em grades interpretativas. Como resultado, observou-se que houve iniciativas cogestoras dos trabalhadores e usuários da APS, a partir do surgimento de coletivos organizados e ativismo social, para o enfrentamento da pandemia, independente das normativas da Secretaria Municipal de Saúde e demais instâncias governamentais. A APS se apresentou como único equipamento público nos territórios de alta vulnerabilidade, onde a violência armada esteve presente mesmo durante a pandemia.

Palavras-chave:
COVID-19; Ativismo Social; Atenção Primária à Saúde; Vulnerabilidade Social; Pesquisa qualitativa

Abstract

The COVID-19 pandemic has reached alarming levels in Brazil. In Rio de Janeiro city, it arrived in a scenario in which Primary Health Care (PHC) was being dismantled in the midst of a political crisis, which had major impact on the most vulnerable territories. This study examined how favelas and PHC teams organised community-based action and occupy the vacuum left by the lack of public policies. The results form part of the multi-centre qualitative study “Strategies for approaching subjective and social aspects of Primary Care in the pandemic context”, using public guidance documents and 36 in-depth interviews of PHC workers and users, which were categorised into interpretive grids. Co-management initiatives by PHC workers and users were found to have arisen out of organised groups and social activism, to face the pandemic, independently of regulations from the Municipal Health Department and other government bodies. PHC figured as the only public facility in highly vulnerable territories, where armed violence was ongoing even during the pandemic.

Key words:
COVID-19; Political activism; Primary Health Care; Social vulnerability; Qualitative research

Introdução

A pandemia de COVID-19 encontrou no Brasil um terreno fértil para seu desenvolvimento. A postura adotada pelo governo federal, que se eximiu da sua responsabilidade sanitária, e se notabilizou por falsear a realidade, negando as evidências científicas e menosprezando as orientações da Organização Mundial de Saúde, somada às condições sociossanitárias em que vive grande parte da população, levaram o país a ocupar o epicentro mundial da pandemia11 Giovanella L, Medina MG, Aquino R, Bousquat A. Negacionismo, desdém e mortes: notas sobre a atuação criminosa do governo federal brasileiro no enfrentamento da Covid-19. Cad Saude Publica 2020; 44(126):895-971.. Estimulada pela necropolítica federal22 Piza S. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto. TransFormAcao 2022; 45(n. esp.):129-148. e pela imensa dificuldade da população em adotar as medidas de proteção e cumprir as orientações sanitárias implantadas pelos governos estaduais e municipais, a pandemia logo alcançou territórios onde vivem populações mais vulneráveis, provocando perdas irreparáveis.

Um dado emblemático da chegada da pandemia no Rio de Janeiro foi a primeira morte associada a COVID-19 no estado. Uma empregada doméstica, que contraiu a doença de sua empregadora recém-chegada de uma viagem da Itália. Moradora do município de Miguel Pereira, região serrana do estado, a doméstica dormia na casa onde trabalhava durante a semana, na região com o metro quadrado mais caro do Brasil, voltando para sua cidade de origem apenas nos fins de semana. Com o passar do tempo, percebemos que a pandemia que mata e desampara realçou ainda mais as desigualdades já existentes33 Peres AC. Elas resistem. Radis 2020; 213:20-21..

Dentre as políticas públicas com as quais essas populações podiam contar, se destaca o Sistema Único de Saúde (SUS). No enfrentamento da COVID-19, mais do que nunca ficou demonstrada a relevância de um SUS robusto, com uma Atenção Primária à Saúde (APS) forte e conectada de modo orgânico com a população e seu modo de vida. A APS, seu vínculo com a comunidade e seu conhecimento do território, destacaram-se como pontos estratégicos nas ações de vigilância, comunicação, prevenção de contaminação, identificação e apoio de grupos de pessoas vulneráveis44 Daumas RP, Silva GA, Tasca R, Leite IC, Brasil P, Graco DB, Grabois V, Campos GWS. O papel da atenção primária na rede de atenção à saúde no Brasil: limites e possibilidades no enfrentamento da COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(6):e00104120.

5 Engstrom E, Melo E, Giovanella L, Mendes A, Grabois V, Mendonça MHM. Recomendações para a organização da Atenção Primária à Saúde no SUS no enfrentamento da COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.

6 Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2020; 44(n. esp. 4):161-176.
-77 Rede de Pesquisa em APS. Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022..

Em contrapartida, a escassez da presença do poder do Estado nos territórios de maior vulnerabilidade fortaleceu o surgimento de coletivos organizados e ativismo social88 Cunha GT, Campos GWS. Método paidéia para co-gestão de coletivos organizados para o trabalho. Org Demo 1969; 11(1):31-46. para suprir as necessidades básicas da população frente à crise socioeconômica agravada com a pandemia da COVID-19, movimento que pôde ser observado em algumas favelas da cidade do Rio de Janeiro66 Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2020; 44(n. esp. 4):161-176.,99 Fleury S, Menezes P, Magalhães A. Deslocando enquadramentos: coletivos de favelas em ação na pandemia. RBS 2021; 9(23):256-279..

O objetivo do presente artigo é analisar como as comunidades locais e os trabalhadores da APS em territórios vulneráveis do município do Rio de Janeiro se organizaram de forma integrada para desenvolver ações comunitárias, ocupando espaços deixados pela falta de outras políticas públicas.

Metodologia

Esse artigo faz parte da pesquisa “Estratégias de abordagem dos aspectos subjetivos e sociais na atenção primária no contexto da pandemia” realizado em 3 municípios da região Sudeste. No Rio de Janeiro, os pesquisadores foram a campo entre julho e dezembro de 2021, em 4 territórios: Jacarezinho, Rocinha, Catumbi e Manguinhos. A escolha desses territórios seguiu dois critérios: vulnerabilidade social, em que a maioria da população residente fosse composta por afrodescendentes, renda familiar inferior a 3 salários mínimos, condições precárias de habitação, saneamento básico e que o acesso a demais serviços básicos fosse prioritariamente através dos serviços públicos. O segundo foi a recomendação e interesse da gestão municipal que avaliou essas localidades com condições para o desenvolvimento da pesquisa.

Quando a pesquisa iniciou a fase empírica, o cenário epidemiológico do município não era favorável para entrada nesses territórios. Deste modo, priorizou-se que todos os pesquisadores fossem vacinados contra a COVID-19, e todas as medidas de controle sanitário fossem adotadas.

Os sujeitos foram escolhidos por entender que os trabalhadores e usuários são os atores centrais para melhor compreensão dos objetivos da pesquisa, agregando-se ainda o fato de se apostar que haveria vivências e percepções distintas sobre o mesmo objeto. Assim, priorizou-se a paridade no convite a esses dois grupos.

Os critérios de inclusão na pesquisa para usuários foram: ter 18 anos ou mais, morar no território adscrito pela UBS, que apresentavam aspectos sociais e subjetivos relevantes, como uso constante e recorrente do serviço ou dificuldade de vinculação com ele, sofrimento psíquico com ou sem diagnóstico definido, dificuldade para realização do autocuidado e uso intensificado de medicação. Foram priorizados usuários que se enquadravam em pelo menos 3 das seguintes características: mulheres líderes de família, ativistas comunitários, moradores em situações de vulnerabilidade social relacionadas a trabalho, renda, precarização dos vínculos familiares e sociais; vítimas de violência; com dificuldade de acesso a serviços de saúde, educação, assistência social, entre outros; pertencentes a populações marginalizadas, como negros, pessoa com deficiência, LGBTQIAP+, compondo assim o perfil de participantes da pesquisa. Já o critério de exclusão foi não estar adscrito à UBS. O de inclusão para trabalhadores foi ser profissional da UBS e o de exclusão, trabalhar há de menos de 1 ano na unidade.

As primeiras entrevistas ocorreram através da indicação dos gerentes das unidades, constituindo-se como informantes chaves e valendo-se do recurso de bola de neve1010 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas 2014; 22(44):203-220.. Para ambos os grupos sujeitos que confirmaram o seu interesse através do termo de consentimento, foram realizadas de modo presencial e em local a critério dos entrevistados, como igrejas e praças, sendo na maior parte na própria UBS.

Como critérios para a finalização da coleta de dados, entrevistas em profundidade foi o compromisso com os objetivos da pesquisa, assim como os temas contidos em um guia/mapa que teve como finalidade apresentar-se como norteador para as entrevistas. Como segundo critério, o pesquisador avaliava a repetição dos assuntos, a comunicação não verbal e a partir da sensibilidade de cada um (entrevistador e entrevistado), quando o encontro tocava em pontos delicados que comprometiam a continuidade das entrevistas. Ao final de cada entrevista era solicitado ao entrevistado uma avaliação sobre o conteúdo da entrevista, estabelecendo o interesse de continuidade ou não da mesma em outro momento. A partir disso, havia um processo de validação das entrevistas entre o grupo de pesquisadores, para dar início à construção das narrativas.

Esses critérios se associam aos parâmetros apresentados por Turato1111 Turato ER. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa. Petrópolis: Editora Vozes; 2003.: “avaliação de que os elementos colhidos darão conta de satisfazer a discussão para atingir os objetivos apontados no projeto; o orientador do trabalho também funcionará como juiz dessa situação; e, ainda, seus pares - colegas de atividades de pesquisa - poderão apreciar a situação e dar o aval acadêmico”1111 Turato ER. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa. Petrópolis: Editora Vozes; 2003.(p.363).

Utilizou-se a estratégia de entrevista em profundidade para a construção de narrativas1212 Onocko-Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.. A partir de uma pergunta inicial, que tratava da percepção e análise da pandemia sob a perspectiva do sujeito entrevistado, esta técnica de entrevista busca valorizar a fala do entrevistado através do livre discurso, visando que este possa discorrer em profundidade sobre determinado tema.

Observa-se que as narrativas de um modo geral, tratavam da intensidade da vivência do primeiro ano da pandemia, desconsiderando a possibilidade de abordagem do momento atual segundo a pergunta inicial, tendo em vista que a pandemia ainda seguia em curso:

Foi bem assustador. Foi difícil. Gerou muito medo, muita angústia, medo de sair na rua, medo de vir trabalhar, de deixar os filhos, medo de tudo... De passar necessidade, de perder emprego, medo pela família, pelos pacientes, medo da gente adoecer e não saber como reagir, de perder alguém...

As entrevistas foram gravadas por pesquisadores que participaram de todas as fases da pesquisa o que possibilitou a produção de narrativas. Estas foram categorizadas em grades interpretativas criadas a partir de núcleos temáticos pré-definidos, tais como: produções sociais e comunitárias para o cuidado em saúde, ativismo e organização social do território; e outros que surgiram no campo empírico, como perspectivas pós-pandemia.

No total, produziu-se 36 entrevistas e narrativas, 19 foram realizadas com trabalhadores de 4 Clínicas da Família (CF) nome dado às Unidades de Saúde da Família no Rio de Janeiro, profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) e Consultório na Rua (CnaR). Estes apresentavam diferentes tempos de inserção no SUS.

Outros 17 usuários dos serviços pesquisados também foram ouvidos, com idades variando entre 28 e 77 anos. Quase todos eram moradores de favelas, localidades de extrema vulnerabilidade social, contexto que foi agravado pela pandemia. Alguns eram lideranças locais, que participavam da mobilização de ações comunitárias. Os trechos retirados das narrativas dos sujeitos da pesquisa serão identificados neste texto em itálico, como forma de diferenciação de outras citações diretas.

Como outras ferramentas de investigação, utilizou-se o diário de campo, análise do contexto da APS a partir da elaboração de uma linha do tempo, no período 2008-2021, em que se identificou 31 documentos como: notas técnicas, ofícios e recomendações produzidos pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

A partir da análise destes documentos produzidos no período de 03/2020 a 04/2021 observou-se o caráter mais informativo do que formativo. Segundo as entrevistas, os trabalhadores identificaram a importância das publicações, no entanto, ainda restavam lacunas quanto a necessidade de apoio institucional nesse período crítico.

Os documentos tratavam de orientações do processo de trabalho das unidades frente a pandemia em temas como saúde bucal, reabilitação, academia de saúde, tuberculose, tabagismo, assistência farmacêutica, saúde do idoso, da mulher e da criança. Foram produzidos de forma centralizada, com pouca participação das unidades o que resultou na baixa incorporação destas orientações na rotina, permanecendo as angústias dos trabalhadores frente às incertezas das necessárias adequações das práticas na APS. A análise da repercussão destes documentos proporcionou a ampliação de melhor compreensão do contexto técnico-político da APS daquele momento.

A pesquisa obteve aprovação no Comitê de Ética da instituição responsável pelo estudo sob o CAAE 40699120.2.0000.5404, bem como do respectivo órgão da prefeitura do Rio de Janeiro.

Caracterização da Atenção Primária à Saúde no Rio de Janeiro

A Rede de Atenção à Saúde local apresenta, historicamente, um modelo de atenção hospitalocêntrico, com a presença de grande número de hospitais federais, o que não se reverteu em índices satisfatórios de cobertura de saúde ou em atendimento de qualidade à população carioca.

Como forma de melhorar esse cenário, observa-se tardiamente, a partir do ano de 2009, o início da expansão da cobertura de Estratégia Saúde da Família (ESF) no município, baseado no modelo de gestão feito por Organização Social de Saúde. Outra estratégia utilizada pela SMS foi a aposta na implementação de Programas de Residências Médicas como meio de provimento e fixação de profissionais nessas unidades, e a instalação das CF no interior dos territórios vulneráveis da cidade, com padrão de ambiência qualificado1313 Soranz D, Pinto LF, Penna GO. Eixos e a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária em Saúde (RCAPS) na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1327-1338..

Devido a mudanças na gestão municipal em 2017, que se valeu da nova Política Nacional de Atenção Básica, observou-se o desmonte da APS no município, com a redução de equipes e trabalhadores de saúde, o aumento da precarização das condições de trabalho e outros retrocessos vistos durante o governo vigente99 Fleury S, Menezes P, Magalhães A. Deslocando enquadramentos: coletivos de favelas em ação na pandemia. RBS 2021; 9(23):256-279.,1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.476, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2017; 22 set.

15 Medrado JRS. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) no estado do Rio de Janeiro: implantação, avanços e perspectivas [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2022.
-1616 Saporito BE, Barros DC, Alonso CMC, Lago RF. Análise da organização do trabalho nos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica no Rio de Janeiro. Physis 2022; 32(2):e320211..

A partir de 2021, com nova alteração no cenário político da cidade, criou-se uma grande expectativa em trabalhadores e usuários na retomada do investimento na APS, além do enfrentamento a desafios importantes trazidos pela pandemia.

O Rio de Janeiro e seus territórios vulneráveis, o campo de pesquisa

O município do Rio de Janeiro é conhecido pelas riquezas naturais, mas também pelo grande desordenamento urbano, no que se refere às desiguais condições de moradia e acesso a serviços básicos. As 4 favelas que compõem o cenário desta pesquisa estão localizadas em diferentes regiões do município, conforme a Figura 1.

Figura 1
Caracterização das CF do campo do município do Rio de Janeiro, 2023.

Resultados e discussão

O aumento da vulnerabilidade social, a resposta dos trabalhadores da APS e dos coletivos organizados

O aumento do desemprego e da vulnerabilidade foram citados pela maior parte dos entrevistados, impactando a vida de muitas famílias nos 4 territórios. Somado às milhares de mortes da pandemia, muitas pessoas ingressaram na zona de extrema pobreza devido a impossibilidade de exercer suas atividades de sustento1717 Farias HS, Sousa GM, Rocha AS, Oliveira LD. O impacto da COVID-19 nas periferias: uma análise espacial a partir dos casos e óbitos no Rio de Janeiro. confins [periódico na Internet] 2021; 52 [acessado 2022 dez 10]. Disponível em: http://journals.openedition.org/confins/40727.
http://journals.openedition.org/confins/...
. A maior parte da população atendida nas CF são moradores de áreas de grande vulnerabilidade sanitária e social, e foram atingidos pelos efeitos diretos e indiretos da pandemia, que causou a morte de pretos e pobres em sua maioria1818 Abrasco. Dossiê Abrasco Pandemia de COVID-19. 2ª ed. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022.. A pesquisa identificou também que muitos usuários possuem vínculos precários ou informais de trabalho, e atuam como diaristas, fazem pequenos serviços, são pedreiros, vendedores ambulantes e autônomos, que não possuem uma rede de proteção social, como vemos no relato a seguir:

Meu filho ficou desempregado, minha nora ficou desempregada, tenho uma sobrinha que também perdeu o emprego, pois cuidava da minha irmã que faleceu. Então, todo mês eu os ajudo financeiramente.

Uma das usuárias entrevistadas, cuja filha participa de ação solidária de distribuição de sopas no centro do Rio, relata o aumento substancial no número de pessoas em situação de rua, passando fome. O mesmo foi pontuado na fala de um dos trabalhadores:

O número de pessoas em situação de rua aumentou muito. É uma coisa dolorosa, que a gente chama de migração da fome: as pessoas estão onde terá mais doação de roupas ou alimentos... chegava a ter mais de duzentas pessoas reunidas em busca da doação de alimento.

Da mesma forma foi mencionada a dificuldade de usuários respeitarem as orientações sanitárias acerca do isolamento, devido a impossibilidade de interrupção de atividades laborais, pessoas que queriam parar e não podiam por serem autônomas ou trabalhadores informais1818 Abrasco. Dossiê Abrasco Pandemia de COVID-19. 2ª ed. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022.:

Outros eram ameaçados de demissão, caso faltassem, mesmo diagnosticadas com COVID-19 e de posse do atestado médico.

Outra fala de usuário aponta que

a informalidade fez com que em junho de 2020 já estivesse tudo aberto e as pessoas não usando máscara, porque as pessoas vivem das coisas que produzem e trabalham aqui dentro, uma favela que se retroalimenta. Aqui tem lojas, mercados que você pode comprar fiado e pagar no fim do mês. Sem o auxílio emergencial pra que essas pessoas pudessem ficar dentro de casa, elas saem para trabalhar porque têm urgência, tem fome, tem contas pra pagar.

Além das dificuldades inerentes da própria doença, houve o acirramento da crise econômica, encarecendo os alimentos, aumentando de forma expressiva a fome, impactando negativamente no poder de compra e vulnerabilidade das famílias:

Quando vou ao mercado, não gosto de ir com os meus filhos, eles vão colocando vários produtos no carrinho e quando chega na hora de pagar, tenho que escolher porque o dinheiro é contado.

Outro usuário acredita que

a fome vai ser o principal legado da pandemia no Jacarezinho, pessoas que já eram muito pobres, o 4º pior IDH do Rio de Janeiro... você já tinha uma favela altamente vulnerável do ponto de vista da pobreza, da doença, da segurança pública, e agora temos uma favela mais empobrecida, com pessoas que perderam seus empregos por conta da pandemia, ou por não conseguirem sair para trabalhar por conta da violência.

Esse panorama induziu a uma necessidade de articulação das CF com as instituições assistenciais locais. O cenário de aumento das vulnerabilidades fez com que muitos usuários procurassem orientações sobre programas sociais já existentes, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Bolsa Família, e de outros criados na pandemia, como o Auxílio Emergencial. Idosos que não eram cobertos pela previdência social buscaram orientações acerca do BPC, outras situações demandaram a articulação com serviços da Assistência Social, devido a casos de falta de vínculos familiares e de rede de apoio.

A fala de uma das usuárias é bastante emblemática nesse sentido. Mãe de 7 filhos, mudou-se da Baixada Fluminense para a capital em busca de mais oportunidades, com a expectativa de que na favela não pagaria conta de água ou luz. Ela diz que a pandemia a fez passar por situações extremas que nunca havia experimentado:

Já ficamos alguns dias sem comer e por vezes tive que mandar meus filhos para a casa dos pais ou avós para que não passassem por privação alimentar.

A entrevistada relata que os profissionais da CF forneceram cestas básicas, cuidados de saúde, além do suporte para a inscrição nos benefícios sociais. Sobre o apoio que obteve, ela percebe a proatividade da CF em identificar as diferentes necessidades dos usuários, não se restringindo somente às questões de saúde. Uma trabalhadora relata como a fome impactou diretamente no seu processo de trabalho:

Essa dificuldade existia antes, mas era mais silenciosa, eu acho. Agora não, eles verbalizam mais a falta do dinheiro para comprar alimentos, medicamentos, ou para ir fazer algum exame fora da clínica.

A vulnerabilidade social também gerou impacto relevante na implementação e permanência das medidas sanitárias de proteção. O isolamento social e uso de máscaras, por exemplo, muitas vezes não eram medidas possíveis de serem adotadas:

Ano passado não tinha vacina e pra sobreviver no frio, eles [pessoas em situação de rua] ficam todos juntos, não tinha outro jeito.

O aumento da violência intrafamiliar foi observado em 3 unidades pesquisadas, especialmente a dirigida contra a mulher. Sabemos que esse tipo de violência é mais uma das vulnerabilidades que não surgiram na pandemia, mas exacerbadas com as medidas de isolamento social1919 Lima ALS, Périssé ARS, Leandro B, Batistella CE, Araújo F, Santos JLMS, Angelo J, Martins M, Gracie R, Oliveira RG. Covid-19 nas Favelas: cartografia das desigualdades. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021. p. 111-122.. Um dos entrevistados relata que, a partir de uma pesquisa realizada pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro que mapeou os dias e horários da maior incidência de violência2020 Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Dossiê mulher [Internet]. [acessado 2023 nov 30]. Disponível em: http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/Mulher.html.
http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/Mul...
, passou a compartilhar mensagens de alerta nas redes sociais próximo dos horários identificados no estudo:

Fui procurado por algumas moradoras que pediam ajuda para interromper o ciclo de violência a que estavam submetidas.

A violência armada foi outro tema recorrente para os entrevistados. O Jacarezinho, que se constitui como um dos territórios mais violentos da cidade, não se mostrou diferente durante a pandemia, já que em maio de 2021 ocorreu uma chacina com a morte de aproximadamente 28 pessoas2121 Haidar D, Gimenez E, Fernandes F, Peixoto G, Coelho H. Operação no Jacarezinho deixa 28 mortos, provoca intenso tiroteio e tem fuga de bandidos [Internet]. 2021 [acessado 2023 nov 30]. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/06/tiroteio-deixa-feridos-no-jacarezinho.ghtml.
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
. Importante destacar que a chacina ocorreu a despeito da restrição de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia salvo em casos excepcionais - votada em agosto de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal2222 Zanotti MEJ. A violência policial nas comunidades: Um estudo da chacina do Jacarezinho [tese] Vitória: Faculdade de Direito de Vitória; 2021..

Mesmo diante desse cenário de grave violência armada, alguns dos usuários disseram sentir-se bem em morar ali, apesar de reconhecerem os transtornos causados pela violência instaurada. De forma geral, os 4 territórios são espaços de conflito armado conflagrado, no entanto, mais idosos relataram gostar de morar e viver na comunidade:

Com relação à violência ficou tranquilo, só teve a uns meses atrás aquela mortandade com 28 mortos. Fora isso foi calmo, porque não teve polícia. Sem polícia, sem confronto. Nessa chacina os policiais entraram com tudo. Mas acho até que demorou para fazerem esse pente fino. Você entra na comunidade tá cheio de ferro de barricada. Se morre uma pessoa dentro de casa, tem que colocar no carrinho de mão e trazer aqui para a pista, porque não entra ambulância. Se bem que aqui ninguém perturba você. Você pode entrar e sair a hora que quiser. O negócio deles é vender as coisas deles para lá, e a gente fica pra cá.

O convívio com a violência também faz parte do cotidiano dos que trabalham nesses territórios, que a percebem de diferentes maneiras:

Alguns profissionais estão aqui há muito tempo, outros não aguentaram a pressão. Tem horas que no meio do atendimento precisam parar e se esconder embaixo da mesa para fugir dos tiros. Digo para eles que coisa ruim a gente não aceita, mas se adapta.

Outros profissionais indicam efeitos negativos dos episódios de violência para a sua saúde:

Eu moro em Botafogo e ter que lidar com esse contraste todo dia, de sair do Jacarezinho e ir para a zona sul é um trabalho emocional constante... ter que lidar com essa questão e com as consequências individuais da violência é muito duro.

Coletivos organizados e ativismo social

A presença ativa dos coletivos organizados durante a pandemia foi um relato marcante, em especial no Catumbi, Rocinha e Jacarezinho, como importante estratégia de ativismo social frente à ausência de ações contundentes e protetivas do poder público nesses locais. Vale destacar que tal mobilização se constituiu levando em consideração a diversidade, tanto em termos de sua localização quanto de sua trajetória política, organização comunitária e recursos existentes, o que demonstra a capacidade desses grupos de mobilizar apoios, fazer parcerias e constituir redes11 Giovanella L, Medina MG, Aquino R, Bousquat A. Negacionismo, desdém e mortes: notas sobre a atuação criminosa do governo federal brasileiro no enfrentamento da Covid-19. Cad Saude Publica 2020; 44(126):895-971.,33 Peres AC. Elas resistem. Radis 2020; 213:20-21.,99 Fleury S, Menezes P, Magalhães A. Deslocando enquadramentos: coletivos de favelas em ação na pandemia. RBS 2021; 9(23):256-279.,1919 Lima ALS, Périssé ARS, Leandro B, Batistella CE, Araújo F, Santos JLMS, Angelo J, Martins M, Gracie R, Oliveira RG. Covid-19 nas Favelas: cartografia das desigualdades. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021. p. 111-122.. De acordo com os entrevistados, os principais objetivos desses coletivos eram realizar ações de proteção e suporte aos mais vulneráveis, enfrentar os impactos da pandemia, organização da coleta e distribuição de cestas básicas e insumos, como máscaras e álcool:

Muitas pessoas chegando na rua pela primeira vez. Foi dado o auxílio emergencial, mas para pessoas que necessitavam de verdade, quase não tinha porque pra ter acesso ao auxílio precisava no mínimo de documento de identidade, e o órgão que emite a documentação estava fechado.

As CF se constituíram como fortes pontos de apoio comunitário no enfrentamento à pandemia nos territórios. Os profissionais apoiaram os coletivos no fornecimento de cestas básicas, cuidados de saúde, além do suporte para a inscrição nos benefícios sociais. Uma das iniciativas desses grupos organizados foi o cadastramento dos moradores mais vulneráveis nas favelas do Catumbi onde, a pedido dos Agentes Comunitários, foi feito o mapeamento de pessoas acamadas e das que possuíam graves problemas de saúde. Além da identificação desses pacientes, a ajuda incluía a entrega de medicamentos e cestas básicas, bem como de procedimentos que não necessitavam da presença do usuário da CF:

Fazíamos o monitoramento com o suporte e orientação da CF, via WhatsApp. Sabíamos que as equipes estavam reduzidas, e tínhamos que contribuir com o SUS, que na época enfrentava a escassez de EPI [equipamento de proteção individual]. Colaborar neste monitoramento foi uma forma de diminuir a circulação das equipes pelo território, reduzindo a possibilidade dos profissionais contraírem o vírus.

Como já mencionado, em 3 territórios, a participação da APS como apoio nas mobilizações foi citada como fundamental no desenvolvimento das ações propostas, em especial na identificação das famílias em situação de maior vulnerabilidade. Um dos trabalhadores da CF Anthidio narra sobre a mobilização do “Jaca contra o Corona” - projeto criado pelos moradores:

A gente aqui na clínica, que conhecemos bem o território, fomos divulgando, selecionamos as famílias mais vulneráveis. A gente fazia a entrega das cestas no espaço da Escola de Samba.

Outra característica da atuação desses coletivos foi a produção de conteúdo sobre a pandemia que comunicasse de forma mais assertiva com as favelas, seja por meio de faixas e cartazes afixados nas ruas ou de campanhas realizadas em redes sociais. O coletivo Tamo Junto da Rocinha recebeu Medalha de Mérito da Câmara Municipal, como reconhecimento pelo trabalho realizado para garantir o abastecimento, informação e educação na favela durante a pandemia. Uma das intervenções foi a distribuição de um kit com material educativo o “Tamo Junto Rocinha pra Brincar”, para as crianças no período em que as escolas estavam fechadas2323 Lopes O. Coletivo Tamo Junto Rocinha recebe maior honraria da Câmara do Rio [Internet]. 2022 [acessado 2023 nov 30]. Disponível em: https://falaroca.com/medalha-tamo-junto-rocinha/.
https://falaroca.com/medalha-tamo-junto-...
.

As entrevistas também apontaram outras iniciativas de apoio comunitário e de solidariedade presentes entre os moradores. Um dos relatos cita postagens feitas nas redes sociais:

Tenho 2 kg de macarrão e um litro de óleo para doar, quem estiver precisando pode vir buscar... o pouco que tinha era dividido para ajudar.

Lima et al.1919 Lima ALS, Périssé ARS, Leandro B, Batistella CE, Araújo F, Santos JLMS, Angelo J, Martins M, Gracie R, Oliveira RG. Covid-19 nas Favelas: cartografia das desigualdades. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021. p. 111-122. ressaltam a importância das ações coletivas de mobilização nas favelas e sua capacidade de produzir redes de solidariedade para o enfrentamento dos impactos da pandemia, contrapondo-se a escassa ação da sociedade e do Estado na provisão de políticas públicas territorializadas. Segundo os mesmos autores “no momento inicial da pandemia, moradores de favelas demonstraram grande capacidade de mobilização e criação de redes de solidariedade para minimizar os impactos sociais por ela gerados”, no entanto, é importante “não perder de vista a responsabilização do Estado no cuidado das vidas que estão sendo ceifadas direta ou indiretamente pelo vírus”1919 Lima ALS, Périssé ARS, Leandro B, Batistella CE, Araújo F, Santos JLMS, Angelo J, Martins M, Gracie R, Oliveira RG. Covid-19 nas Favelas: cartografia das desigualdades. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021. p. 111-122.(p.119-120).

A presença de bares e bailes funk foi identificada como uma das principais formas de entretenimento na comunidade, o que teve impacto direto na desobediência sanitária em especial os mais jovens:

As festas ficaram mais restritas um pouquinho, mas fazem. A gente não tem outro lugar pra se divertir e ainda vai ficar prisioneiro dentro de casa sem fazer uma festinha. Não dá pra chamar uma multidão, mas algumas pessoas, a família.

Em diversos relatos identificou-se que, com o passar do tempo, foi havendo afrouxamento das medidas sanitárias e das restrições. De acordo com um usuário:

Hoje, eu acho que o Jacarezinho tem vivido uma normalidade e naturalizado, como o resto do Brasil, as mortes. Aqui as mortes em decorrência da violência policial geram muito mais comoção que as geradas pelo COVID. Inclusive se você entrar na favela vai se sentir constrangida de estar usando máscara.

Dispositivos como o Conselho Distrital de Saúde e Colegiado Gestor Local foram elencados como importantes espaços de participação popular no Catumbi e no Jacarezinho. No Catumbi, as associações de moradores tiveram seu funcionamento prejudicado pela pandemia; no entanto, houve a articulação entre a CF e lideranças locais, seja para o recolhimento e distribuição de cestas básicas ou no apoio para transporte de usuários para equipamentos da rede socioassistencial.

No Jacarezinho, foi criado um observatório de dados chamado LabJaca2424 LabJaca. Favela gerando dados [Internet]. [acessado 2023 nov 30]. Disponível em: https://www.labjaca.com/sobre.
https://www.labjaca.com/sobre...
objetivando dar maior visibilidade aos dados relativos à pandemia no bairro, como número de casos e de mortes. Ficou nítido que o posicionamento ativo dos mais diversos atores sociais, em especial, os profissionais de saúde da APS, conselhos e lideranças comunitárias foram fundamentais no apoio às medidas de controle da pandemia, especialmente na restrição de contatos e adesão ao distanciamento social2525 Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Santos AM, Prado NMBL. A voz da comunidade no enfrentamento da Covid-19: proposições para redução das iniquidades em saúde. Saude Debate 2022; 45(130):763-777..

O LabJaca se constitui como um laboratório de pesquisa, formação e produção de dados e narrativas sobre as favelas e periferias, considerando que os dados oficiais não condiziam com a realidade do território. O objetivo principal era valorizar o conhecimento que provém das favelas para que sejam pautadas políticas públicas que visem fomentar esses territórios, gerando impacto social. Por meio da geração cidadã de dados realizada em parceria com os moradores e instituições, traça ações que representam as reais demandas e acompanham ainda o desenvolvimento local, propondo meios para a inversão do cenário atual.

Um dos entrevistados relata que em abril de 2020 a CF Anthidio Dias da Silveira, lançou um painel informativo on-line, demonstrando dentre outros dados, a quantidade de testes positivos realizados na unidade e de óbitos registrados pelos Agentes Comunitários, que coletavam a informação a partir das Certidões de Óbito de suas áreas. Esses dados eram diferentes dos que estavam disponíveis no painel oficial da SMS, que meses depois também deixou de ser público. Houve solicitação para descontinuidade deste painel e utilização apenas dos dados oficiais demonstrados pela secretaria. Nesta mesma ocasião os coletivos de algumas favelas, se apropriaram dos painéis que foram criados e deram continuidade a contagem registrada nas comunidades, incluindo o LabJaca2626 Comunidades Catalisadoras. Painel Unificador COVID-19 nas Favelas do Rio de Janeiro [Internet]. [acessado 2023 nov 30]. Disponível em: https://experience.arcgis.com/experience/8b055bf091b742bca021221e8ca73cd7/.
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Compreende-se que as iniciativas dos coletivos organizados nas favelas ampliam o conceito de controle social - o que aqui estamos denominando de ativismo social -, ao propor ações integradas ao serviço de APS, no que se refere neste contexto de emergência sanitária centralmente em um novo modo de colaborar com a vigilância, promoção e comunicação em saúde.

Identificou-se que apesar desses territórios trazerem grande vulnerabilidade social, com marcante ausência do poder público, ainda mais acentuada na pandemia, há evidente diferença marcada pela sua localização geográfica. Enquanto na Rocinha, localizada na zona sul, área de maior IDH do município, as potencialidades são mais evidentes, no Jacarezinho no subúrbio, o que predomina é o abandono:

Viver na Rocinha é difícil. É uma cidade dentro de outra cidade. Eu gosto daqui. De alguns pontos, outros não. Praticamente tem tudo, comércio, transporte, facilidade de ir e vir, comida... Os coletivos fazem a diferença, se uniram. Hoje a gente tem um grupo gigantesco de coletivos, são mais de cento e cinquenta que ajudam não só nossa comunidade, mas outras. E fazem muito mais do que qualquer governo.

O Jacarezinho não é alvo de reportagem, a não ser que exista uma chacina, uma operação policial. Falta muita coisa para comunidade, tem o campo de futebol numa fábrica abandonada... o único espaço livre que temos. Você tem políticas que são feitas emergencialmente, mas você não tem uma política constante que leve as pessoas a participarem ativamente da vida política e pública.

O papel da Atenção Primária à Saúde nesse contexto

Os equipamentos de saúde foram os únicos serviços públicos que se mantiveram em funcionamento durante toda a pandemia nos 4 campos da pesquisa, com a ressalva de que a UPA de Manguinhos, que assiste os moradores de Manguinhos e do Jacarezinho, funcionou em condições de precariedade em 2020, e chegou a ficar fechada por um período durante a pandemia.

A APS se manteve atuante atendendo os usuários em sua maioria com sintomas mais leves de síndrome gripal como também deu continuidade a assistência pré-natal; pessoas em tratamento de tuberculose, hanseníase e HIV; dispensando medicações para as doenças crônicas não transmissíveis num cenário inicial de escassez de equipamentos de proteção individual e tendo que remodelar seu processo de trabalho. Uma médica relata a mudança de perfil da unidade:

A CF passou a atender muitos casos urgentes, como uma pequena UPA de atendimento às pessoas que a equipe já conhecia, tinha vínculo.

A maior parte dos trabalhadores reinventaram seus processos de trabalho, diante das mais de 30 notas técnicas da SMS e da ausência de orientação do Ministério da Saúde:

Fizemos várias reuniões sobre fluxo, tivemos que mudar toda a parte do atendimento no COVID. Participava um de cada equipe. Discutia lá em cada equipe e depois voltava para o grupo, e nem tudo a gente conseguia adaptar pra nossa realidade.

Em diferentes países pode-se constatar que o cuidado na APS modifica o risco de agravamento do usuário reforçando a importância do seu papel e que este deve ser fortalecido para permitir o monitoramento adequado e a resolutividade de casos passíveis de acompanhamento domiciliar e em UBS. Idealmente, a APS deve incorporar ações de vigilância em saúde, com testagem e rastreamento de contatos, além de apoiar medidas de isolamento e orientar sobre as medidas de proteção44 Daumas RP, Silva GA, Tasca R, Leite IC, Brasil P, Graco DB, Grabois V, Campos GWS. O papel da atenção primária na rede de atenção à saúde no Brasil: limites e possibilidades no enfrentamento da COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(6):e00104120.

5 Engstrom E, Melo E, Giovanella L, Mendes A, Grabois V, Mendonça MHM. Recomendações para a organização da Atenção Primária à Saúde no SUS no enfrentamento da COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.

6 Giovanella L, Martufi V, Mendoza DCR, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2020; 44(n. esp. 4):161-176.
-77 Rede de Pesquisa em APS. Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022.,2727 Portela MC, Reis LGC, Lima SML, organizadores. COVID-19: desafios para a organizac¸a~o e repercusso~es nos sistemas e servic¸os de sau´de. Rio de Janeiro: Observato´rio Covid-19 Fiocruz, Editora Fiocruz; 2022..

Uma outra ferramenta de cuidado que se estabeleceu foi o telemonitoramento dos usuários atendidos nas CF, a fim de monitorar sinais de agravo e melhor orientar a população. Sendo assim, mesmo havendo redução da equipe de profissionais, por estarem adoecidos ou serem grupo de risco, uma nova estratégia no fluxo de trabalho surgiu e muitas pessoas se fortaleciam com essas ligações, pois este foi um período de agravo para as questões de saúde mental. Muitos usuários tinham necessidade de conversar e contar suas angústias, algo que foi possível por contato telefônico feito pelos profissionais de diversas categorias profissionais. No entanto, o telemonitoramento representou momentos de ansiedade e angústia para um dos trabalhadores:

Ao assumir essa responsabilidade, não imaginava que seria tão complexa. Iniciava os contatos no período da manhã, porém não tinha previsão de término, já que recebia mensagem durante todo dia, à noite e nos fins de semana. Isso acarretou alguns desgastes em minha saúde, pois eu ficava envolvido emocionalmente com histórias de muitas perdas e sofrimento.

Conclusões e demais considerações

Devido ao cenário devastador da pandemia no Brasil e da ausência de ações protetivas dos órgãos governamentais foram observadas iniciativas de coletivos organizados e de ativismo social que atuaram de modo integrado com as equipes de APS nos territórios pesquisados. As respostas das favelas, que desenvolveram ações de identificação e apoio aos mais vulneráveis, atuando na distribuição de cestas básicas, de material de proteção pessoal e higiene, significou um impacto positivo frente aos efeitos da pandemia.

Os resultados encontrados evidenciam que apesar da pandemia, da ausência do Estado e da violência nos territórios da pesquisa houve resposta do ativismo social nessas favelas. As equipes da APS juntaram-se em diversas dessas ações de enfretamento ao aumento do desemprego, da fome e do adoecimento, evidenciando um cenário de agravamento das necessidades de saúde e da vulnerabilidade social.

A APS foi estratégica por manter-se aberta durante toda a pandemia nos territórios, e as CF apresentaram-se como o principal equipamento público de apoio à população. Além da atenção aos agravos em saúde, o recrudescimento da pobreza e o aumento da vulnerabilidade dos territórios tornou-se uma necessidade de saúde a ser enfrentada pela APS. Neste sentido, a articulação das CF com as iniciativas de mobilização social dos coletivos mostrou-se uma parceria necessária e potente, dado as diferentes formas de trocas que ocorreram, numa via de mão dupla - ora os profissionais das CF apoiavam as ações dos coletivos, em outros momentos buscavam ajuda na comunidade para dar suporte em alguma demanda da equipe de saúde. A aproximação e encaminhamento de usuários aos equipamentos socioassistenciais também se tornou uma atividade fundamental frente às novas demandas.

Outro fator importante observado foram os episódios de violência armada no interior de alguns territórios, apesar da proibição de incursões policiais determinadas pelo STF.

Concluímos que o contexto vivenciado pelos territórios vulneráveis, objeto de análise deste artigo, produziu enfrentamentos complexos que apontam para novas práticas a serem valorizadas. Reafirma-se que a APS se fortalece a partir da organização de base territorial na qual está inserida, com toda a sua diversidade e possibilidade de reconhecimento de coletivos organizados e do ativismo social.

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  • Financiamento

    Fundação Open Society.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2023
  • Aceito
    02 Ago 2023
  • Publicado
    04 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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