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Processo de descaracterização da Atenção Primária à Saúde durante a Pandemia no SUS, Campinas-SP, Brasil

Resumo

Este artigo analisa as ofertas de cuidado da APS na cidade de Campinas-SP, durante a pandemia de COVID-19, tendo as mudanças no processo de trabalho como um guia condutor. Tratou-se de uma pesquisa descritiva de caráter qualitativo, incluindo observação participante e entrevistas em profundidade com trabalhadores e usuários de quatro Unidades Básicas de Saúde (de junho/2021 a janeiro/2022). As análises apontam uma diferença significativa entre o primeiro e o segundo ano da pandemia. No primeiro momento, houve desorganização das estratégias de cuidado e restrição do atendimento aos casos de COVID-19. Já no segundo ano, foram retomadas atividades como visitas domiciliares e atendimentos de rotina, que, somadas ao agravamento do contexto sociossanitário e às novas demandas, como a vacinação, provocaram sobrecarga de trabalho e acirramento das relações entre profissionais e usuários. Além disso, constatou-se a fragilização dos espaços coletivos e de cogestão, tanto no nível da gestão municipal, quanto em reuniões de equipe e espaços de participação social. A retomada de tais espaços e o cuidado aos trabalhadores desgastados por esse período constituem-se desafios para a Atenção Primária em Saúde no contexto pós-pandemia.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; COVID-19; Gestão em saúde; Participação comunitária

Abstract

This article examines supply of Primary Health Care in the city of Campinas (São Paulo state) during the COVID-19 pandemic, taking changes in the work process as its guide. This descriptive, qualitative study included participant observation and in-depth interviews of workers and users at four PHC facilities, from June 2021 to January 2022. The analyses found significant differences between the first and second years of the pandemic. At first, care strategies were disorganised and care for COVID-19 cases, limited. In the second year, home visits and routine care were resumed. This, added to the worsening social and public health context and new demands, such as vaccination, caused overwork and strained relations between health personnel and users. Also, collective and co-management arrangements were found to weaken, both at the municipal management level and at staff meetings and for social participation. In the post-pandemic context, Primary Health Care is challenged to restore these arrangements and care for health workers exhausted by the pandemic.

Key words:
Primary Health Care; COVID-19; Health management; Community participation

Introdução

A pandemia de COVID-19 evidenciou a importância de sistemas de saúde universais para a garantia do direito à saúde e para uma resposta eficaz a um fenômeno tão complexo. No cenário nacional, seu enfrentamento contou com fundamental participação das unidades da Atenção Primária à Saúde (APS), devido à sua presença nos territórios e ao seu vínculo com os moradores locais. Foi nessas unidades que a maioria da população com sintomas respiratórios procurou por assistência11 Prefeitura Municipal de Campinas. Secretaria Municipal de Saúde. Painel Interativo. Síndromes Respiratórias: Monitoramento de Dados em Campinas [Internet]. Campinas: SMS; 2023 [acessado 2023 jul 18]. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZDUzYmVkOTctNjA4ZC00YjNjLTgwZjYtNjJhYWFmMDc2ZDk3IiwidCI6IjYzZDI3MTU1LTY2MTYtNGI1NC1iYTc2LWVkZDZlNzc0MWQxNyJ9..

O fenômeno da pandemia foi vivenciado pelos brasileiros em meio a um período de crise política, marcado pelas contrarreformas e desmonte das políticas públicas22 Silva MA, Vendramini CR. As contrarreformas e a reprodução social na pandemia da COVID-19 [Internet]. Rev Katalysis 2023; 26(1):77-88.. Desde 2016, observou-se no Sistema Único de Saúde (SUS) um desinvestimento, agravado pela Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou os gastos públicos com políticas sociais por 20 anos e a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 que representou um enfraquecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do controle social. Soma-se a isso um contexto de alta vulnerabilidade socioeconômica dos territórios onde, em geral, localizam-se os dispositivos da APS33 Albuquerque MV, Ribeiro LHL. Desigualdade, situação geográfica e sentidos da ação na pandemia da COVID-19 no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00208720.. Neste cenário, a emergência sanitária trazida pela COVID-19 provocou mudanças repentinas no processo do trabalho em saúde, impactando a oferta de cuidado aos usuários do SUS e a percepção dos trabalhadores da APS a respeito da práxis em saúde.

A APS desempenha um papel fundamental na garantia do direito à saúde, sendo uma instância essencial na organização de sistemas de saúde universais como o SUS. Como já amplamente difundido, uma de suas principais funções é a de ordenadora do cuidado, sendo também o ponto de contato inicial dos sujeitos com a rede assistencial44 Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, MS; 2002.. Entretanto, o papel ocupado pela APS durante a pandemia de COVID-19 foi envolto em contradições, ao menos no caso brasileiro, com diretrizes pouco claras a respeito de sua organização e de suas atribuições55 Lui L, Albert CE, Santos RM, Vieira LC. Disparidades e heterogeneidades das medidas adotadas pelos municípios brasileiros no enfrentamento à pandemia de COVID-19. Trab Educ Saude 2021; 19:e-00319151.. Justamente por ter ocupado um papel de menor destaque na mídia e também nas estratégias formuladas nacionalmente, a sua importância precisa ser melhor evidenciada.

No campo da Saúde Coletiva seguimos a aposta de que a coconstrução de autonomia é uma das finalidades do trabalho em saúde66 Onocko-Campos RT, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organisadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688. e que um bom modelo de gestão deve unir autonomia profissional e responsabilidade sanitária. A consolidação desse entendimento passa por uma visão que pensa a autonomia como “um processo de coconstituição de maior capacidade dos sujeitos de compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto conforme objetivos democraticamente estabelecidos”66 Onocko-Campos RT, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organisadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688.(p.670), sendo sempre algo relativo e flexível.

Essa visão que pensa a autonomia como central nas práticas em saúde77 Greenhalgh T. Primary health care: theory and practice. 1ª ed. Oxford: Blackwell Publishing; 2007., seja na gestão ou na clínica, contrasta em muitos pontos com uma visão tradicional da medicina e da saúde pública que, de muitas maneiras, produzem a objetificação de usuários e comunidades. Na ausência de diretrizes claras do governo federal88 Ventura DFL, Reis R. A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da COVID-19. Boletim Direitos na pandemia: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à COVID-19 no Brasil 2021; 10:6-31., os estados e municípios ampliaram suas autonomias o que fez surgir diversos arranjos e estratégias locais de organização, as quais variaram em grau de participação de usuários e trabalhadores e integração com outras atribuições deste nível de atenção.

Diante disso, este artigo analisa as ofertas de cuidado da APS na cidade de Campinas-SP durante a pandemia de COVID-19, tendo as mudanças no processo de trabalho como um guia condutor. Para tanto, faz-se necessário refletir em que medida o contexto da pandemia incentivou práticas de gestão verticalizadas e qual foi o impacto para a autonomia dos trabalhadores e dos usuários.

O município de Campinas

A organização da APS em Campinas confunde-se com a história da construção da rede pública de atenção à saúde do município, sendo o carro-chefe de sua constituição, mesmo antes do SUS99 Campos AR. Antecedentes da implementação do SUS - Sistema Único de Saúde - em Campinas-SP [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.. Durante a década de 1970, foram implantados “postinhos de saúde” em bairros periféricos da cidade, voltados para a atuação no campo da promoção, prevenção e assistência, fazendo com que o município fosse um dos pioneiros na implantação de um modelo de medicina comunitária, com participação dos seus trabalhadores e da comunidade local99 Campos AR. Antecedentes da implementação do SUS - Sistema Único de Saúde - em Campinas-SP [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.. Já na década de 1980, o modelo de atenção aproxima-se das Ações Programáticas em Saúde, com predomínio da clínica tradicional e ofertas de ações isoladas e verticais1010 Rosa ACD. A organização da atenção básica de saúde de Campinas/SP: perspectivas, desafios e dificuldades na visão do trabalhador [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2014.. Nos anos 1990, criou-se o modelo “Em Defesa da Vida”, incentivando uma atenção voltada à saúde coletiva e ampliando o leque de ações ofertadas, assim como o número de profissionais e de unidades instaladas.

A partir da década de 2000 a gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) fez a opção pelo modelo de atenção Paideia, uma adaptação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) ao contexto sanitário de Campinas1111 Prefeitura Municipal de Campinas. Secretaria Municipal de Saúde. Programa Paideia: As Diretrizes da Secretaria Municipal de Saúde - Gestão 2001-2004 [Internet]. Campinas: SMS; 2001 [acessado 2023 mar 5]. Disponível em: https://saude.campinas.sp.gov.br/rel_gestao/2004/diretrizes.htm.. Mantendo o princípio da adscrição de clientela, o Paideia propôs equipes ampliadas com ginecologistas, pediatras e clínicos, além de equipe de saúde mental com atuação a partir do apoio matricial. A reorientação do modelo de atenção procurava investir na autonomia dos sujeitos e valorizar a democracia institucional, estabelecendo colegiados de gestão em todos os níveis da secretaria, incentivando a prática da clínica ampliada e compartilhada.

Apesar do pioneirismo da implementação do SUS, em Campinas a rede municipal vem sofrendo com o constante desmonte, desinvestimento e com o momento de crise política e ideológica, agravada com o contexto da pandemia. Tendo este histórico em vista, este trabalho também aborda os espaços colegiados e de cogestão no contexto investigado de pandemia.

Metodologia

Os dados apresentados neste artigo são um recorte de uma pesquisa multicêntrica intitulada “Estratégias de abordagem dos aspectos subjetivos e sociais na atenção primária no contexto da pandemia”, desenvolvida pelo Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pela Fundação Oswaldo Cruz e pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva, com financiamento da Open Society Foundations, nos municípios de Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Unicamp (CAAE: 40699120.2.0000.5404). Neste estudo, apresentamos apenas os dados da cidade de Campinas.

Tratou-se de uma pesquisa descritiva e exploratória de caráter qualitativo, realizada em quatro Unidade Básica de Saúde (UBS), entre junho/2021 e janeiro/2022. O referencial teórico utilizado agregou a Pesquisa-apoio1212 Furlan PG, Campos GWS. Pesquisa-apoio: pesquisa participante e o método Paideia de apoio institucional. Interface (Botucatu) 2014; 18:885-894., o Apoio Institucional1313 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação Paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. e a hermenêutica crítica1414 Ricoeur P. Interpretação e Ideologias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990..

O campo de pesquisa escolhido contempla territórios de importante vulnerabilidade social. Cada UBS é referência para uma população que varia entre 10.000 e 20.000 habitantes. Foi realizado levantamento sobre os dados e o contexto de cada território, a partir da análise de normativas e documentos emitidos pela SMS, além de entrevistas com os gerentes de cada unidade, visando a conhecer a história do serviço, dos territórios e o funcionamento das unidades durante a pandemia.

Atualmente, a rede de APS de Campinas conta com 66 UBS1515 Centros de Saúde: Secretaria da Saúde. Portal da Prefeitura Municipal de Campinas [Internet]. [acessado 2022 dez 13]. Disponível em: https://portal.campinas.sp.gov.br/secretaria/saude/pagina/centros-de-saude.
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onde atuam 227 Equipes de Saúde da Família, cobrindo cerca de 65% da população, além de 120 Equipes de Saúde Bucal e uma equipe de Consultório na Rua1616 Tabnet. DATASUS: Departamento de Informática do SUS [Internet]. [acessado 2022 dez 13]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?cnes/cnv/equipebr.def.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht...
. Ademais, em plena pandemia, ampliou-se a organização das equipes do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF).

Para o levantamento de dados, cada UBS recebeu um pesquisador de campo que acompanhou o trabalho da equipe uma vez por semana, realizando observação participante registrada em diário de campo. Passada essa primeira etapa de aproximação com os serviços, os pesquisadores realizaram entrevistas em profundidade com profissionais e usuários. Ao todo foram realizadas 31 entrevistas em profundidade, sendo 17 com profissionais e 14 com usuários, além de 4 entrevistas com os gerentes das UBS.

Dentre os profissionais, foram entrevistados 13 mulheres e 4 homens. As categorias profissionais abrangeram: seis médicos, quatro técnicos ou auxiliares de enfermagem, três enfermeiros, um agente comunitário de saúde (ACS), um psicólogo, um assistente social e um técnico administrativo. O tempo de serviço no SUS variou de um ano até mais de duas décadas; a idade variou de 24 a 68 anos. Dentre os usuários, foram entrevistados 10 mulheres e 4 homens. O nível de escolaridade abrangeu desde pessoas analfabetas a pessoas com ensino superior completo, apresentando uma diversidade de profissões como diaristas, assistente social, aposentados, dentre outras. Houve, ainda, variedade quanto à raça/cor, estado civil e conformação familiar, com destaque para o fato de que foram entrevistados alguns líderes comunitários e religiosos do território. Neste artigo será utilizado código alfanumérico para identificação dos relatos dos participantes, sendo “P0101” a “P0404” para profissionais, e “U0101” a “U0404” para usuários.

A maior parte das entrevistas aconteceu em dois encontros, em média com 60 minutos cada, que foram transcritas e transformadas em narrativas. No segundo encontro, foram apresentadas aos entrevistados, buscando a interpretação compartilhada entre pesquisador e sujeitos da pesquisa1717 Onocko-Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.. A construção das narrativas esteve fundamentada no referencial hermenêutico voltado às pesquisas sociais no campo da saúde1717 Onocko-Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.,1818 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014..

Na etapa analítica as narrativas foram colocadas em grades interpretativas para identificação dos núcleos argumentais, ou seja, dos principais argumentos encontrados na fala dos entrevistados. Este material passou por processo de espelhamento entre os usuários e os profissionais. Para análise e interpretação dos dados foi utilizada a triangulação de métodos entre as grades interpretativas, os diários de campo, as entrevistas com gerentes dos serviços e o levantamento de dados sobre as normativas emitidas pela SMS durante a pandemia.

Resultados e discussão

Os relatos apontam para uma radical mudança no processo de trabalho nas UBS. A principal delas refere-se à suspensão de grande parte do cuidado até então ofertado aos usuários portadores de agravos crônicos. Esse processo foi justificado pela necessidade de atender às demandas da pandemia por COVID-19, gerando uma descaracterização da APS. Aliado a isso, a pandemia trouxe novas tarefas e funções que precisaram ser incorporadas no cotidiano de trabalho. Em meio a esta nova realidade, os espaços de cogestão e de encontros antes existentes foram sendo substituídos por condutas verticalizadas e falta de comunicação, minando uma práxis que vinha sendo construída no município desde a implantação do SUS.

A pandemia como impulso à tendência de descaracterização da APS

O impacto do primeiro ano da pandemia

Nomeamos como descaracterização da APS o distanciamento das funções e atributos na oferta de cuidado em saúde prestado pelas UBS, na medida em que se construiu uma clínica pautada no pronto atendimento com demandas focadas, imediatistas e pontuais. No relato dos profissionais, essa descaracterização traduziu-se pelas mudanças no processo de trabalho com a justificativa de atender à demanda de COVID-19, particularmente no atendimento de síndrome gripal e, depois, na realização de vacinação.

Essa descaracterização foi observada também em outros contextos em nível nacional55 Lui L, Albert CE, Santos RM, Vieira LC. Disparidades e heterogeneidades das medidas adotadas pelos municípios brasileiros no enfrentamento à pandemia de COVID-19. Trab Educ Saude 2021; 19:e-00319151., como destacado pelo estudo de Santana et al. 1919 Santana MM, Medeiros KR, Monken M. Processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família na pandemia no Recife-PE: singularidades socioespaciais. Trab Educ Saude 2022; 20:e00154167. sobre as recomendações da SMS de Recife. Esses autores apontam mudanças no processo de trabalho que passa a ter a doença como foco, privilegiando as abordagens individuais em detrimento das coletivas, o que atuou como fator limitante se considerarmos a magnitude das repercussões produzidas pela pandemia, como o isolamento e as transformações sociais.

Para os profissionais, a maior queixa deste período está relacionada à reorganização do fluxo e do processo de trabalho nas unidades. No início da pandemia, a determinação da SMS e do Ministério da Saúde (MS) foi de cancelamento dos atendimentos de rotina, grupos e visitas domiciliares realizadas pela UBS, seguindo a orientação de manter o distanciamento social e focando a atenção aos casos de urgência e COVID-192020 Prefeitura de Campinas. Secretaria de Saúde. Departamento de Vigilância Sanitária. Comitê Municipal de Enfrentamento da Pandemia de infecção humana pelo novo Coronavírus (COVID-19). Monitoramento das medidas de prevenção da COVID-19 nas Unidades Básicas de Saúde de Campinas [Internet]. 2020 [acessado 2023 mar 14]. Disponível em: https://COVID-19.campinas.sp.gov.br/sites/COVID-19.campinas.sp.gov.br/files/recomendacoes-tecnicas/Checklist%20Instrumento%20de%20gest%C3%A3o%20para%20o%20monitoramento%20das%20medidas%20de%20preven%C3%A7%C3%A3o%20da%20COVID-19%20nas%20UBS%20Campinas%2028-08-2020.pdf.
https://COVID-19.campinas.sp.gov.br/site...
. Nas UBS analisadas foi criado um fluxo específico para sintomáticos respiratórios com triagem na área externa da unidade, de modo que só era permitido adentrar no serviço com o aval desta triagem: “Trabalhar aqui no CS [centro de saúde] está sendo muito difícil, porque os equipamentos viraram verdadeiros pronto atendimentos” (P0304).

Inicialmente, os usuários parecem ter concordado em evitar procurar a UBS, principalmente por medo da contaminação e por reconhecerem a sobrecarga de trabalho nas unidades: “De modo geral, a resposta mais comum dos profissionais para os usuários é que não tem atendimento. Por um tempo a população ouvia as negativas e isso não gerava grandes questões” (P0402). Porém, após alguns meses, os problemas e as necessidades de saúde se agravaram.

Os usuários criticaram a diminuição do acesso e as constantes negativas de atendimento, relatando terem sido orientados, em diversos momentos, a procurar assistência no Pronto Atendimento (PA). De modo geral, diminuiu-se o contato da população com o serviço, o que pode ter fragilizado o vínculo e reconhecimento da UBS como principal espaço de cuidado: “Hoje em dia está mais difícil, vou [na UBS] só quando é necessário, quando estou tossindo muito, ou para pegar remédio porque tenho pressão alta” (U0401).

Por um lado, parcela significativa dos profissionais apontou que as determinações sobre o modo de funcionamento das unidades durante a pandemia passaram a vir de forma verticalizada a partir da SMS, restando pouca margem de autonomia para os profissionais. No entanto, outros afirmaram que sentiram um vazio quanto às estratégias para organização do trabalho, o que produziu angústia nas equipes. Outra determinação da SMS que gerou mal-estar e sobrecarga foi o afastamento dos profissionais com comorbidades, buscando diminuir os riscos para estes trabalhadores, sem que houvesse a reposição destes profissionais nos serviços:

Ao mesmo tempo, a equipe que ficou na frente ficou muito sobrecarregada, porque muita gente da equipe foi afastada por fazer parte dos grupos de risco. Com isso a gente se sentiu meio abandonado tendo que dar conta de muita coisa sozinho, tendo que trabalhar dobrado, assumindo a linha de frente sem ninguém. [...] Para mim fica na cabeça, pode parecer bobagem, mas que a gente foi meio que castigado por ter saúde. [...] É como se dissessem para gente “você tem saúde vai lá e se vira de qualquer jeito” (P0103).

Além disso, foi possível observar, através do relato dos entrevistados e da observação participante dos pesquisadores, que cada UBS manteve uma organização diferente a partir das orientações da SMS. Algumas cancelaram as visitas e consultas de rotina, mantendo apenas os atendimentos às urgências, pré-natal e puericultura. Enquanto outras, mantiveram também visitas domiciliares com ACS e realizaram um levantamento dos casos mais vulneráveis, que eram elencados para as visitas ou outras modalidades de atendimento.

Essas mudanças nos fluxos da unidade e na execução do trabalho culminaram em certa descaracterização da função de algumas categorias profissionais, conforme relatado por alguns ACS e por profissionais do NASF. Vale destacar que justamente essas categorias foram bastante afetadas pela PNAB de 20172121 Giovanella L, Martufi V, Ruiz DC, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2021; 45(130):748-762. e pelo Programa Previne Brasil1919 Santana MM, Medeiros KR, Monken M. Processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família na pandemia no Recife-PE: singularidades socioespaciais. Trab Educ Saude 2022; 20:e00154167.:

O meu trabalho enquanto Agente Comunitária de Saúde antes da pandemia era pautado nas ações no território, que em um primeiro momento foram canceladas, e eu fiquei sem saber como funcionaria o meu trabalho a partir de então (P0402).

Enquanto isso, para os médicos e equipe de enfermagem as funções estavam mais direcionadas, inclusive com sobrecarga de trabalho frente à alta demanda de atendimentos. Uma parte da equipe, mais habituada às ações coletivas e processuais, viu a necessidade de ressignificar sua atuação. Estas situações contribuíram para trazer desânimo e sofrimento aos profissionais em meio a um contexto já prejudicado pela dificuldade de comunicação e construções coletivas.

Apontamos que neste período, o modelo de clínica exercida na APS sofreu prejuízo devido à centralidade dada ao “combate” ao vírus. Encontramos nos relatos de trabalhadores e usuários uma tensão entre sujeitos e contextos, provocando incômodo, insegurança e difusão das responsabilidades de gestores, profissionais e usuários, gerando uma culpabilização dos indivíduos ou, em muitos casos, a sensação de impotência para organizar o cuidado de forma mais efetiva:

Os funcionários estão sobrecarregados porque eles estão na linha de frente há dois anos, isso afetou a saúde mental deles todos. Se nós usuários já estamos passando por essa dificuldade, imagina eles que estão na linha de frente (U0402).

Esse novo funcionamento da UBS dificultou a efetivação da clínica ampliada e compartilhada2222 Campos GWS. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 51-67., além de gerar desconfiança entre usuários, equipes e gestão. Assim, na necessidade de dar respostas rápidas à crise e vazão às demandas voltadas para a COVID-19, as práticas longitudinais se transformaram em ações pontuais, com pouca possibilidade de construções coletivas.

Soma-se a isso as dificuldades enfrentadas historicamente para contrapor o modelo biomédico nas práticas de saúde, algo que remete a um modelo de clínica degradada, que tem a sua potência diminuída em virtude de contextos socioeconômicos e institucionais específicos2121 Giovanella L, Martufi V, Ruiz DC, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2021; 45(130):748-762.. Giovanela et al. 2121 Giovanella L, Martufi V, Ruiz DC, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2021; 45(130):748-762. apontam que as sanções econômicas e as reformas no arcabouço normativo enfrentado pela APS nos últimos anos contribuíram para a descaracterização do seu modelo, o que se agravou ainda mais com a pandemia.

Essa realidade contradiz alguns estudos2121 Giovanella L, Martufi V, Ruiz DC, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2021; 45(130):748-762. que orientaram a respeito da necessidade de respostas emergenciais à COVID-19, preservando, ao mesmo tempo, alguns dos atributos da APS: “o acesso, a longitudinalidade, coordenação do cuidado, abordagem familiar e abordagem comunitária”2121 Giovanella L, Martufi V, Ruiz DC, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, Medina MG. A contribuição da Atenção Primária à Saúde na rede SUS de enfrentamento à COVID-19. Saude Debate 2021; 45(130):748-762.(p.751). Tal orientação pode ser reafirmada a partir da avaliação positiva do cuidado prestado aos casos de COVID-19, demonstrando ter havido certa manutenção da longitudinalidade do cuidado. Neste sentido, os profissionais identificam que “cumpriram seu papel” e os usuários entrevistados que foram diagnosticados com o vírus SARS-CoV-2 elogiaram o acompanhamento feito pelas unidades da APS, enfatizando o monitoramento realizado à distância:

Aqui no Centro de Saúde a equipe do posto foi muito próxima quando peguei COVID-19, me mandavam mensagem todo o dia para ver como eu estava perguntando se eu tinha febre, se tinha perdido olfato ou paladar. Me perguntavam do isolamento, como eu estava fazendo e como eu me virava em casa. Nesses 14 dias que eu fiquei em casa foi assim e a mesma coisa com minha irmã e minha sobrinha (U0202).

O segundo ano da pandemia: retomada de atividades e novas demandas advindas

O segundo ano (2021) foi marcado pelo início da vacinação no país, a retomada de algumas atividades das UBS, ampliação da compreensão sobre a COVID-19 e das orientações da SMS. Apesar da apreensão e da manutenção do distanciamento social, foi possível redefinir o trabalho a partir da retomada de algumas ofertas.

De acordo com os diários de campo e entrevistas com os coordenadores, no geral, no início de 2021 as agendas para visitas domiciliares e consultas médicas foram reabertas, assim como as reuniões de equipe voltaram a acontecer. Alguns grupos foram retomados no final do primeiro semestre do mesmo ano.

Neste período surgiram novas demandas, a exemplo do aumento excessivo de casos atendidos, o que foi destacado por ambos os grupos de entrevistados. Isso está relacionado aos casos de COVID-19, complicações advindas da síndrome pós-COVID-19, aumento de casos de saúde mental, e também ao crescimento da população SUS dependente, dada a precarização da situação socioeconômica das populações mais vulneráveis.

Outra nova tarefa, que surgiu no primeiro ano de pandemia e continuou neste período, foi o teleatendimento, modalidade de atenção que representou uma alternativa à necessidade de isolamento social. Para a maioria dos usuários e profissionais, esta prática foi positiva, pois possibilitou manter a proximidade com a população, garantir avaliação e orientações, além de agilidade no agendamento de consultas. Neste contexto, identificamos que o teleatendimento cumpriu a função de acompanhamento longitudinal dos usuários, preservando o vínculo e evitando a redução da clínica2222 Campos GWS. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 51-67.. Porém, os profissionais destacaram a falta de investimentos em tecnologia como um obstáculo à qualificação desta prática, de modo que, muitas vezes, precisaram utilizar os próprios equipamentos eletrônicos para tal.

A vacinação também se configura como mais uma demanda que gerou alteração no processo de trabalho. No início da campanha de vacinação, a SMS optou por organizar cinco Centros de Imunização espalhados pelo município, nos quais os usuários podiam ter acesso através de agendamento via internet. Profissionais de todos os setores da SMS, inclusive da APS, foram convocados para estes postos de trabalho. A escolha de centralizar as vacinas nos Centros de Imunização pode ter se dado devido ao baixo número de vacinas disponíveis no município naquele momento. Em agosto/2021, estes centros foram desativados e a vacinação foi descentralizada para as UBS, o que colaborou para a sobrecarga dos trabalhadores.

Além destas questões, os profissionais denunciaram a falta de equidade no acesso à vacinação: “Foram pessoas até o Centro de Saúde para se vacinarem que eram de bairros mais nobres e percebe-se que a população adscrita do território tem ficado sem acesso. A equipe precisa garantir o acesso de sua população” (P0401). Destacaram que o agendamento da vacinação via internet limitou o acesso à população mais vulnerável. Concluíram que a equipe sobrecarregada não conseguiu efetivar a vacinação a partir de outras possibilidades, como em domicílio, agendamento por telefone, ou busca ativa.

Uma transformação significativa neste período diz respeito à relação com os usuários. No primeiro ano, incentivados pelo imaginário construído pela mídia que reportava os profissionais de saúde como “heróis”, a população passou a se relacionar com os trabalhadores de forma respeitosa e cordial. No segundo ano, no entanto, essa relação mudou de forma expressiva, possivelmente alimentada por um contexto de sobrecarga dos trabalhadores. Nesse intervalo, aumentaram os casos de violência contra os profissionais de saúde, não apenas no Brasil, mas também em outros lugares, como Itália2323 Oliveira M. Itália completa 3 anos da 1a onda de COVID e vê agressões contra profissionais de saúde [Internet]. Folha de São Paulo; 2023 [acessado 2023 mar 29]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/02/italia-completa-3-anos-da-1a-onda-de-COVID-e-ve-agressoes-contra-profissionais-da-saude.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023...
e Reino Unido2424 Gusso AK, Lourenço RG. Violência contra profissionais de saúde durante a pandemia do Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2. Enferm Foco 2022; 13:e-202230.. De um ano para outro, os profissionais passaram de heróis à vilões:

Eu me senti abandonada, a enfermagem nunca foi tão valorizada, a mídia colocava a gente lá em cima, e ao mesmo tempo tinha um lado da nossa política que colocou a população contra a gente, eu me senti assim... ele congelou nosso salário, nossas abonadas, congelou tudo, não teve uma avaliação assim, você está bem? Vocês vão fazer e é assim e pronto, não vão receber, não vai contar para nada (P0201).

Outro fator que pode ter contribuído para tal conflito entre profissionais e usuários, refere-se à redução da participação social e cogestão. Sem vias formais e institucionais para colocar opiniões, queixas e insatisfações, a população buscou formas alternativas de se expressar (por exemplo, via redes sociais), trazendo entraves à comunicação com a UBS.

A fragilização dos espaços de cogestão

Os profissionais foram unânimes em relatar dificuldades na relação com a gestão, traduzidas como sensação de abandono, falta de apoio, de respaldo, pouca valorização e relação verticalizada com a APS por parte da SMS e do governo federal, comprometendo um modo de organização mais próximo do preconizado pela ESF.

Alguns fatores contribuíram para essa fragilização, o primeiro deles diz respeito à dificuldade de comunicação com a gestão municipal, visto que as informações chegavam por informes, WhatsApp ou, ainda, através da mídia, antes mesmo de algum comunicado oficial da SMS. Isso revelou a falta de clareza nos direcionamentos, diretrizes e estratégias de enfrentamento durante a pandemia. As decisões passaram a ser unilaterais, autoritárias, sem pactuação e planejamento com a equipe, desconsiderando a necessidade das unidades, com pouca possibilidade de autonomia quanto à agenda e escala de trabalho. As mudanças nos fluxos e protocolos eram constantes, prejudicando a discussão e orientação à população, o que trouxe bastante dificuldade na compreensão sobre o funcionamento da unidade pelos trabalhadores e usuários: “É muita desorganização. Organiza e desorganiza. A população não entende direito quais são as ofertas...a gente sofre e a população também” (P0401).

O segundo fator é descrito como uma sensação de distanciamento e falta de suporte por parte dos Apoiadores Institucionais. A cidade de Campinas tem, desde os anos 2000, a figura dos Apoiadores Institucionais como uma forma de ajudar na implementação dos processos de cogestão, com o objetivo de aumentar a capacidade de reflexão e ação dos sujeitos no processo de produção de saúde2525 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013.. Apesar de já encontrar dificuldades para a atuação de acordo com o modelo proposto mesmo antes da pandemia2626 Fernandes JA, Figueiredo MD. Apoio institucional e cogestão: uma reflexão sobre o trabalho dos apoiadores do SUS Campinas. Physis 2015; 25(1):287-306., o contexto atual parece ter acentuado o distanciamento dos Apoiadores do cotidiano dos serviços: “só vão ao Centro de Saúde quando o acolhimento já acabou e não ficam um tempo maior lá para entender o que está acontecendo” (P0402).

O terceiro ponto refere-se ao cancelamento das reuniões de equipe que, quando aconteciam, foram descritas como burocratizadas e esvaziadas. Apesar de grande parte dos profissionais considerar que antes da pandemia as reuniões eram importantes espaços de construção e reflexão coletiva, relataram desinteresse em participar nesta nova configuração. Houve críticas com relação ao cancelamento das reuniões, bem como declarações sobre a relevância das construções dialógicas como uma potente ferramenta para a resolução de conflitos e para a construção do cuidado em saúde. Tais fatores evidenciam o reconhecimento da importância dos espaços de cogestão por parte de profissionais e usuários.

O quarto fator que favoreceu a fragilização da cogestão está relacionado à precarização e depreciação do trabalho na APS. Os profissionais relataram sofrimento, adoecimento e desânimo frente ao medo por estarem na “linha de frente”, trazendo exposição e risco à própria vida, inclusive com falta de proteção adequada, escassez de recursos, sobrecarga de trabalho, cancelamento de férias e acúmulo de horas extras. Tais situações foram traduzidas como uma sensação de desvalorização pelo trabalho realizado: “ver seu trabalho assim abandonado, o projeto de saúde da família ignorado, é muito duro. Faz parecer que nosso trabalho é supérfluo” (P0203).

Apesar do contexto de fragilização exposto, os profissionais relataram resistência e recorrentes tentativas de reorganizar estes espaços coletivos, buscando suporte e apoio, como por exemplo a promoção de rodas de conversa ao final do dia para dialogar sobre o trabalho e compartilhar estratégias de cuidado entre os colegas. Também houve tentativas de resgatar a gestão compartilhada, incluindo a retomada das reuniões de Colegiado Gestor, e solicitações de reuniões com a gestão da unidade para discutir processo de trabalho, fragilidades, descontentamentos e reorganizações necessárias. Este fato convoca-nos a refletir sobre a porosidade do modelo de cogestão2525 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013. na APS de Campinas, uma vez que trabalhadores e usuários reconhecem a potencialidade das rodas compartilhadas e, frente aos desafios e desconstrução destes espaços, buscam formas de resgatar e (re)construir coletivos para tomada de decisões, compartilhamento de conhecimentos, trocas afetivas e de cuidado.

Quanto à participação social, alguns usuários citaram o Conselho Local de Saúde como indutor de mudanças, aposta para a defesa do SUS e fiscalização da gestão na saúde, além de ser uma ferramenta fundamental para garantir a qualidade da atenção prestada pela UBS. O Conselho é visto enquanto um espaço de construção coletiva “de responsabilidade de todas as partes, gestão, profissionais e usuários” (P0401). A participação em movimentos sociais e de controle social também foi reconhecida por ambos os grupos de entrevistados como espaço de garantia de direito à saúde e assistência qualificada.

As instâncias de Controle Social, no entanto, enfrentaram uma série de dificuldades no período da pandemia, atravessados pelo enfraquecimento da participação social promovido pelo governo federal a nível nacional, principalmente após o Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 20192727 Brasil. Decreto nº 9.759, 11 de abril de 2019. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Diário Oficial da União; 2019., que alterou as regras para os colegiados da administração pública federal, como também pelas questões locais, dadas as dificuldades de reunião presencial e no uso das tecnologias de comunicação2828 Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP). Entrevistas com conselheiros e conselheiras de saúde estaduais [Internet]. Passo Fundo: Saluz; 2022 [acessado 2023 mar 29]. Disponível em: https://ceap-rs.org.br/arquivo/Pesquisa-COVID-e-Controle-Social_vol2_entrevistas-2022.pdf..

Por fim, as decisões políticas da gestão federal também foram retratadas como autoritárias e distanciadas das necessidades sanitárias locais, mesmo num contexto anterior à pandemia. Os profissionais destacaram como a EC nº 95/2016 e o Programa Previne Brasil com o novo modelo de financiamento da APS, dificultaram o cumprimento de suas diretrizes1919 Santana MM, Medeiros KR, Monken M. Processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família na pandemia no Recife-PE: singularidades socioespaciais. Trab Educ Saude 2022; 20:e00154167.. A mudança no financiamento pelo MS fez com que a gestão municipal pressionasse as equipes para “manter o volume de atendimentos num ritmo insustentável” (P0203), visando não perder ainda mais recursos. A histórica falta de investimento adequado na APS já retratava a dificuldade da equipe em operacionalizar o modelo de Saúde da Família: “É triste de dizer, mas Campinas está numa situação difícil. Eu converso com muitos colegas que sentem que a cidade abandonou o modelo de saúde da família e tem focado somente em atendimentos” (P0204).

Por outro lado, especificamente no atual momento histórico vivenciado pelo país, uma das profissionais identifica a relação entre a corpulenta cisão política no pensamento da sociedade brasileira e a realidade do trabalho na UBS, causando divergências de pensamento e atuação dos profissionais:

Não é possível falar de saúde pública e do trabalho desarticulado das questões políticas do país, e da “quebra” que há nas diferentes maneiras de pensar, então desde o início da pandemia tinha bastante confusão entre os próprios profissionais da saúde em como atuar nos casos de sintomáticos respiratórios, havendo divergências nos protocolos. Isso gera um mal-estar não verbalizado na equipe, e a população questionava essas condutas diferentes (P0401).

Além de refletir a polarização entre visões políticas e ideológicas presentes na sociedade brasileira nos últimos anos, essa fala pode estar relacionada a uma sequência de ações fragmentadas por parte do governo federal, incluindo atos normativos e propagandas, as quais estão relacionadas à pretensão de retomar as atividades econômicas, a despeito da violação de direitos humanos88 Ventura DFL, Reis R. A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da COVID-19. Boletim Direitos na pandemia: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à COVID-19 no Brasil 2021; 10:6-31. e das mais de 700 mil vidas perdidas.

Considerações finais

A análise dos dados coletados, passados mais de três anos do início da pandemia de COVID-19 no Brasil, permitiu colocar alguns acontecimentos em perspectiva. Foram inúmeros os desafios trazidos pela pandemia ao sistema de saúde, em especial para a APS. Em um contexto de redução das políticas sociais e do aumento vertiginoso das demandas, em um dos países que mais registrou casos de COVID-19 no mundo, a APS passou por um estrangulamento, tanto do ponto de vista do seu financiamento quanto da assistência prestada aos usuários. Nessa linha, um duplo desafio impõe-se no contexto pós-pandemia: recuperar o seu arcabouço normativo e um financiamento mais robusto, mas também incrementar a qualidade da assistência prestada, trabalhando para a ampliação da clínica2222 Campos GWS. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 51-67., dos trabalhos no território e a retomada dos espaços de cogestão2525 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013..

A retomada dos espaços democráticos tem como desafio superar o desânimo dos trabalhadores agravado pela sobrecarga decorrente do excesso de trabalho durante a pandemia, mas também lutar contra a alienação dos sujeitos em um contexto de polarização política e de atentados à ordem democrática88 Ventura DFL, Reis R. A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da COVID-19. Boletim Direitos na pandemia: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à COVID-19 no Brasil 2021; 10:6-31..

Ressaltar a pandemia como um processo que acelerou os desmontes da APS não significa que ela estivesse funcionando de forma plena anteriormente. Pelo contrário, os relatos indicam que a pandemia potencializou uma dinâmica de descaracterização que já vinha se fazendo presente no município, com um quadro de funcionários insuficiente para atenção à demanda e a priorização de critérios quantitativos em detrimento da qualidade da atenção ofertada.

Como limitações do estudo destaca-se a oscilação do cenário epidemiológico que prejudicou parcialmente a coleta de dados. A necessidade de adaptação da rotina nas UBS também trouxe desafios no acesso dos entrevistadores a alguns profissionais, dadas as mudanças no processo de trabalho. Apesar de tais considerações, a opção metodológica de coleta e análise dos dados gerou grande volume de material empírico, configurando-se como importante base para futuras investigações.

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  • Financiamento

    Open Society Foundations.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    09 Ago 2023
  • Publicado
    11 Ago 2023
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